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Entrevista

"Desresponsabilização" das empresas nas greves deixa "sindicatos e trabalhadores como maus da fita"

07 jun, 2022 - 08:20 • Ana Carrilho

Efeitos das paralisações nos transportes afetam sobretudo trabalhadores com baixos salários e contratos precários. É uma relação "perversa", mas a greve é um direito constitucional, diz à Renascença o investigador António Casimiro Ferreira.

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A contestação laboral está a subir de tom e há cada vez mais greves marcadas que afetam centenas de milhares de pessoas, nomeadamente trabalhadores com baixos salários e contratos precários. É uma relação "perversa", diz em entrevista à Renascença António Casimiro Ferreira, docente da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais (CES).

Estudioso das relações de trabalho, António Casimiro Ferreira aponta a importância dos serviços mínimos para reduzir esse impacto, mas lembra que a greve é um direito constitucional. E que o conflito que lhe dá origem tem duas partes responsáveis: a sindical e a patronal. Esta última, normalmente, opta pelo silêncio, enquanto os sindicatos “dão a cara”. Ainda assim, Casimiro Ferreira considera que têm muito trabalho a fazer no contacto com as populações.

Assistimos a uma escalada da inflação, com reflexo na perda de rendimentos das famílias e dos trabalhadores, o que faz aumentar o descontentamento. E da parte patronal, tanto privada como pública, não tem havido resposta às reivindicações, o que leva os sindicatos a convocar várias greves. Este é um percurso normal da contestação laboral?

Sim, neste momento em particular, vivemos um período onde há claro fundamento para o descontentamento e para o início do desencadear de processos reivindicativos por parte dos trabalhadores. Os dados são conhecidos: a questão dos rendimentos, do salário, a sua articulação com a inflação.

Naquilo que será uma análise mais restrita e circunscrita às reivindicações que estão subjacentes às greves e a este ciclo grevista, ao padrão grevista que iremos assistir seguramente ao longo dos próximos meses, pelo menos durante o verão, julho, agosto, há boas e fundamentadas razões.

Do meu ponto de vista, residem, de uma forma muito sintética naquilo que é a necessidade de promover, de lutar - do ponto de vista sindical - em torno de melhores condições de trabalho, muito particularmente aquelas que estão em cima da mesa no que diz respeito ao salário e ao modo como esta sucessão de crises tem tido impacto no mercado de trabalho e na estrutura das relações laborais. E sobretudo, na repartição do rendimento.

"Neste momento em particular vivemos um período onde há claro fundamento para o descontentamento e para o início do desencadear de processos reivindicativos"

Na sua opinião vamos assistir a uma escalada de contestação laboral daqui para a frente?

Bom, talvez seja bom distinguir dois olhares a propósito deste momento reivindicativo que sentimos que está a acontecer. Por um lado, há uma dimensão política e, como cientista social, não posso furtar-me à identificação e de ligar - sem pôr em causa, evidentemente, aquilo que é a legítima e a fundamentada manifestação da contestação social - àquilo que é uma articulação conhecida da ligação do sistema político com o sistema sindical.

E, naturalmente, entende-se que é esta relação que conhecemos entre o Partido Comunista e a CGTP, de uma forma muito historicamente evidenciada, que estará presente. Mas mais do que essa dimensão política, o que me parece é que, de facto, vamos assistir à institucionalização de um certo padrão conjuntural de reivindicação, muito por força dos sindicatos da CGTP.

Nos próximos meses vão ter várias greves nos transportes públicos, que atingem uma grande camada de utentes/trabalhadores com uma situação contratual. Não pondo em causa o direito à greve, não há aqui uma atitude de certo modo corporativista e que não se revela solidária em relação a outros trabalhadores que podem até estar numa situação mais vulnerável?

A questão que coloca é muito pertinente. E, no fundo, o que está aqui a ser discutido na sua formulação é o impacto ou os efeitos perversos que a greve, e sobretudo uma greve nos transportes, pode ter sobre trabalhadores que se encontram naquilo que é designada pela “estrutura do mercado de trabalho precário”, que está em valores muito elevados em Portugal. Utilizo até como fonte algumas declarações da ministra do Trabalho, ainda há pouco tempo expressas a propósito da Agenda do Trabalho Digno.

De facto, há esta relação, que eu diria “perversa” entre, por um lado, o processo reivindicativo em curso através da expressão que é a greve; e, por outro lado, aquilo que são os impactos sobre estas estruturas de mercado de trabalho precário, mais frágil contratualmente e, portanto, mais suscetível de poder vir a sofrer algum tipo de constrangimento.

Mas a sua boa pergunta não tem uma resposta fácil e eu talvez começasse por sublinhar uma primeira ideia. Todos partilhamos esse facto incontestável de que a greve é um elemento constitutivo das democracias, tem uma fundamentação constitucional, e é um direito que está no âmago das sociedades democráticas.

A greve é a expressão de uma dinâmica saudável, ainda que por vezes perturbadora das sociedades democráticas. É um direito constitucional do Estado. A lei da greve está bem definida. Tem mecanismos como sejam, por exemplo, as arbitragens utilizadas quando é necessário proceder à fixação dos serviços mínimos.

Portanto, quando pensamos nas greves, não pensamos só numa greve que está a acontecer. Ela, por trás de si, tem todo um quadro democrático, institucional, que envolve os parceiros sociais, a própria administração do trabalho e os processos de arbitragem para a fixação dos serviços mínimos.

Em segundo lugar, quando nós discutimos e sofremos o impacto das greves, de alguma maneira, há um elemento muito dramático e com boas razões para isso: porque a vida de todos os dias, o quotidiano das pessoas fica perturbado, sobretudo em greves como esta no setor dos transportes. E por isso, no espaço público, quando acompanhamos os meios de comunicação social, percebemos do dramatismo, do descontentamento, dos problemas que estão subjacentes à vida de muitas pessoas, muitas daquelas que mencionava há pouco e podem estar na tal situação de trabalho precário.

Contudo, quando discutimos o fenómeno da greve, parece que só uma parte é que fala, que se expressa através da greve, que são os trabalhadores. Mas há um ausente que, de uma forma muito estratégica, opta pelo silêncio, por deixar o ónus do conflito para o lado dos trabalhadores: são as administrações, as entidades patronais, que são tão responsáveis pela greve quanto os trabalhadores.

"A greve é um direito, mas há uma relação perversa com o impacto no mercado de trabalho precário"

Vamos ver. As estruturas sindicais decidem encetar um processo de greve que também tem custos para esses trabalhadores, nomeadamente pecuniários. Mas o que é facto é que um conflito precisa de pelo menos duas partes.

Por isso é que eu julgo que é necessário fazer muita pedagogia, não só pedagogia da greve, não só junto dos sindicatos. Estes, para além da greve, devem encontrar canais de comunicação cidadã com as pessoas que são afetadas pela greve, explicando muito bem a razão pela qual esse conflito está a correr.

Mas também se deveria indagar com insistência e veemência junto das administrações, das empresas e das entidades patronais, rompendo o silêncio a que se remetem para se explicarem quanto à sua recusa em aproximar posição ou posições relativamente aos trabalhadores.

E aqui eu diria que a comunicação social também tem um papel muito importante. Porque quando assistimos àquele dramatismo e ao sofrimento que as pessoas têm, aquela impossibilidade de irem trabalhar, as horas de espera, enfim, todo este dano e transtorno em muitas vidas que por si, já não são fáceis, há sempre uma relação bilateral entre aqueles que parecem ser lesados utilizadores, neste caso dos transportes e do outro lado, aqueles que parecem ser, digamos, os trabalhadores que aparecem aqui com o tal ónus de provocarem esse mesmo dano. Mas nunca se fala da terceira parte.

Tem de existir transparência nos processos que estão associados à greve, o silêncio não deve ser admitido a quem tem também responsabilidade aquando da convocação de uma greve.

Podemos até admitir que, do ponto de vista financeiro, uma greve possa ser favorável a uma administração ou uma entidade patronal. Claro que vão dizer que isso é impossível, mas o que é facto é que é possível demonstrar que, nalgumas circunstâncias, o dano para a empresa é muito inferior àquele que é o dano para os próprios trabalhadores. E, por extensão, naturalmente que todas as pessoas são afetadas pelo impacto da greve.

"A greve resulta do conflito entre duas partes, mas só a sindical é que dá cara"

E como é que poderíamos levar a que as entidades patronais se explicassem?

As pessoas/empresas têm direito ao silêncio, mas também têm obrigação. Vivemos numa sociedade democrática, onde todos temos obrigações e responsabilidades entre todos, têm a responsabilidade de eticamente se apresentarem perante as pessoas que são afetadas pela greve, no sentido também de marcarem a sua posição.

É uma obrigação ética. O que eu estou a procurar sublinhar é que há um silêncio que incomoda muitíssimo quando esta desresponsabilização da parte que também é responsável pelo processo de negociação, se remete ao silêncio e pura e simplesmente deixa que sejam os sindicatos e os trabalhadores a ficar, como se diz, como “maus da fita”.

Isto aqui não pode ser visto nem como maus nem como bons. São processos negociais em curso, onde cada uma das partes deve assumir as suas responsabilidades. E já agora, gostaria de salientar que em Portugal há uma forte retórica e um forte apelo retórico às questões do diálogo social e da Concertação…

Existe efetivamente diálogo social e Concertação?

Sim, existe. Claro que existe diálogo social e Concertação Social em Portugal. Tem ciclos. Desde a década de 80 que temos a nossa experiência de Concertação Social com diferentes figurinos institucionais. Podemos dizer que há ciclos de diálogo social mais positivos do que outros. Claramente, podemos fazer um levantamento dos acordos que foram firmados e que resultaram em intervenção concreta na área da formação profissional, segurança e higiene no trabalho social, enfim, vários. Portanto, se em Portugal temos uma cultura de diálogo social e concertação, claro que temos.

"Sindicatos têm de comunicar melhor. Serviços mínimos podem reduzir impacto das greves"

Também é de elementar bom senso reconhecermos que a simples existência do diálogo e da Concertação Social não nos coloca num país das maravilhas. É exigente e por vezes funciona melhor, outras pior.

A questão que eu quero sublinhar é que seria por exemplo interessante que, mesmo em sede de Concertação Social, quando são observados os fenómenos grevistas pelos parceiros sociais, se colocasse justamente esta questão da corresponsabilização ética, não só aquela que é exigida aos sindicatos, mas também às entidades patronais, para que, de uma forma transparente no espaço público, marquem as suas posições e sustentem os seus pontos de vista.

Mas quem aparece perante a população acabam por ser os trabalhadores das empresas e são eles quem são acusados. Disse que, às vezes, os próprios sindicatos não sabem comunicar os seus argumentos para a greve. Nalguns casos, poderiam ser usadas outras formas de protesto que não este recurso último da greve?

De um ponto de vista realista, uma greve provoca sempre dano. Há aqui algo de inultrapassável de cada vez que tem de existir o recurso à greve, sendo que a greve faz parte de um processo negocial que está a correr mal, mas é um processo negocial.

Se há formas complementares à greve, e nessa lógica de complementaridade, eu julgo que sim. Por isso, insisto na mensagem pedagógica por parte dos sindicatos. Como disse, são eles que dão a cara, que estão nos piquetes de greve, que acabam por estar em interação direta com os cidadãos e cidadãs que são lesados pela sua luta.

Vivemos num mundo onde a comunicação e a informação jogam um papel muitíssimo grande e eu julgo que há muito trabalho a fazer. Não quero dar nenhuma imagem primária, mas não é suficiente estar à porta de um qualquer espaço em que está a acontecer uma greve, a distribuir panfletos, digamos assim. Há mais trabalho sindical a fazer, há mais exigências cidadãs a colocar-se aos sindicatos.

E, se calhar, com modelos diferentes, mais adaptados à sociedade que temos.

Sim, claramente. Agora, a greve coloca problemas. Por vezes é incompreensível para muitas das pessoas afetadas e essa incapacidade de perceber o que é que está a acontecer tem também a ver com o próprio estado das condições objetivas e subjetivas de vulnerabilidade em que muitas pessoas se encontram. Temos o efeito perverso de greves que já mencionamos há pouco.

O que fazer? Por exemplo, a fixação dos serviços mínimos, que serão sempre mínimos e insuficientes. A fixação de serviços mínimos tem sempre interpretações muito diferentes, cada tribunal arbitral é autónomo para os fixar ou não, para graduar a quantidade de trabalho a ser prestado. Há, talvez aí, uma intervenção importante, que muitas vezes passa despercebida. Mas é um elemento que também deve ser levado em consideração. Sobretudo num contexto peculiar como é este, no sentido atual, porque ele não é novo.

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