O descarrilamento do comboio Alfa Pendular, em Soure, em julho do ano passado, deveu-se a erro humano, mas a investigação também responsabiliza a Infraestruturas de Portugal (IP). O acidente provocou dois mortos e 44 feridos.

As conclusões constam do relatório final do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF), a que a agência Lusa teve hoje acesso, o qual revela que "os custos materiais diretos do acidente rondaram os 11 milhões de euros e o impacto económico dos atrasos decorrentes do acidente cifra-se em cerca de 575 mil euros".

O comboio, com 212 passageiros e que seguia no sentido sul-norte, com destino a Braga, descarrilou na tarde de 31 de julho de 2020, após abalroar um veículo de conservação de catenária (VCC), que entrara na via, segundos antes, junto à localidade de Matas, provocando a morte aos dois trabalhadores da IP, que estavam no VCC, e 44 feridos, três dos quais graves.

"O acidente não se deveu a qualquer anomalia técnica, tendo estabelecido como explicação mais provável para a ultrapassagem indevida do sinal S5 [vermelho] pelo VCC, um erro da tripulação na identificação do sinal que dizia respeito à linha em que o comboio se encontrava, tendo entendido que se lhes aplicava o sinal S3 com aspeto verde para a passagem do comboio rápido n.º 133 [Alfa Pendular]", concluiu o GPIAAF.

Além do "provável erro" na interpretação do sinal pelo VCC, a investigação aponta ainda como fator contributivo para o acidente, entre outros, o facto de este veículo de manutenção não estar equipado com o sistema de controlo automático de velocidade (CONVEL).

Em julho de 2018, a IP comprometeu-se com a instalação do CONVEL nos VCC, mas a medida, "sujeita a cabimentação financeira", até à data do acidente, nunca avançou.

O compromisso da IP consta da resposta enviada ao GPIAAF, após este organismo alertar para o risco de estes veículos circularem sem CONVEL, após um deles ultrapassar "indevidamente" um sinal vermelho na estação Roma-Areeiro, em Lisboa, em janeiro de 2016.

O relatório final enumera também vários fatores contributivos para o acidente, nomeadamente "o reduzido conhecimento do local pela tripulação do VCC, tendo passado na estação de Soure, no sentido norte-sul, em média, uma vez por ano", assim como "a reduzida proficiência da tripulação proporcionada pela organização do seu trabalho e funções".

"A monitorização da função da condução de veículos motorizados especiais [VME - como o que provocou o acidente] não era assegurada pelo gestor da infraestrutura [IP], conforme prevista nas suas obrigações", sublinha a investigação, denunciando que "não foi implementada" pela IP "a recomendação interna de melhorar a identificação" dos sinais instalados no local do acidente (S3 e S5).

"O histórico de SPAD [sigla em inglês de passagem não autorizada de um sinal vermelho] ocorridos com VME não foi integrado no processo de aprendizagem e monitorização dos riscos do gestor da infraestrutura [IP]; não foi feita pelo gestor da infraestrutura a reavaliação do risco da circulação de VME em via aberta à exploração, recomendada pelo GPIAAF em 2018 à autoridade nacional de segurança [IMT - Instituto da Mobilidade e dos Transportes]", salienta a investigação.

O GPIAAF revela também a "insuficiente supervisão pela autoridade nacional de segurança no que respeita aos SPAD do gestor da infraestrutura".

"Constata-se que muitos dos fatores causais e contributivos determinados na investigação são fatores sistémicos, ou seja, de natureza organizativa, de gestão, societal ou regulamentar suscetível de afetar futuras ocorrências semelhantes ou relacionadas no futuro, sobre os quais é essencial uma ação decidida por parte das organizações envolvidas, uma vez que só assim é possível prevenir futuros acidentes", alertam os investigadores.

O GPIAAF faz neste relatório dez recomendações de segurança ao IMT, para que esteja atento à atuação da IP, dos maquinistas e ao controlo do risco de circulação de comboios sem supervisão de CONVEL nas linhas equipadas.

Este organismo lembra que "a maioria dos fatores sistémicos estavam identificados em 2018" e constam do relatório ao acidente que envolveu um VCC na estação de Roma-Areeiro, em Lisboa, no qual "aborda ultrapassagens indevidas de sinais fechados por veículos do gestor da infraestrutura".

"O historial de eventos deste tipo ilustra bem a denominada pirâmide de Heinrich, a qual postula que um grande acidente é precedido de diversos eventos menores e de gravidade crescente, com pré-condições comuns", salienta o GPIAAF.

Sobre o relatório, o Ministério das Infraestruturas diz que as conclusões "serão devidamente analisadas e as suas recomendações tidas em conta, com vista ao contínuo reforço da segurança ferroviária e à minimização dos riscos de acidentes".

“A segurança é a principal prioridade do Ministério das Infraestruturas e da Habitação e das Empresas nossas tuteladas", lê-se, em comunicado enviado à Renascença.

IP "não se conforma" com conclusões

A Infraestruturas de Portugal “não se conforma” com as conclusões da investigação, assegurando que cumpre todas as regras, refutando responsabilidades no acidente.

A IP entende que o relatório “contém uma análise enviesada e não objetiva do acidente, inservível mesmo para os efeitos que se propõe, não de apuramento de responsabilidades, mas de uma fundamentada formulação de recomendações a seguir para o futuro”.

“Todas as ocorrências em circulação, em particular os SPAD, que ocorreram com maquinistas da IP, são analisados e produzida informação que é partilhada com a respetiva estrutura hierárquica, que, no seguimento, desenvolvem ações em contexto de trabalho, no sentido de eliminar futuros erros”, refere a empresa.

O GPIAAF contrapõe e sublinha “que não foram facultadas pela IP evidências que suportem tal afirmação”.

A investigação refere ainda que o gestor da infraestrutura “não tinha implementado um regime de manutenção de competências e supervisão adequado das funções de condução desempenhadas pelos trabalhadores, não aferindo assim o seu desempenho, em incumprimento com os requisitos previstos na legislação aplicável.

A IP também refuta esta acusação, salientando que “nas suas ações de monitorização no âmbito da segurança ferroviária, realiza verificações também ao nível da condução dos veículos, atuando de imediato, sensibilizando a tripulação e partilhando com a respetiva estrutura hierárquica os resultados dessas ações, que, no seguimento, desenvolvem ações em contexto de trabalho no sentido de eliminar futuros incumprimentos”.