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Portugal ultrapassou este domingo a barreira das duas mil mortes por Covid-19. Em sete meses, o novo coronavírus vitimou 2005 portugueses, num episódio que pode vir a alterar radicalmente a dinâmica demográfica do país.

Da esperança média de vida à natalidade, o impacto da pandemia supera os números divulgados diariamente no boletim da Direção-Geral da Saúde e pode " trazer efeitos devastadores a nível da sobrevivência da população”.

A região Norte, apessar de não ser a que mais casos de infeção tem, é a que mais mortes por Covid-19 apresenta, logo seguida por Lisboa e Vale do Tejo. Algarve e Açores têm os valores mais baixos de óbitos, só superadas pela Madeira que ainda não registou nehuma vítima mortal.

NÚMERO DE MORTES DIÁRIAS POR COVID-19

Da esperança média de vida à natalidade, o impacto da pandemia supera os números divulgados diariamente no boletim da Direção-Geral da Saúde e pode "trazer efeitos devastadores a nível da sobrevivência da população”.

“É preocupante percebermos o efeito que pode ter na nossa esperança de vida e na nossa longevidade”, alerta Maria Filomena Mendes, especialista em demografia. Para a investigadora do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS ) da Universidade de Évora, Portugal poderá vir a assistir, “num futuro próximo”, “a uma crise laboral, económica e que será necessariamente uma crise social que irá afetar as vidas de todos”.

Excesso de mortalidade desde Março

Portugal regista, desde o início da pandemia, quase seis mil mortes a mais, em comparação com igual período de 2019. De acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatísticas (INE), em causa está, sobretudo, o acréscimo do número de óbitos de pessoas com 75 ou mais anos.

Se ao aumento de seis mil óbitos retirarmos as 2005 de mortes por Covid*, registados até ao dia de hoje,ficam ainda por explicar cerca de quatro mil mortes.

NÚMERO DE MORTES POR GRUPO ETÁRIO

“Há aqui uma preocupação ligada à mortalidade que é o facto de, devido à pandemia, muitas pessoas terem receio de procurarem os hospitais, de procurarem os médicos e de não valorizarem alguns sintomas que em circunstância normais valorizariam e que, eventualmente, poderiam antecipar uma cura”, explica Maria Filomena Mendes.

Mas o receio da ida ao hospital não é a justificação única para este aumento de mortalidade. O agravamento das condições socio-económicas dos portugueses desempenha, também, um papel fundamental na sua capacidade de sobrevivência.

“Se se agravar a situação económica, pode verificar-se alguma mortalidade provocada não por uma diminuição das condições gerais de saúde, mas das condições gerais de vida e que têm a ver, por exemplo nas épocas em que temos temperaturas extremas de inverno, com problemas de aquecimento nas casas, de conforto, e de alimentação”, esclarece.

O “preocupante efeito da pandemia” na longevidade de uma população “duplamente envelhecida”

Além das pessoas com doenças crónicas ou autoimunes, são os idosos o grupo com maior grau de vulnerabilidade ao novo coronavírus. A taxa de letalidade sobe até ao pico de 17,3%, em Portugal, se considerarmos o grupo etário com 80 ou mais anos.

“Nós somos uma população duplamente envelhecida: no topo da pirâmide etária, porque temos um número de pessoas com idades avançadas muito significativo, e na base da pirâmide porque temos uma diminuição do número de jovens na população, isto é, número de pessoas com idades até aos 15 anos”, adianta a investigadora.

De acordo com os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e da Pordata, Portugal é o terceiro país da União Europeia com maior índice de envelhecimento, precedido apenas da Itália e da Alemanha.

É preocupante percebermos o efeito que [a pandemia] pode ter na nossa esperança de vida e na nossa longevidade, uma situação que vai provocar um aumento da mortalidade dos mais idosos, daqueles que têm idades mais avançadas e que também devido às suas patologias, já crónicas, podem tornar-se os grupos de mais risco em termos da infeção e depois da mortalidade devido á Covid-19”, defende.

É mesmo entre os idosos, com 80 e mais anos, que o número de mortes por Covid-19 se revela maior. Esta faixa etária equivale 67% do total de mortes em Portugal.

Apesar de, até agora, o número de óbitos em Portugal ser relativamente menor ao registado noutros países, Maria Filomena Mendes recusa desvalorizar o impacto que apresenta nas dinâmicas sociais e demográficas do país, “porque são sempre vidas que vão terminar mais cedo do que aquilo que deveriam terminar”.

SITUAÇÃO DA PANDEMIA POR REGIÃO

“Mesmo pessoas com idade avançada e com determinadas patologias crónicas podiam ainda ter mais anos de vida do que aqueles que acabam por ter, devido a esta situação”, acrescenta.

A Covid-19 “tem de certeza efeito” na natalidade

Para lá do possível impacto, mais evidente, na esperança média de vida dos portugueses, a incerteza gerada pela pandemia e pelas medidas de combate à doença tem “de certeza efeito” na evolução da natalidade.

“A evolução da fecundidade está muito condicionada pelas questões da segurança e da incerteza face ao futuro. Questões económicas, questões laborais e não só. E condiciona muito a tomada de decisão de ter um filho ou de não ter, de ter um filho agora ou de ter um filho mais tarde”, explica a autora.

O receio de uma crise económica e de uma crise laboral, “pode fazer com que os jovens casais que ainda se encontrem numa posição que lhes permita adiar a idade com que têm o primeiro filho, optem por adiar, em vez de antecipar o nascimento”.

“Quando existe uma situação como aquela que estamos a viver agora, isso vai refletir-se certamente nessa tomada de decisão. Na decisão de ter filhos, [a incerteza] é extraordinariamente importante”, defende.

Mas há, ainda, um outro fator que desempenha um papel fundamental na evolução da natalidade - os comportamentos das migrações.

Em 2019, cerca de 12% dos bebés nascidos em Portugal pertenciam a mães com nacionalidade estrangeira. “Continuamos a ser um país de emigrantes, mas também recebemos muitos imigrantes e a dinâmica da população é muito sustentada por esta relação. No caso da imigração, ela pode também condicionar, havendo alterações, a própria natalidade. Uma percentagem significativa dos nossos nascimentos são de pais que têm nacionalidade estrangeira.”, afirma a especialista.

“Não sabemos até que ponto, com a pandemia e com toda a nova organização que temos em termos de deslocações e movimentos, também de caráter laboral, não podemos ter aqui um impacto forte no comportamento das migrações”, reforça.

Até lá, a especialista deixa um alerta. “A valorização dos afetos, daquilo que perdemos, é aquilo que nos poderá vir a fazer mais felizes no futuro, quando pudermos voltar a retomar todas estas manifestações de afetividade e de carinho, que agora de certa forma perdemos”.

Em todo o mundo, já morreram mais de um milhão de pessoas vítimas do novo coronavírus, dentro de um universo de infetados de mais de 35 milhões de infetados.