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Tem sido “sempre a descer”. Do emprego estável ao desemprego sem fim, do céu ao inferno, os últimos anos foram um salto no escuro para Lídia Oliveira.

A pior crise em décadas levou tudo à frente. Derrubou milhares de portugueses e também passou uma rasteira a esta avó, de 59 anos. Foi ao tapete com a derrocada financeira da empresa Moviflor, mas não ficou KO. Este exército de uma só mulher está a levantar-se e vai continuar lutar.

“Sinto o estigma de ser um criminoso que não soube segurar o seu posto de trabalho, porque é assim que o desempregado é encarado”, desabafa a ex-vendedora de móveis.

O dia primaveril e a baía do Seixal em pano de fundo são um fraco consolo para quem acaba de entrar num dos maiores “clubes” do país. Lídia é um dos quase 300 mil portugueses que estão desempregados há mais de dois anos. Este grupo a que as estatísticas dão o nome de “desempregado de muito longa duração” é já quase metade do total de pessoas que não trabalham em Portugal. E este é o conjunto de trabalhadores mais susceptível de engrossar as fileiras do desemprego estrutural que o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, já definiu como“um dos fenómenos mais gravosos da evolução da economia portuguesa na última década”.

Portugal está no pelotão da frente e o futuro não é animador, alerta o sociólogo do ISCTE Renato Carmo, que estuda temas relacionados com o desemprego.

A equação é simples, mas de difícil resolução: “As pessoas com menos qualificação, menos escolaridade e mais idade estão em maior risco. Têm maior dificuldade em voltar ao mercado de trabalho”.

Renato Carmo soma ao problema os desempregados que perderam qualquer tipo de subsídio. “Os números vão-se alterando, mas fizemos um exercício há uns anos e seriam 350 mil”.

Desemprego grisalho. Despedida aos 57

Lídia trabalhou durante 13 anos na loja de Corroios da Moviflor, um “mastodonte” com três pisos (loja e armazém), do tamanho de um campo de futebol, que fechou portas com a falência da empresa. Agora, mais parece um navio fantasma encalhado numa zona industrial.

Noutros tempos tinha cerca de 70 trabalhadores. Agora, apenas se avista um solitário segurança atrás da vedação e do portão fechado.

As ervas começam a tomar conta do espaço. As letras a anunciar aos clientes que ali era uma loja da Moviflor foram retiradas, mas os contornos ainda são visíveis na fachada do edifício cinzento castigado pelo Sol. De regresso por uns minutos, Lídia olha em volta com mágoa.

“Era vendedora e gostava.” O ambiente de trabalho “era bom” e, muitas vezes, “duplicava o vencimento” com as “boas comissões e incentivos” que recebia a tempo e horas.

Até que começaram os “zunzuns” e os problemas. O subsídio não chegou no Natal de 2012: “foi o princípio do fim” de um grupo com 40 anos, mais de duas dezenas de lojas e um milhar de trabalhadores.

A delegada sindical arregaçou as mangas e “iniciou a luta“. Reivindicou, mas sentiu na pele a hostilidade da administração e de colegas que tardaram em ter “consciência do que se estava a passar” e dos seus direitos. Outros tinham “muito medo” e “calavam-se”.

“Foi sempre a descer. Ordenados, subsídios de férias e de Natal, sempre a acumular dívida e as pessoas não se convenciam. Eu só vi pessoas convencidas quando ou foram despedidas ou a accionista mandou encerrar as portas quando ninguém estava à espera.”

Aos 57 anos nunca tinha sido despedida na vida, mas esse dia acabou por chegar. Foi incluída no despedimento colectivo e resistiu. Contestou e continuou a apresentar-se no local de trabalho.

Foi impedida de aceder ao sistema informático. Colocada na “prateleira”, passava oito horas sentada na sua secretária, sem poder atender clientes, “sem poder fazer mais nada”.

Resistiu quase um mês, até não aguentar mais. Um abaixo-assinado de um grupo de colegas a exigir a sua saída deitou-a “abaixo“. “Psicologicamente”, já não conseguia mais estar naquela situação.

“Quando venho da minha casa e preciso de ir a Almada, tento não passar por aqui. Tenho sempre que passar sempre ali na frente da loja. Agora, já vou aceitando um bocadinho melhor a situação, mas os primeiros tempos foram muito traumatizantes, foi muito complicado. Revoltava-me muito toda esta situação. Achei que não havia necessidade de se chegar a este ponto.”

O director da Faculdade de Economia do Porto (FEP), José Varejão, verifica que se fala muito do desemprego jovem em Portugal, mas dá igual importância ao desemprego que atinge “o núcleo da força de trabalho”.

São pessoas mais velhas, com carreiras relativamente longas, experiência acumulada, algumas muito qualificadas. Mas “a idade torna mais difícil” o regresso ao mundo laboral, porque os patrões preferem “investir em trabalhadores com um horizonte laboral maior”, diagnostica o economista.

Da Uber que faz concorrência aos táxis, dos carros sem motorista que um dia podem acabar com a Uber, a imparável revolução tecnológica em curso é mais um desafio que ameaça deixar para trás os menos preparados para o choque digital.

É preciso preparar novos e velhos para a mudança. O sociólogo Renato Carmo, do ISCTE, defende que “o Estado tem um papel central na qualificação” da população. Em Portugal “investiu-se muito nas escolaridade sobretudo das gerações mais novas, mas descurou-se muito a qualificação ao longo da vida”, sublinha.

Cortar em tudo, até na saúde

Chegou a ter cinco meses de salários em atraso, um aperto que lhe “levou as economias de uma vida. Não ficou nada”.

Com o desemprego e a crise que também abalou o negócio do marido vieram mais mudanças. Os Oliveira tiveram de “passar de uma casa grande, uma vivenda de três pisos, com os filhos em casa, com a nora, com o neto, para um T2”.

Passou a fazer as “continhas todas”. Reduziu as despesas ao mínimo essencial, “inclusivé na saúde”. Compara preços no supermercado e eliminou os gastos com lazer. E se acontecer um imprevisto, “que não seja muito grave”: “senão não consigo chegar lá”.

“Há coisas que não dá para fazer, porque uma pessoa pensa: quando acabar o subsídio como vai ser? Emprego não vou arranjar, quase de certeza, ainda faltam alguns anos para a reforma. Como é que eu vou fazer? Qualquer despesa extra, mesmo ao nível de saúde, neste momento não vou fazer porque tenho medo.”

Nos escombros da implosão da Moviflor, Lídia sente-se “um bocado privilegiada” em relação ao drama de outros colegas. “Houve situações de suicídio, de morte súbita de uma pessoa muito nova que deixou filhos bebés, tudo isso pressionado por dois anos de muito desgaste emocional”. Houve também quem tivesse perdido a casa e o casamento. Outros “iam para o trabalho a pé muitos quilómetros, porque já não tinham dinheiro para transportes, não tinham dinheiro para comer.”

“Uma faca apontada” aos desempregados

Lídia Oliveira ainda recebe prestação social. Mas teme pelo futuro e está revoltada com o presente e com a forma como o Estado trata os desempregados.

Identifica três ameaças à dignidade de quem está pelo fundo de emprego, a começar pelas apresentações quinzenais no centro de emprego da área de residência. Sente que tem uma “faca apontada” para poder usufruir de um direito para o qual descontou durante uma vida. “O subsidio é meu”, reclama.

“Uma pessoa que comete um crime tem uma apresentação periódica na esquadra e, se não aparecer, é repreendido mas ainda não vai preso por isso. Nós perdemos o fundo de desemprego.”

A antiga vendedora de mobílias tem de provar aos serviços públicos que está activamente à procura de trabalho. São os famosos “carimbos” que os desempregados são obrigados a coleccionar e apresentar.

“É outra fantasia. Porque ando em sites de emprego na internet, procuro, envio o currículo, recebo um comprovativo, arquivo e sei que todos os meses tenho que ter, no mínimo, três procuras activas de trabalho.”

Em dois anos, Lídia não recebeu “absolutamente nenhuma proposta [de trabalho] através do centro de emprego”, mas foi chamada para um contrato de emprego-inserção (CEI), num infantário da autarquia do Seixal. Não foi de boa vontade.

Continuava a receber o subsídio de desemprego, mais 84 euros e subsídio de alimentação. Teria um horário completo de 40 horas de trabalho semanais e, ao fim de um ano, a certeza de que seria mandada para casa e continuaria desempregada.

Quando se apresentou, contrariada, pediram-lhe “muita desculpa”. A vaga já estava preenchida, porque “tinham mandado muitas pessoas”.

Lídia critica os “contratos ficticiamente de inserção”, como lhe chama. Considera que “não resolvem problema nenhum do desemprego” e servem apenas para o Estado tapar buracos nos serviços públicos em tempos de cortes.

O futuro sem emprego

Cair no desemprego tem sido uma experiência “péssima, desgastante e desmoralizante a nível pessoal”. A antiga vendedora gostava de voltar ao mercado de trabalho, mas já quase não acredita.

Tem o ensino secundário, mas “a idade também não está a ajudar”. “A perspectiva de encontrar outro trabalho é completamente surreal. Nem nos meus melhores sonhos, com quase 60 anos, iria arranjar trabalho”, afirma.

Lidia chegou a ir a uma entrevista para um emprego semelhante ao que fazia, mas “nunca recebeu qualquer resposta”. Ninguém lhe explicou porquê, mas tem a “sensação” que a reconheceram da primeira linha das manifestações da Moviflor.

“Depois, aquilo que me aparece de vez em quando, telefonam-me a marcar entrevistas e eu já fui a duas, à terceira não vou cair, são vendas agressivas, porta a porta, mas que no anúncio não se percebe isso”, conta.

Aqui, a idade não é um obstáculo, “só que é um tipo de trabalho sem vínculo absolutamente nenhum, praticamente ao dia, praticamente sem compromisso nenhum com a empresa”.

O investigador Renato Carmo reforça esta realidade. “O desemprego produz precariedade”, porque “o emprego que está a ser criado é precário, com contratos a termo ou outro tipo de situações”.

Lídia tenta não pensar muito no fim do subsídio de desemprego e nos anos que ainda faltam para a reforma. Enquanto vai cuidando do neto e participa na comissão de credores da Moviflor, envolveu-se num projecto novo. “Aceitei participar na criação de uma associação cívica, com muitos sonhos, muitos projectos, no âmbito do trabalho, da luta por um trabalho digno, por um desenvolvimento cultural dos trabalhadores e apoio social.”

A possibilidade de utilizar os seus conhecimentos nesta nova associação é uma fonte de ânimo. “Ajuda-me a acreditar que ainda tenho muitas coisas para fazer pela frente”. Aos 59 anos, a vida recomeça para Lídia.

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