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Reportagem Renascença

“Pior que heroína”: o flagelo das drogas sintéticas que atinge os Açores

08 mai, 2024 - 22:00 • Tomás Anjinho Chagas , André Peralta (sonoplastia)

São mais baratas, mais acessíveis e tornam as pessoas mais agressivas. Uma grávida de oito meses viciada, um homem que é toxicodependente há mais de 30 anos e que diz que as sintéticas são “muito piores” que a heroína. Reportagem na Ilha de São Miguel, assolada pelo problema.

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"Pior que heroína": o flagelo das drogas sintéticas que atinge os Açores
"Pior que heroína": o flagelo das drogas sintéticas que atinge os Açores. Oiça aqui a reportagem áudio / Foto: Reuters

Nota: Os testemunhos desta reportagem foram recolhidos no início de fevereiro de 2024 na ilha de São Miguel, nos Açores.

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Oiça aqui a reportagem da Renascença em S.Miguel

Uma carrinha completamente carbonizada destaca-se num parque de estacionamento absolutamente funcional. Está estacionada como se a tivessem parado no momento, mas a cor denuncia que ardeu. No interior estão quatro pessoas a consumir drogas sintéticas.

Estamos em Ponta Delgada, a capital da Ilha de São Miguel, e os quatro homens que fumam de um cachimbo de vidro não estão incomodados com a passagem de estranhos. Entram e saem, fechando as portas que quase por milagre se mantêm coladas ao chassis da carrinha.

A história repete-se por dezenas de outros pontos da cidade. Uma vivenda abandonada e aparentemente fechada serve de lar e sala de consumo para várias pessoas que estão presas nas novas substâncias que se alastram pela ilha. Não parece estar ninguém, mas há vestígios evidentes: vários pedaços de papel de prata com um traço queimado provam a função de uma sala com 30m2 formada de blocos de cimento e apenas com um orifício para o exterior. Onde não há prata, há lixo ou farrapos.

Impera o silêncio e estamos prestes a abandonar a vivenda quando uma voz feminina irrompe. Olhando para trás aparece uma mulher que caminha na nossa direção, com convicção. Há uma característica evidente: está grávida.

Ainda aqui dentro, mas está quase”, resume Ana Sofia (nome fictício) à Renascença e à equipa da Associação Novo Dia (uma Instituição Particular de Solidariedade Social que atua nas áreas da dependência em S.Miguel). Fala enquanto aponta para a barriga e revela que a gravidez vai no oitavo mês.

“Estou sempre aqui. É aqui que fumo e durmo muito de vez em quando”, resume como que a explicar a sua presença. “Só” consome drogras sintéticas, “mais nada”, que a deixam “bem-disposta” e evitam que pense “em coisas tolas”. Já pensou em tirar a própria vida, desabafa. “É a minha companhia, faz-me esquecer alguns problemas.”

Consome drogas há seis anos e ultimamente dá “apenas duas ou três vezes por dia”. Diz apenas porque garante já ter estado “bem pior”. Mesmo estando grávida não consegue evitar estas substâncias apesar de querer reabilitar-se: “Já fiquei sem os outros [bebés], não quero ficar sem este, já que o pai fugiu.”

Numa conversa íntima, que denuncia a confiança que tem nos dois membros da associação Novo Dia, perguntam a Ana Sofia como está uma amiga que anda sempre com ela e que também estava grávida: “Perdeu”, responde de forma lacónica.

Entra depois no carro da Associação Novo Dia, que a convence a ir até a um dos seus centros para ser vista por um médico numa altura tão crítica da gravidez. Os dois elementos insistem para que fique lá de forma permantente, mas Ana Sofia adia.

Os dois homens são Hélder Fernandes, presidente da Associação Novo Dia, e Rui Santos, que integra a equipa de rua, que duas vezes por dia palmilha as cidades de Ponta Delgada e Ribeira Grande a dar apoio a pessoas com toxicodependência. Quando Ana Sofia sai do carro, os dois homens contam à Renascença que só no último ano acompanharam quatro casos de grávidas agarradas às drogas sintéticas e em situação de sem-abrigo. Em nenhum caso o bebé nasceu saudável.

Há alguns que nascem com sintomas de abstinência, aconteceu um nascer com sifilis e ter de começar logo o tratamento”, resume.

Pior que heroína

O carro vai contornando as ruas estreitas de Ponta Delgada enquanto os dois especialistas na área vão explicando o fenómeno: “Desde a pandemia começou a aparecer cada vez mais e estas drogas substituíram outros consumos”, diz Rui Santos enquanto conduz. Faz isto há 18 anos. No banco de trás do carro há uma caixa de preservativos e no porta bagagens um carregamento de prata, seringas e boqueiras para os cachimbos de vidro, tudo material que vai sendo distribuído durante o dia.

As drogas sintéticas estão a dominar os consumos e a substituir as outras substâncias e há explicação para isso: “Por serem mais baratas, por haver em mais quantidade.

O flagelo atinge “mais Ponta Delgada e Ribeira Grande”, mas já se propagou a toda a ilha de São Miguel e a toxicodependência das substâncias sintéticas é mais dura.

“Este tipo de substâncias é mais debilitante a nível físico e mental. São piores do que as outras, mesmo a heroína, que dá para controlar mais o consumo. As pessoas começam pouco a pouco a fumar e ficam mesmo debilitadas”, resume Rui Santos enquanto vai passando por todos os pontos em que os consumidores se juntam. São dezenas de paragens.

Os dois peritos dizem que os consumidores ficam “super excitados” ao fumar este tipo de substância da “família das naftaminas”. Além disso, as drogas sintéticas podem levar a “alucinações, auto e hetero agressões”, acrescenta Hélder Fernandes.

O carro desacelera: “Estás bom? Viste o Armando? Não está por aí?”, pergunta Rui Santos à medida que um homem se aproxima da janela depois de atravessar a estrada. Ele abana a cabeça e a marcha retoma.

Espalhado pela cidade

O trajeto volta a parar num beco sem saída que, ao longo de toda a rua, tem estaleiros em toda a sua extensão. Um homem com barbas brancas e longas aproxima-se do carro para receber seringas. Está preso às drogas há cinco ou seis anos. Para se sustentar é atador de redes de pesca quando arranja trabalho.

Do que temos visto na rua, existem mais homens do que mulheres, tanto na condição de sem-abrigo, como a consumir substâncias psicoativas”, refere Hélder Fernandes. Rui Santos vai conduzindo com a convicção de quem pode fazer este caminho de olhos fechados, e a Renascença permanece no banco de trás.

Com duas rodas em cima do passeio e em quatro piscas o carro detém-se. Rui Santos sai, dirige-se a um edifício abandonado e bate na antiga garagem que agora está forrada por tábuas de madeira na vertical. Conhece uma pessoa em situação de sem-abrigo que pernoita aqui, mas de momento não parece estar.

“As equipas vão ao encontro de pessoas que não recorrem aos nossos centros e disponibilizam diariamente a medicação”, justifica Hélder. Sabem que há gente a morar ali porque estão “todos os dias no terreno”. Peixe na água.

A ideia é convencê-las a ser acompanhadas de perto, e quem sabe, um dia entrar em desintoxicação.

Fabiana roubava a própria família

Se não fossem eles não sei o que seria de mim.” A frase é de Fabiana Costa (nome fictício), que está sentada numa pequena sala, uma das várias que compõem o Centro de Acolhimento de Emergência da Associação Novo Dia.

As paredes são brancas, a sala moderna. Fabiana Costa está maquilhada, fala sem filtros e com uma honestidade brutal. “Estou aqui há poucos dias”, resume.

Estou limpa, há cinco dias que não faço nada. Mas estou a tomar medicação, se não fosse isso estava a ressacar.” Não é a primeira vez que chega a este ponto. “Já estive cinco vezes na clínica”, diz de forma transparente. Além da Renascença, do outro lado da mesa estão Hélder Fernandes e Rui Santos. É aí que encontra conforto e confiança para falar.

Está a recomeçar o ciclo depois de problemas com a heroína e drogas sintéticas. Nos intervalos foi recuperando e há bem pouco tempo chegou a conseguir manter o emprego, mas “não quis ir trabalhar mais porque ressacava”.

Fala como se não tivesse qualquer opinião na matéria e assume que as substâncias sintéticas são acessíveis em São Miguel: “Então não? Quase toda a gente fuma isso.

“A minha família não me aceita. A minha mãe já faleceu, tenho o meu pai a viver com a minha irmã, mas ela disse que não me queria lá”, desabafa Fabiana Costa.

No entanto, não atribui a culpa a terceiros e parece compreender as razões: “Ela disse-me que não quer voltar a consumir comigo de novo, não quer ficar sem os filhos por causa dessa porcaria.” E assume o que já fez nessa casa: “Eu fazia muita coisa lá, roubava e tudo”, revela Fabiana Costa.

O projeto é voltar ao zero para levantar-se e chegar à vida que ainda não teve: “Quero ter um futuro bom para a frente. Trabalhar e ter a minha casinha.”

Primeira rede: o centro

Vamos tateando os corredores e salas do Centro de Acolhimento de Emergência e o ambiente é pacífico. Há muitos utentes, na verdade, a lotação está esgotada, mas ali não se consome, recupera-se. Uns aproveitam os balneários públicos para tomar banho, outros estão na enfermaria e há quem esteja na sala de convívio a ver televisão.

I will be your hero baby”, canta uma mulher enquanto se ri e se aproxima de Hélder Fernandes. O presidente da Associação Novo Dia é uma figura popular, respeitada, mas sobretudo acarinhada. “Falo muito com o Hélder, eu estava na rua e ele foi buscar-me”, explica à Renascença.

A visita segue. O centro funciona 24 horas por dia e é o local de pernoita para 30 pessoas e serve de abrigo a “pessoas com substâncias ativas e profissionais do sexo”. Durante o dia, outras 30 pessoas podem utilizar as instalações para tomar banho e como centro de dia. Para aqueles que já estão em recuperação há centros específicos, um feminino e outro masculino. São específicos para que não estejam expostos à droga e, por essa via, acabem a ser desviados do tratamento.

A realidade transformou-se: “quase todas as pessoas” que aqui estão têm problemas com as novas drogas sintéticas. A pandemia foi o gatilho para mudar o perfil das pessoas com problemas de toxicodependência.

"Verificamos o agravamento principalmente na pandemia e no pós-pandemia ainda mais. As pessoas que recorriam a nós consumiam essas substâncias psicoativas”, refere Hélder Fernandes que explica que sendo as drogas sintéticas muito diversas, o tratamento é mais complexo porque a composição das substâncias é muito diversa.

Atualmente, só a associação Novo Dia acompanha perto de 400 pessoas, a esmagadora maioria com problemas de consumos de drogas sintéticas.

“Pior que um vírus em São Miguel”

Num corredor largo e arejado, junto aos cacifos que guardam tudo o que estas pessoas têm, está José Carlos (nome fictício). Tem 49 anos e consome drogas desde os 13. Voltou ao centro de acolhimento há cinco dias e apresenta-se de forma lacónica: “Sou de Rabo de Peixe e como pão com queijo todos os dias.

É alto e moreno, a cara é concava na zona das bochechas, o desgaste está visível a olho nu, lamenta que as drogas lhe tenham tirado os dentes. Sempre as tomou, mas só há pouco tempo se virou para as sintéticas, “muito piores” do que o haxixe, a cocaína ou a heroína.

Calmamente, explica o efeito das drogas sintéticas: “Dura cinco ou seis minutos, depois disso entramos em sofrimento, agonia e sofrimento para consumir mais. Nunca mais acaba.”

Indiretamente assume que bateu no fundo recentemente e é por isso que está aqui. “Levei noites e dias sem parar, sempre a consumir. Quinze dias a fumar, só a beber água e álcool.”

Para parar, tudo depende de si, assume, mas José Carlos vinca a facilidade com que se encontram as drogas sintéticas e a dimensão dos efeitos: “Está a ser pior do que um vírus aqui em S. Miguel, está a estragar muita gente, casamentos e amizades. Vê-se droga por todo o lado.”

Estava há um mês e meio a dormir na rua. “Agora tenho uma caminha e um teto”, conta. A desintoxicação é o passo seguinte, mas para isso precisa de ter vontade, reconhece o próprio.

Segundo passo: voltar

Regressamos ao início, ao local onde está estacionado uma carrinha totalmente queimada. Está a poucos metros de outro centro da Associação Novo Dia, mas este é para o próximo passo: reabilitação.

Visto de fora parece uma habitação normal, ao entrar detetam-se as nuances. Na primeira divisão à direita está Suze Costa, coordenadora do alojamento temporário masculino.

“As pessoas vêm da Casa de Saúde depois de fazerem um tratamento de desabituação de drogas, álcool, ou ambas. Ou quando saem de um estabelecimento prisional, ou quando ficaram em situação de sem-abrigo”, resume numa noz.

O critério é simples, a este espaço só chegam utentes que não estejam a consumir nesse momento. É o segundo passo, a rampa de lançamento para a sociedade.

Fazem o tratamento, ficam bem, mantêm-se a trabalhar. Limpam a sua cara e nós mantemo-nos sempre em contacto”, resume à Renascença. A ideia é ficarem no máximo seis meses a viver aqui, mas isso nem sempre sucede: “Sabemos que temos uma ou duas vagas que são cativas”, diz Suze Costa, referindo-se aos casos que têm mais dificuldades em reintegrar-se. São demasiado novos para ir para um lar e estão demasiado debilitados para trabalhar, têm a família nos Estados Unidos e este centro é a única casa que têm.

No interior da casa há um silêncio de tranquilidade. A maior parte dos utentes está a ver um filme na sala da televisão.

Sintéticas atingem mais os pobres

Claramente as drogas sintéticas afetam mais as pessoas com menos rendimentos”, afirma Fernando Diogo, sociólogo, especializado em áreas relacionadas com a pobreza.

Recebe a Renascença na Universidade dos Açores, em Ponta Delgada, e tem conhecimento de causa. Lançou em janeiro um parecer para o Conselho Económico e Social dos Açores precisamente sobre o problema das drogas sintéticas.

“O problema das drogas sintéticas não se distribui de forma uniforme pelo território nacional, sendo, por enquanto, especialmente grave nas regiões autónomas, no caso dos Açores, com maior incidência na Ilha de S. Miguel e, especificamente, na cidade de Ponta Delgada”, refere o documento.

Fernando Diogo diagnostica nas substâncias sintéticas um “impacto muito forte, imediato e muito acima daquilo que são as drogas clássicas”.

Invariavelmente leva as pessoas para uma situação de grande degradação física, mental e social, de forma muito rápida e muito forte”, explica este especialista na área da pobreza nos Açores, que há bem pouco tempo se debruçou sobre este tema em concreto.

Tal como aponta o estudo do CES Açores, Fernando Diogo explica que “a maior parte” dos consumidores destas substâncias eram consumidores de outras drogas, mas “migram” para as sintéticas, em parte por serem “mais baratas”.

Final feliz

Já no mês de maio, a Renascença voltou a contactar a Associação Novo Dia com o objetivo de saber como tinha corrido o final de gravidez de Ana Sofia.

"O bebé nasceu bem e saudável", resume Hélder Fernandes numa mensagem escrita. A exceção à regra foi esta criança que contornou as dificuldades de uma gravidez de risco tingida pelo consumo de drogas sintéticas.

Créditos:

Reportagem: Tomás Anjinho Chagas

Revisão de texto (site): Ana Kotowicz

Sonoplastia: André Peralta

Edição: José Pedro Frazão, Susana Madureira Martins

Comentários
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  • Sara
    13 mai, 2024 Lisboa 14:01
    Uma vergonha, a ponta delgada está cheia, um mimo para os turistas, uma terra onde se tem de pagar tudo e bem, e não há ninguém que ajude estas pessoas
  • Rodrigo Graça
    09 mai, 2024 Lisboa 11:20
    Excelente reportagem, parabéns Tomás e restante equipa! Tema muito importante.

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