À espera de um contra-sinal

11 jul, 2014 • Carolina Rico

Exposição inédita do arquivo da Santa Casa da Misericórdia reúne dezenas de sinais dos "expostos da roda".

À espera de um contra-sinal

Na roda deixavam-se bebés, de forma anónima, ao cuidado da Santa Casa da Misericórdia. Os pais deixavam um sinal – bilhetes, tranças de cabelo, cartas de jogo, fotografias rasgadas – a que correspondia um contra-sinal que identificaria quem tinha direito a resgatar a criança. Dezenas destes sinais estão expostos, desde esta sexta-feira, na galeria de São Roque, em Lisboa.

O arquivo da Santa Casa guarda 86 mil documentos que relatam a passagem de milhares de crianças pela roda. Criada em meados do século XVI, a roda de Lisboa chegou a receber nove crianças por dia antes de ser extinta em 1870.

Este mecanismo consistia num cilindro giratório, com duas portas paralelas, embutido na parede externa de um edifício. Quando uma criança era colocada do lado exterior e se fazia tocar uma campainha, a rodeira fazia girar um torno e recebia a criança no interior, sem nunca ver quem a tinha deixado na roda.
 
"Tive de refazer a minha imagem da história", conta Paulo Pires do Vale, professor de Estética e Filosofia na Universidade Católica de Lisboa.

Quando foi convidado pelo director do arquivo da Santa Casa para ser o curador desta exposição, Paulo Pires do Vale partilhava a crença generalizada de que os "expostos da roda" eram abandonados pelos pais.

A verdade é que a maioria destes bebés era confiada à guarda da Santa Casa com um sinal, promessa de que um dia mais tarde reencontrariam os pais.

Ao analisar os 4,5 quilómetros de prateleiras no arquivo, incluindo o maior catálogo de sinais do mundo, a dificuldade foi escolher aqueles que integrariam a exposição.

"Interessaram-me muito os sinais que eram metades", conta o curador. São objectos que "mostram as lacunas mas remetem-nos para o outro, para aquilo que falta. Quando olhamos para estes sinais sentimos essa falta." 

Uma promessa de reencontro
Além de manifestar o desejo dos pais de ir buscar o filho que deixaram na roda de forma anónima, os sinais permitiam identificar se criança era realmente filha de quem a ia resgatar.

Para tal, os pais tinham de apresentar um "contra-sinal" que remetia para o sinal da criança. Uma meia com o seu par, por exemplo, metade de uma medalha, de uma fotografia ou de uma carta de jogar.

Um sinal e um contra-sinal unidos mostram que a criança reencontrou os pais. Foto: Carolina Rico

A acompanhar os sinais, eram também deixados recados. Pediam que os filhos fossem bem tratados, que recebessem um nome escolhido pelos pais ou que não os levassem para longe de Lisboa.

Outros explicam as razões do abandono. Na maioria dos casos era motivado por carências económicas.

Aprender um ofício aos sete anos
Encontrar um sinal e um contra-sinal unidos no arquivo é raro. A grande maioria das crianças não foi entregue aos pais. Como a taxa de mortalidade infantil era muito elevada à época, muitas crianças acabavam também por morrer, explica Paulo Pires do Vale.

Após darem entrada, os bebés eram baptizados e entregues a uma "ama-de-leite", espalhadas por todo o país, que recebiam um salário por cuidar delas. Depois de três anos passavam para uma "ama-de-seco" e aos sete aprendiam um ofício.

"Os nossos registos mostram a preocupação da Santa Casa de proteger os mais fracos", diz Francisco Manoel, director do arquivo.

Trança de uma mãe deixada com o bebé. Foto: SCML

Para evitar abusos, a Santa Casa fiscalizava regularmente a actuação das amas. Além disso, "mantinha um registo de crianças negras que, durante a escravatura, eram consideradas livres depois de serem deixadas na roda". Um direito salvaguardado por esses registos, conta.

Arquivo vivo
Além dos sinais dos “expostos”, a exposição “Visitação: o arquivo como memória e promessa”, patente até 2 de Novembro, mostra várias as formas de apoio prestado pela instituição aos mais desprotegidos.

Três artistas contemporâneos foram também convidados criar uma nova obra a partir dos documentos encontrados no arquivo da Santa Casa. O realizador Pedro Costa apresenta uma instalação que nos confronta com o rosto do outro e Daniel Blaufuks expõe uma série fotográfica sobre os sinais.

A partir do fundo musical do arquivo, o compositor João Madureira seleccionou uma peça musical do século XVII que inspirou uma nova. Vai ser interpretada pela primeira vez no final da exposição, num concerto na Igreja de São Roque.