Rui da Conceição Nunes

"Sair do euro seria a 'albanização' de Portugal"

06 dez, 2013 • José Bastos

Como será, dentro de 10 anos, a relação de Portugal com a moeda única? "A médio prazo, depende do cumprimento da 'regra de ouro'. A longo prazo, 'estaremos todos mortos', como disse Keynes", responde um especialista no euro.

Ensinou economia na Universidade do Porto e agora faz parte do conselho de auditoria do Banco de Portugal. Em entrevista à Renascença, Rui da Conceição Nunes defende que o "não cumprimento dos critérios de Maastricht foi o maior problema do euro". No livro "Euro = Neoliberalismo + Socialismo, o momento Maastricht", o professor catedrático aposentado da Faculdade de Economia da Universidade do Porto sustenta que "a disputa política sobrepõe-se à racionalidade económica". Rui da Conceição Nunes considera ainda que "o Tribunal Constitucional não tem a preocupação de defender o equilíbrio orçamental" que é imposto a Portugal "pela troika e pelos tratados europeus".


Porquê o destaque no livro ao chamado "momento Maastricht"?
Este livro é uma homenagem ao Tratado de Maastricht, que entrou em vigor no passado dia 1 de Novembro. Nesse tratado, os neoliberais (ordoliberais) e socialistas/social-democratas europeus decidiram constituir uma moeda única na União Europeia criada nesse mesmo tratado. Do ponto de vista económico, é a base constitucional europeia.

Houve um problema de design no euro?
O euro foi inspirado na teoria das áreas monetárias óptimas de Robert Mundell, considerado o pai do euro. Os países que o integrassem teriam de reger-se pelas regras específicas de uma união monetária, o que não aconteceu.

Porque é que esse problema não foi identificado desde o início?
Além da desobediência aos critérios estabelecidos no Tratado, a oferta de moeda não foi gerida com eficiência no espaço do euro.

Porque é que as autoridades portuguesas não foram identificando essa fragilidade? Houve muito 'wishful thinking'?
A ilusão de crescimento provocada pelo crédito fácil fez com que as vozes críticas da época tivessem sido desvalorizadas.

Quando se criou o euro não havia consciência de que havia países com graus de produtividade e competitividade muito diferenciados?
Certamente, mas o problema não é esse. Os diversos países, numa união monetária, têm de ajustar as suas economias de diversas maneiras - a mobilidade do factor trabalho é uma delas. Creio que o não cumprimento dos critérios de Maastricht foi o maior problema do euro. Mas deve dizer-se que os próprios critérios já eram muito curtos, como se comprova pelas alterações posteriores (PEC, regra de ouro).

No caso português não houve o empenhamento político necessário para promover reformas estruturais numa economia que estava muito dependente da "taxa de câmbio", das desvalorizações da moeda?
A embriaguez do crédito fácil deu a ilusão de que estávamos progredindo, na medida em que havia um nível de vida mais elevado. Não se observavam os fundamentos desse aparente bem-estar. Criaram-se muitas actividades só viáveis com o crédito fácil. Quando este faltou, o desemprego disparou. Mas este desemprego formar-se-ia igualmente se o nosso ajustamento se realizasse com moeda própria.

Fenómenos como as Parcerias Público-Privadas (PPP), os "swap", numa década em que o financiamento foi fácil, resultam de incúria ou são incontornáveis produtos do seu tempo, de uma década de aparente facilidade?
Creio que é mais acertado dizer que foi um problema de incúria, porque não se reparou que o crescimento era artificial.

Porque não houve a consciência ou a real capacidade dos actores políticos avaliarem a verdadeira dimensão dos riscos deste endividamento?
A disputa política sobrepõe-se à racionalidade económica.

Chegamos onde chegamos mais por culpa própria que por culpa do euro?
O euro não tem culpas - mas sim a nossa má gestão, a nível público, privado e bancário. 

Portugal aderiu cedo demais ao euro? Houve precipitação?
Talvez a relação de troca do escudo pelo euro tenha sido mal ajustada. De resto, a entrada na 'eurolândia' obrigar-nos-ia a uma gestão correcta da economia nacional, o que não aconteceu.

A moeda única é compatível com a ausência de união política, fiscal, bancária?
A construção da união monetária é um processo em evolução. A união bancária será o primeiro passo. A união fiscal será desejável, mas longínqua. A união política ficará para as 'calendas gregas'.  

Este euro é o velho marco, apenas com uma outra designação?
Há uma diferença essencial entre o marco e o euro. O banco central alemão não era independente do poder político - não obstante haver essa ideia generalizada. Já o euro é independente da Comissão, do Conselho e do Parlamento. Mas o Tribunal Constitucional alemão é o garante de que a moeda europeia não terá derivas inflacionistas. Em Novembro, completaram-se 90 anos sobre o termo da grande inflação do início dos anos 20, na Alemanha, que criou grande desemprego e as condições políticas para a emergência do nazismo. Hitler utilizou também a inflação para financiar o seu esforço de guerra, pelo que a ideia de inflação - o ópio do sistema financeiro - aterroriza aquele povo. Já em Portugal, o Tribunal Constitucional não tem a preocupação de defender o equilíbrio orçamental que é imposto pela 'troika' e pelos tratados europeus.

Como vê o futuro? O euro pode acabar? Uma implosão?
O especulador Soros recorda que a União Soviética durou 70 anos - mas acabou, tal como o euro acabará. A defesa para a Grécia se manter no euro dá-nos uma medida dos esforços que a 'eurolândia' fará para não perder nenhum dos seus membros, já que, de acordo com os tratados, sair do euro implica abandonar a União Europeia.

Para Portugal, sair do euro é opção?
Como disse, teríamos de abandonar a União Europeia. Seria a nossa 'albanização'. Não creio que a maioria dos portugueses o deseje, não obstante os muitos adeptos do movimento 'Que se lixe a Troika'.

Esse debate não deve ser feito na sociedade portuguesa?
O debate que deveria fazer-se seria sobre a melhor maneira de conviver com o euro e não o seu abandono. A comunicação social está sempre aberta à crítica do euro e muito fechada em relação à sua defesa e à explicação do processo de ajustamento que estamos realizando por via orçamental.

Há alternativas aos cortes de salários e pensões?
O ajustamento pela via inflacionista, quando se tem moeda própria, realiza esse corte de salários e pensões, porque se mantêm os valores nominais, mas os valores reais baixam por causa da inflação. Quando se está em regime de câmbios fixos, tem de se atingir esse mesmo objectivo, o que só se pode fazer por via orçamental.

O Governo não tem alternativa e está refém da Europa? Este ou o próximo? Quando o líder do PS diz que é possível fazer diferente, é mesmo?
O Executivo não está refém da Europa - a Europa está a ajudar um dos seus membros. A política adequada, quando não se tem moeda própria, é aquela que a 'troika' indica e que o Executivo tem aplicado, melhor ou pior. Uma hipotética gestão pelo PS é problema que se põe apenas depois da saída da 'troika', com condicionalismos internos e externos que não são ainda conhecidos.

Se a Europa não aprofundar a integração política, fiscal, a união bancária, o ajustamento em curso e os sacrifícios serão inglórios e Portugal, mais cedo que tarde, corre o risco de ser obrigado a abandonar a moeda única?
O ajustamento em curso nunca será inglório, porque estamos no bom caminho para o regresso aos mercados - embora seja necessária alguma ajuda europeia. Como já referi, não creio que a saída do euro seja uma solução.

É inevitável Portugal ter de enfrentar algum tipo de restruturação da dívida?
Uma restruturação da dívida sem encargos para os credores e que permita um ajustamento às condições económico-financeiras futuras do país é sempre desejável.

Acredita que vamos evitar um segundo resgate? 
Um segundo resgate é uma solução complicada, que foi rejeitada pela Irlanda com receio de que alguns países do Norte não o aceitassem. Creio que estamos nas mesmas condições.

As respostas europeias vão surgir agora? A Alemanha tem um excedente de 6% desde 2008 e a Comissão só agora reage... 
A nova lei do equilíbrio orçamental europeia só começou a ser aplicada a partir do início do presente ano.

Não vamos continuar a ter uma Europa a duas velocidades com um só euro?
A Europa andará a duas ou três velocidades com o euro, porque essa é a consequência de uma união monetária. Em função de muitos factores, uns estruturais (como os recursos naturais), outros conjunturais, internos e externos, económicos, sociais e políticos, o grau de desenvolvimento das regiões europeias será sempre diferente.

Como acha que será, dentro de 10 anos, a relação de Portugal com a moeda única? Pacífica?
A relação de Portugal com o euro dependerá, a médio prazo, do cumprimento da 'regra de ouro'. A longo prazo, 'estaremos todos mortos', como disse Keynes.