​Pilar del Rio: "Saramago cumpre 100 anos e está muito vivo"

Estão a acabar as comemorações do centenário de José Saramago, um ano marcado por diversos lançamentos, entre uma biografia e atividades em todo o mundo. A presidente da Fundação Saramago fala da “emoção” das celebrações. Esta sexta-feira, 30 anos depois, é reposta a ópera ‘Blimunda’ no Teatro Nacional São Carlos.

11 nov, 2022 - 06:46 • Maria João Costa



Ópera “Blimunda”, segundo o romance Memorial do Convento, de José Saramago, volta aos palcos 30 anos depois. Foto: André Kosters/Lusa
Ópera “Blimunda”, segundo o romance Memorial do Convento, de José Saramago, volta aos palcos 30 anos depois. Foto: André Kosters/Lusa

As comemorações do centenário de José Saramago estão na reta final. Se fosse vivo, o Prémio Nobel da Literatura faria 100 anos a 16 de novembro. A celebração tem sido assinalada por todo o mundo no último ano, lembra a viúva Pilar del Rio. Além de uma nova biografia, e um livro de memórias de Lanzarote, há uma ópera que estreia esta sexta-feira.

Blimunda é uma das personagens femininas mais emblemáticas da literatura de José Saramago. Figura central do livro “Memorial do Convento”, Blimunda dá nome ao espetáculo de ópera com que encerram as celebrações do centenário do nascimento de Saramago.

Estreada em 1991, primeiro no La Scala de Milão, “Blimunda” regressa esta sexta-feira ao Teatro Nacional São Carlos, em Lisboa, com uma nova produção com encenação de Nuno Carinhas. Em entrevista ao Ensaio Geral da Renascença, considera Blimunda “uma das personagens femininas mais extraordinárias da ficção portuguesa”.

Trinta anos depois de ter sido criada por Azio Corghi, que com Saramago assina o libreto, “Blimunda” regressa no seu esplendor, numa ópera que se apresenta como uma “poderosa reflexão sobre a condição humana”.


Foto: André Kosters/Lusa
Foto: André Kosters/Lusa
Foto: André Kosters/Lusa
Foto: André Kosters/Lusa


Em cena até dia 16 de novembro, a ópera conta com encenação e cenografia assinada em conjunto por Nuno Carinhas e Ana Vaz. Em palco estará, além do Coro do Teatro Nacional de São Carlos, a Orquestra Sinfónica Portuguesa, um elenco essencialmente composto por cantores líricos nacionais.

Com direção musical de José Eduardo Gomes, “Blimunda” tem nos principais papéis vozes como Dora Rodrigues, Julian Hubbard, Luís Rodrigues, Maria Luísa de Freitas ou Luís Madureira.

Nuno Carinhas desenvolveu vários quadros em que decorre a ação. Desafiante para si foi resolver a questão dos “sonhos”. “Temos o João Alexandrino, também conhecido como JAS, que desenha ao vivo os sonhos”, indica o encenador que acrescenta: “era importante ter outra linguagem que não fosse a linguagem das palavras e do canto que nos clarificasse que aquilo que estamos a ver são sonhos e o JAS faz desenhos em areia em direto e ao vivo”.

Questionado sobre o facto de participar nas comemorações do centenário do Prémio Nobel da Literatura, Nuno Carinhas confessa que se sente “honrado” e fala mesmo num “desígnio cultural artístico de uma oportunidade única”.

É com espanto que Nuno Carinhas diz que estranha o facto da ópera “Blimunda” “estar inativa há 30 anos”. “Não faz grande sentido, porque ela tocada é belíssima, e poderia ser parte de reportório de qualquer casa” de ópera, refere o encenador.




“Vigência da obra de Saramago” e a “capacidade de estimular é de uma grande emoção”

É com emoção que Pilar del Rio olha para este ano do centenário de José Saramago e recorda como em Portugal, mas também em outras partes do globo, se leu, representou ou editou a obra do escritor com quem esteve casada.

A presidente da Fundação Saramago, que faz um balanço positivo das comemorações, considera que “Saramago está muito, muito vivo”. “Há uma vigência da obra de Saramago, uma capacidade de estimular tão grande, que é de uma grande emoção”, afirma Pilar del Rio, que se questiona que outro escritor provocaria esta inquietação nos leitores.

A viúva de Saramago editou neste ano do centenário o livro “A Intuição da Ilha” (ed. Porto Editora). É uma obra que narra os dias passados na ilha de Lanzarote, em Espanha, a que Saramago passou a chamar casa, em 1992, depois de uma polémica em torno do livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, em Portugal.

Ao Ensaio Geral, Pilar del Rio explica que escreveu este livro durante a pandemia, impulsionada pelos pedidos dos “trabalhadores da casa” de Lanzarote, para que partilhasse as memórias dos dias do Nobel na ilha. “É uma tentativa para que leitores de Saramago encontrem outras facetas do autor”, diz a autora.

Embora José Saramago tenha ele próprio escrito os “Cadernos de Lanzarote”, neste livro “A Intuição da Ilha” Pilar del Rio lança um olhar diferente sobre as vivências da etapa final da vida do escritor.


Foto: Daniel Mordzinski
Foto: Daniel Mordzinski

“Quis contar o que Saramago não contou. Que ambiente havia na casa, e nele mesmo quando começava a escrever um romance. Porque escreveu o ‘Ensaio sobre a Cegueira’, ‘Todos os Nomes’, ‘Ensaio sobre a Lucidez’, ‘‘A Viagem do Elefante’, os livros que escreveu em Lanzarote. Conto o momento, o que se estava a passar com Saramago, no mundo, na casa, que conversas, que intuição, que pergunta Saramago tinha feito para dedicar os seguintes meses ou anos à escrita dos livros”, conta Pilar del Rio.

Nas palavras da presidente da Fundação Saramago, “A Intuição da Ilha” é uma “passadeira” para os leitores entrarem no universo literário do autor de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Mas há no livro também pormenores mais domésticos, como “a vida dos cães da casa”, ou as personalidades que se cruzaram à mesa de refeições da casa.

Com prefácio de Fernando Gómez Aguilera, “A Intuição da Ilha” inclui 24 páginas de fotografias do arquivo privado da Fundação Saramago, a instituição que na segunda-feira divulgará quem é o vencedor do Prémio Literário Saramago deste ano.

As sete vidas de José Saramago

Teve o seu primeiro livro aos 12 anos, na juventude pediu um empréstimo de 300 escudos a um amigo, para comprar livros. A sua primeira estante foi o armário da cozinha. Só aos 58 anos, José Saramago se assumiu como escritor, com a publicação de “Levantado do Chão”. Aos 76 anos, venceu o Prémio Nobel da Literatura.

A história das várias vidas do escritor português é agora contada no livro “As 7 Vidas de José Saramago” (ed. Companhia das Letras) da autoria de Miguel Real e Filomena Oliveira. A biografia que mistura os dados cronológicos sobre a vida do autor, com a análise da sua obra literária, revela os detalhes do escritor que teve uma infância marcada pela escassez.

“Filho e neto de um casal rural”, indica Miguel Real, José Saramago teve uma formação literária muito feita a seu custo. O biógrafo recorda que Saramago, “quando trabalhava na manutenção do Hospital de São José, ia à noite estudar e preencher as deficiências da sua formação para a Biblioteca Municipal Galveias, que era a única aberta até à noite. Lia tudo o que podia”.


Foto: Inácio Rosa/Lusa
Foto: Inácio Rosa/Lusa

Esta poderia parecer uma vida de alguém que não nasceu para ser escritor, mas José Saramago teve mais vidas. Trabalhou numa companhia de seguros, e mais tarde numa editora. Militante do Partido Comunista, Saramago entrou para o universo dos jornais na década de 1970 e tornou-se cronista.

Quando se dá a revolução do 25 de Abril, era diretor do Diário de Notícias. Miguel Real chama a atenção para um dado que a biografia vem esclarecer. Saramago “não está na sessão onde os 24 foram saneados ou expulsos do Diário de Notícias. Ele falou antes, disse que eles não eram dignos de estar num diário popular, mas não votou o saneamento deles. É um mito que Saramago saneou 24. Não saneou. Mas também não fez nada para que eles ficassem. Não é Abel, nem Caim, está numa situação intermédia”, clarifica.

A quarta de sete vidas de Saramago começa quando se torna escritor e lança o “Levantado do Chão”. Depois disto, muitos outros livros se seguiram: “Memorial do Convento”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e outros, na vida de um autor que tem como marca a coerência, explica a biógrafa Filomena Oliveira.

“Nunca troca a sua coerência, a sua honestidade e luta constante contra as injustiças sociais. Ele próprio diz que se lhe fosse dado à escolha entre a justiça social e o Nobel, ele escolheria a justiça social. Também é um comunista até ao final, mesmo dizendo que é só um comunista de coração, mesmo não estando de acordo com a expressão política nas sociedades que se dizem comunistas”, explica a autora, que com Miguel Real criou a peça de teatro “Memorial do Convento”, ainda hoje em cena no Convento de Mafra.


Artigos Relacionados