Da Ucrânia para Portugal. Mudar de vida num par de horas

Kateryna e Ihor eram professores universitários. Romana trabalhava na área logística. Nenhum deles pensou ter de abandonar familiares, amigos, casas e bens de um momento para o outro. Escolheram Portugal para começar de novo, país a que, desde o início do conflito, mais de 16 mil ucranianos já pediram proteção temporária

21 mar, 2022 - 20:53 • Ana Catarina André



Kateryna Ostrovska e Ihor Ostrovsky fugiram da guerra com os dois filhos e os pais idosos. Foto: Miguel Rato/RR
Kateryna Ostrovska e Ihor Ostrovsky fugiram da guerra com os dois filhos e os pais idosos. Foto: Miguel Rato/RR

É tudo novo: a cidade, as pessoas, a língua e até os sonhos. Até há poucos dias, Kateryna Ostrovka, de 56 anos, e o marido, Ilhor Ostrovski, de 57, eram professores universitários em Lviv, no oeste da Ucrânia. Tinham uma vida estável, uma família unida, um emprego de que gostavam, uma casa e dois carros. Esperavam ver os filhos crescer no país e passar ali a reforma.

Agora, moram numa casa emprestada, não sabem durante quanto tempo; contam com o apoio gratuito de um advogado, para se legalizarem em Portugal; e com a solidariedade de uma organização que se disponibilizou a pagar os medicamentos do filho mais velho, de 27 anos, com deficiência profunda.

Não têm trabalho, nem sabem se poderão exercer aqui as suas competências profissionais. “Somos como crianças perante uma nova realidade”, constata a professora. “Morremos e agora temos de renascer.”

Kateryna e Ilhor chegaram a Portugal há pouco mais de uma semana. Viajaram de carrinha com os dois filhos, e com os pais dele, já idosos, a mãe de 81 anos, o pai de 86. “Assim que passámos a fronteira, sentimo-nos em segurança”, recorda Kateryna. “Sabíamos que ali não iriam cair bombas”, acrescenta a ucraniana, contando que tomaram a decisão de sair do país, pouco depois da invasão russa. “Assim que começaram a soar as sirenes, percebemos que não havia outra escolha. Era preciso ir para um sítio seguro.”


Kateryna Ostrovska dava aulas de psicologia, na Universidade de Lviv. Foto: Miguel Rato/RR
Kateryna Ostrovska dava aulas de psicologia, na Universidade de Lviv. Foto: Miguel Rato/RR

Poderiam ter ficado na Alemanha, onde tinham vários contactos em universidades e instituições do ensino superior, mas preferiram vir para Portugal, onde mora o irmão de Kateryna.

“Viemos para cá, não só porque queríamos estar juntos, mas porque aqui há um ambiente de solidariedade, de humanidade, muito acima da Alemanha. E isso agora é o mais importante”, afirma a refugiada que, através de uma organização não-governamental de que faz parte, conseguiu ajudar mais de uma centena de pessoas a fugir.

Os primeiros dias “não têm sido fáceis”, conta Ihor. “A nossa filha mais nova – é adolescente – não aceita morar noutro país. Quer regressar. Sente falta dos amigos. Estamos a tentar convencê-la que, agora, o mais importante é entrar aqui na escola”, diz o ucraniano. “Da nossa parte, sabemos que temos de aprender português o mais rapidamente possível, para começarmos a trabalhar. Não somos de estar parados.”

Chegar a Portugal e deixar o marido a combater na Ucrânia

Tal como Kateryna e Ihor, mais de 16 mil ucranianos pediram proteção temporária a Portugal, desde que a guerra começou, a 24 de fevereiro. É também o caso de Romana Khoma, que chegou a Lisboa com os dois filhos. O marido é militar e ficou na Ucrânia. “Não conseguimos sequer despedir-nos”, conta, emocionada.


Romana Khoma e o filho Alexander estão alojados em casa de familiares que viviam em Portugal. Foto: Miguel Rato/RR
Romana Khoma e o filho Alexander estão alojados em casa de familiares que viviam em Portugal. Foto: Miguel Rato/RR

Decidiu fugir no dia em que começou a ouvir o estrondo das bombas que rebentavam na base militar mais próxima de sua casa, na zona ocidental da Ucrânia, perto de Lviv. “Acordei e fui à cozinha. Percebi que não tinha comida suficiente para o meu filho mais novo, que tem várias intolerâncias alimentares. Nesse momento, não pensei em mais nada. Comprei os bilhetes de autocarro e, com os meus dois filhos, de 11 e 17 anos, apanhei um táxi para a estação. De lá, seguimos para Lviv, e depois para a Polónia”, conta Romana.

A viagem foi assustadora, revela. “Havia muitos postos militares, muitos tanques a circular. Como era noite, não sabíamos se [os militares] eram nossos ou deles [dos russos]. O motorista era um homem psicologicamente muito forte e saiu várias vezes do autocarro para pedir às pessoas para nos deixarem passar. Éramos só mulheres e crianças.”

Há várias semanas que a Oksana Shynka, a irmã mais nova de Romana, imigrante em Portugal há mais de uma década, insistia com a família, na Ucrânia, para terem toda a documentação em dia, caso fosse precisar sair rapidamente do país. “Eu e a minha mãe, que também já vivia em Portugal, estamos muito felizes por tê-los connosco, mas naturalmente preocupados. Sabemos que a guerra continua e que está cada vez pior.”


Oksana Spynka e  Romana Khoma são irmãs. Nasceram na zona de Lviv. Foto: Miguel Rato/RR
Oksana Spynka e Romana Khoma são irmãs. Nasceram na zona de Lviv. Foto: Miguel Rato/RR

Em Lisboa, e além do apoio da família, Romana e os filhos têm contado também com a ajuda de muitos portugueses. Ofereceram-lhes vestuário, produtos de higiene e comida. “A roupa era nova. Vinha ainda com as etiquetas e com um talão de troca”, conta, com a voz embargada. “Também recebemos apoio da junta de freguesia que vai pagar uma parte dos passes para nos conseguirmos deslocar.”

O filho mais novo, de 11 anos, já foi à primeira aula, em ucraniano, numa escola em Benfica, e prepara-se para ter aulas online com os professores que tinha na Ucrânia, até estar inscrito num estabelecimento de ensino, em Portugal. O mais velho, de 17, tem uma oportunidade de começar a trabalhar, em breve – aguarda apenas a obtenção da necessária documentação. “Como ele completa 18 anos no verão, tive medo de que não o deixassem passar na fronteira”, assume. “Sei que ele também desejava ficar e lutar– o pai e os amigos estão lá. Felizmente temos conseguido convencê-lo que tanto eu, como o irmão, precisamos dele.”

Romana trabalhava na área logística de um supermercado, na zona de Lviv, mas nos últimos meses esteve de baixa, na sequência de complicações de saúde provocadas pela Covid-19. Já está a ser acompanhada no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, mas provavelmente não poderá voltar à vida ativa nas próximas semanas.

Vive angustiada com a possibilidade de o marido poder ser atingido pelas bombas, mas também com o teor de algumas mensagens que circulam nas redes sociais, vindas de ucranianos que decidiram permanecer no país. “Dizem que eles é que são fortes, porque decidiram ficar e lutar pelo nosso país. Isto emocionalmente é muito difícil gerir.”


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