Dentro de um colonato. O rabi de espingarda às costas que vê Abraão da janela do quarto

Por razões ideológicas ou de segurança, mais de meio milhão de colonos desafiam a lei internacional e vão encurtando o espaço para um futuro estado palestiniano. Reportagem num dos maiores aglomerados de colonatos na Cisjordânia, onde a retirada de Gaza em 2005 é usada para justificar a presença israelita no território.

07 dez, 2023 - 07:44 • Catarina Santos , enviada da Renascença ao Médio Oriente



Migdal Oz e a relação com os vizinhos palestinianos. "A suspeição está sempre lá"
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Uma fila verde, uma fila roxa. Num padrão desenhado com minúcia, alinham-se 11 mil alfaces numa estufa a sul de Belém, na Cisjordânia. São cultivadas com recurso a tecnologia hidropónica e dependem apenas de água para crescer, não precisam de fixar raízes no solo. Uma raridade por estes lados, onde a terra é sempre fator de divisões.

“Conseguimos cultivar um milhão de alfaces por ano”, explica, orgulhoso, Benjy Myers, responsável pela unidade de resposta civil do colonato de Migdal Oz. É produção a mais para as cerca de 400 pessoas que ali vivem. Grande parte é vendida para fora.

Sempre de arma às costas, o colono percorre o corredor entre as estufas até chegar a uma área aberta, de onde se avista um casario, para lá da vedação de arame farpado. A cidade palestiniana de Beit Fajar tem cerca de 11 mil moradores e fica mesmo ali ao lado – mas desde 7 de outubro está um pouco mais longe. “Neste momento há um corte de estrada e os carros não podem entrar nem sair”.

Desde 7 de outubro, a rua que contorna a fronteira sul do colonato de Migdal Oz está interdita, apenas o exército pode utilizá-la. O que força as populações a percorrer distâncias bem maiores para circular naquela área. Uma medida que resulta do “potencial de ataques” ao colonato, explica Myers.

“Guiam até ao portão e tentam atacar o guarda, atiram contra as pessoas que estão aqui, atiram cocktails molotov”, afirma, referindo-se ao período antes da guerra em curso. “Esta não é uma boa maneira de viver. Se soubéssemos que não vinham ataques de Beit Fajar, todos poderiam usar esta estrada e viver felizes”, lamenta o colono, antes de prosseguir a visita guiada ao sítio onde escolheu viver.


Aldeia palestiniana de Beit Fajar, vista do colonato vizinho de Migdal Oz. Foto: Catarina Santos/RR
Aldeia palestiniana de Beit Fajar, vista do colonato vizinho de Migdal Oz. Foto: Catarina Santos/RR
Benjy Myers na estufa das alfaces, colonato de Migdal Oz, Cisjordânia. Foto: Catarina Santos/RR
Benjy Myers na estufa das alfaces, colonato de Migdal Oz, Cisjordânia. Foto: Catarina Santos/RR


Rabi e pai de seis filhos, Benjy Myers é um homem viajado. Nasceu no Reino Unido, viveu em Israel em criança, depois na Austrália, novamente no Reino Unido, fez “Aliyah” (termo que designa a imigração de judeus para Israel) e regressou, mas depois ainda passou cinco anos nos Estados Unidos. Desde 2011 vive em Migdal Oz, um de vários colonatos que compõem o complexo de Gush Etzion. É dos maiores e mais antigos aglomerados de colonatos na Cisjordânia e fica a sul de Jerusalém, entre Belém e Hebron.

O motivo para decidir fixar residência ali merece-lhe uma explicação histórica extensa, mas os seus olhos brilham de particular entusiasmo na seguinte passagem: “A estrada principal a oeste de nós chama-se ‘Derech haʾAvot’, o Caminho dos Patriarcas. Falamos de Abraão, Isaac e Jacob. Olho pela janela do meu quarto e sei que estou no mesmo lugar onde os meus patriarcas caminharam.”

Depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando o país ainda debatia se deveria construir colonatos na Cisjordânia, Gush Etzion foi visto como uma exceção, pelo simbolismo que o lugar ocupava no imaginário nacional. Quatro colonatos judaicos que ali se tinham estabelecido na década de 1940 foram destruídos durante a guerra israelo-árabe de 1948, tendo sido massacrados cerca de 150 judeus na véspera da declaração de independência de Israel.

O kibutz de Kfar Etzion foi o primeiro colonato a ser reestabelecido em território palestiniano, logo em 1967. Migdal Oz viria dez anos depois e a pouco e pouco foram nascendo as outras aldeias que compõem a segunda vida de Gutsh Etzion – e que em 2015 já ocupava uma área 30 vezes maior do que a original.


Fonte: OCHA/ONU. Ilustração: Rodrigo Machado/RR
Fonte: OCHA/ONU. Ilustração: Rodrigo Machado/RR

O colonato onde escolheu viver tem uma história ainda mais antiga, assegura Myers. “O motivo para este local se chamar Migdal Oz é porque foi construído sobre as ruínas de um antigo colonato judeu chamado Migdal Eder”, que terá sido fundado por judeus iemenitas e destruído em 1929. “Antes da criação do estado de Israel, antes da resolução da ONU de 1947 e antes da Guerra dos Seis Dias, houve um ‘pogrom’ [perseguição] contra os judeus, principalmente em Hebron, mas também na zona de Gush Etzion e em Jerusalém, e esta cidade de Migdal Eder foi destruída”, conta.

“Migdal significa ‘torre’ e Eder significa ‘rebanho’”, explica Myers. “Em 1977, quando este kibutz foi fundado, ficamos com o nome Migdal, mas mudamos o segundo para ‘Oz’, que significa “força”. Vemo-nos como uma ‘torre de força’, contruída nos ombros dos gigantes que vieram antes de nós.”

O entusiasmo na voz de Benjy Myers torna-se sempre mais intenso quando mergulha na explicação das ligações históricas ao local. “Ser um elo na cadeia da história judaica é algo de que tenho extremo orgulho e algo que quero que continue com os meus filhos, netos e por aí adiante”, conclui.

Uma passagem pela vacaria local, onde Myers faz ocasionalmente algumas horas de serviço comunitário, sintetizaria bem este sentimento.


A "promessa divina" que se revela na ordenha das vacas

A Cisjordânia foi dividida em três áreas pelos Acordos de Oslo, em 1993, numa solução que deveria ser temporária, até um acordo de paz final ser alcançado.

Hoje, 30 anos depois, cerca de 2,8 milhões de palestinianos vivem acantonados em enclaves entre as áreas A e B (controladas, total ou parcialmente, pela Autoridade Palestiniana). A área C (mais de 60% do território) é inteiramente controlada por Israel. É onde se localizam os colonatos, que têm já mais de meio milhão de habitantes.

De acordo com várias resoluções das Nações Unidas (ONU) – a última das quais aprovada em 2016, com abstenção dos Estados Unidos – e a interpretação internacional mais comum da IV Convenção de Genebra, todos os colonatos israelitas nos territórios palestinianos ocupados em 1967, incluindo na zona oriental de Jerusalém, são ilegais. São vistos como um dos maiores entraves a uma solução de paz para a região, por ocuparem território que deveria estar destinado a um futuro estado palestiniano. Expandindo-se cada vez mais e fraturando as ligações entre cidades palestinianas podem sabotar a hipótese de esse intento alguma vez se concretizar.

Israel discorda da interpretação: defende que a IV Convenção não se aplica aos territórios palestinianos ocupados e considera a maioria dos colonatos legais. Benjy Myers acusa “o mundo" de injustiça: “Tanto quanto entendo da lei internacional, estes são territórios disputados, o que significa que são disputados por todos. Todos os lados envolvidos dizem que esta é a sua terra. A solução para isso é por via da negociação, da diplomacia, mas é uma disputa”, defende.

Pela lógica do rabi, não faz sentido enfrentar restrições de construção e passar por uma cadeia burocrática que vai “de gabinetes relevantes do governo” até “ao presidente dos Estados Unidos” caso queira fazer “uma pequena extensão de um metro quadrado” na sua casa.

"É uma disputa. É algo que pode ser resolvido. Mas quando alguém está a disparar contra ti, não é o momento para lhes oferecer uma chávena de chá."

Desde 2012, ano em que Myers fixou residência no colonato de Migdal Oz, 6622 infraestruturas palestinianas foram demolidas na área C, resultando em mais de 7900 deslocados. Os dados são do Gabinete de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU (OCHA, na sigla inglesa).

Estes números dizem respeito a infraestruturas como casas, abrigos de animais, cisternas ou edifícios comunitários. Mais de 6500 destas construções foram demolidas com o argumento de que não tinham licenças de construção – o que pode acontecer, como o rabi refere, por ter sido feito algum melhoramento no edifício. Algo que está extremamente limitado em toda a área C.

Em teoria, estas limitações aplicam-se a palestinianos e israelitas, mas o constante crescimento de colonatos na Cisjordânia torna evidente que as regras não são aplicadas de igual forma entre os dois lados. Estima-se que pelo menos meio milhão de colonos vivam hoje na Cisjordânia, espalhados pela área C, e mais de 200 mil na zona oriental de Jerusalém. Eram perto de 100 mil em 1993, quando os Acordos de Oslo foram assinados.

Questionado sobre as constantes denúncias de palestinianos e de organizações humanitárias sobre demolições e apropriações de terras, Myers retoma a mesma argumentação, mas recentra-a no cenário de guerra atual: “Claro. É uma disputa. É um debate. É algo que pode ser resolvido. Mas neste momento eles estão a disparar – balas e rockets. E quando alguém está a disparar contra ti, não é o momento para lhes oferecer uma chávena de chá.”

“Não tenho outra escolha se não suspeitar”

Antes de 7 de outubro, era comum ver trabalhadores palestinianos nos colonatos e Migdal Oz não era exceção. “Quando é possível, queremos ter relações amigáveis – e temos – com palestinianos à nossa volta. Temos palestinianos que vêm trabalhar no kibutz, conseguem ter um meio de sustento por trabalharem aqui. Apoio totalmente isso”, garante o rabi.


Casa no colonato de Migdal Oz, Cisjordânia. Foto: Catarina Santos/RR
Casa no colonato de Migdal Oz, Cisjordânia. Foto: Catarina Santos/RR
Casario de Alon Shvut, no aglomerado de colonatos de Gush Etzion, com vista para a Estrada 60, Cisjordânia. Foto: Catarina Santos/RR
Casario de Alon Shvut, no aglomerado de colonatos de Gush Etzion, com vista para a Estrada 60, Cisjordânia. Foto: Catarina Santos/RR


Desde 7 de outubro, todos os palestinianos estão impedidos de se aproximar dos colonatos. “Infelizmente, por causa das experiências passadas, por causa da ideologia e da teologia do Hamas, da Jihad Islâmica e vários outros, que afirmam que me querem matar, eu não tenho outra escolha se não suspeitar. O que significa que tenho de ter o exército aqui, que tenho de ter ruas cortadas, que as pessoas têm de ser revistadas quando vêm ao kibutz.”

Mas não é só nos acessos aos colonatos que a restrição de movimentos se agudizou. Quando a Renascença percorreu os 50 quilómetros que separam Belém de Hebron, encontrou várias entradas de aldeias palestinianas cortadas, com barricadas montadas pelo exército israelita e soldados a controlar quem pode passar. Em grande parte só é permitida a circulação a pé, os moradores ficam impedidos de utilizar o próprio carro.

O responsável pela unidade de resposta civil de Migdal Oz acredita que há motivos para essa desconfiança coletiva. “Se olharmos para as percentagens, para as sondagens que dizem quem apoia o Hamas, sim, sem dúvida: há uma ameaça potencial de todos estes lugares”, sustenta.

Ataques de colonos: "As pessoas não devem tomar a lei nas suas mãos. Contudo, sejam justos. As minhas crianças têm de ir para a escola num autocarro à prova de bala. Porquê?"

Para o rabi, em termos de perigo, não há distinção entre viver num kibutz vizinho da Faixa de Gaza ou num colonato na Cisjordânia, porque está convencido de que se houvesse hoje eleições na Cisjordânia o Hamas venceria.

E mesmo que não vencesse, Myers não vê motivos para olhar os vizinhos com menos desconfiança. “A diferença entre o Hamas e a Fatah, no que toca à forma como veem o papel do povo judeu nesta parte do mundo, não é assim tão grande. A Autoridade Palestiniana ficaria muito contente se Israel não estivesse aqui”, defende. E não se refere apenas à Cisjordânia. “A expressão ‘do rio até ao mar, a Palestina será livre’ não é ‘exceto as partes no meio que em 1967 isto e em 1947 aquilo…’. Significa do rio Jordão ao Mediterrâneo, queremos tudo e não queremos os judeus aqui”, remata.


A comunidade no centro do colonato. "A coexistência é possível, se não estiverem a tentar matar-nos"

Desde o início da guerra entre Israel e o Hamas, o OCHA dá conta de mais de 240 palestinianos mortos na Cisjordânia, incluindo mais de 60 menores – o que faz de 2023 o ano mais mortífero desde 2005, quando aquele organismo começou a reunir dados. A maioria das vítimas resultou de rusgas de forças israelitas, mas os colonos são responsáveis por pelo menos oito mortes e 80 feridos.

Apesar de as ocorrências já não estarem em níveis tão intensos como as primeiras semanas de conflito, há relatos de mais de 300 ataques diretos de colonos a palestinianos e mais de 200 ataques às suas aldeias e propriedades de cultivo. Um terço destes incidentes incluíram ameaças com armas de fogo. Em cerca de metade, as forças israelitas acompanhavam ou apoiavam ativamente os atacantes. Mais de mil pessoas foram obrigadas a abandonar as suas casas.


Na Cisjordânia, os colonos já não disparam para o ar. Zakaria quase morreu, a sua aldeia recusa render-se


Benjy Myers, que nunca larga a sua espingarda – e que durante a entrevista a mantém aos pés – relativiza. “Faço-lhe uma pergunta: de quantos incidentes ouviu falar relacionados com lançamento de pedras contra carros israelitas? E de carros com a matrícula amarela israelita serem alvo de tiros? Há outras coisas a acontecer? Sim, infelizmente. E a lei tem de lidar com isso. As pessoas não devem tomar a lei nas suas mãos. Contudo, sejam justos”, volta a reclamar.

“As minhas crianças têm de ir para a escola num autocarro à prova de bala. Porquê? Porque é que isso não é reportado todos os dias? Porque é que é só quando uma percentagem muito, muito pequena de elementos extremistas [faz algo]?”

De acordo com os dados do OCHA, desde 7 de outubro, quatro israelitas, incluindo três membros das forças de defesa, foram mortos por palestinianos na Cisjordânia e na zona oriental de Jerusalém. Outros quatro foram mortos na zona ocidental de Jerusalém, num ataque reclamado pelo Hamas a 30 de novembro.


Fonte: OCHA/ONU e B
Fonte: OCHA/ONU e B'Tselem. Rodrigo Machado/RR

Entre 1 de janeiro e 6 de outubro de 2023, de acordo com dados da organização israelita de defesa dos direitos humanos B’Tselem, 17 civis israelitas e dois elementos das forças de defesa israelitas foram mortos por palestinianos na Cisjordânia. No mesmo período, seis civis palestinianos foram mortos por civis israelitas e 153 pelas forças de defesa israelitas

Colonatos retirados da Cisjordânia? “Seria um dia triste”

Há dois meses, a 7 de outubro, Benjy Myers era dos poucos membros do colonato que estava contactável. Por chefiar a unidade de resposta civil, tem de ter o telemóvel sempre à mão (ao contrário da maioria dos habitantes, que não mexem em aparelhos eletrónicos durante o sabat). Recebeu uma mensagem da filha mais velha, que vive em Ashkelon, junto à fronteira com Gaza, a dizer “estou bem”. “Só mais tarde percebemos que nada estava bem”, recorda.

Entretanto, ouviram sirenes nas comunidades em volta, os rumores espalharam-se, um terço dos homens foram chamados de imediato para as unidades de reserva. “A comunidade ficou sem a primeira linha de defesa”.

"Se fosse o necessário para trazer a paz, de verdade – e não como quando saímos em 2005 de Gaza – seria um preço que poderia valer a pena pagar "

Há dois alarmes que podem tocar no colonato: um de aviso de rockets, que dá 19 segundos para chegar a um abrigo; outro com uma voz em hebraico que alerta para “infiltração terrorista”.

“Pelas 20h30/21h de domingo esse alarme soou. Ouvem-se tiros que pareciam vir de dentro do kibutz, o alarme toca e todos têm de reagir”, conta. “Pensamos que ia acontecer aqui o que tinha acontecido no sul.” Não aconteceu, mas desde então há soldados 24 horas por dia a vigiar o local.

Durante a visita ao colonato, passamos por um treino de uma dessas unidades. Vários militares surgiam agachados de trás dos arbustos e muros das casas, de arma pronta a disparar, enquanto outro elemento desenhava um ataque imaginário, dava instruções e tratava da sonoplastia, gritando incessantemente “BAM, BAM, BAM!”.

Myers vê o que aconteceu a 7 de outubro como “um ponto de viragem – não tanto para Israel, mas para o mundo”, esclarece. “Nós sabemos o que é o Hamas há algum tempo. O mundo nem por isso, ou fingiu que não via”, defende. “O que aconteceu a 7 de outubro é o Hamas no seu estado puro – e glorifica a morte.”


Posto de vigia num cruzamento junto aos colonatos de Gush Etzion, a 2 de fevereiro de 2023. Foto: REUTERS/Dedi Hayun
Posto de vigia num cruzamento junto aos colonatos de Gush Etzion, a 2 de fevereiro de 2023. Foto: REUTERS/Dedi Hayun

Considera, por isso, que a prioridade do governo e do exército tem de ser “arrancar o mal”, erradicar o Hamas, sustentando que “não há outra opção para continuarmos a viver”.

Depois, talvez já seja possível sentar-se a “tomar um chá”, como referia antes.

“No futuro, se me pergunta num plano ideal, adorava ver as pessoas a viver lado a lado. Não sei se a resposta é uma solução de dois estados ou de um estado, mas se for uma solução de dois estados ficarei muito preocupado com os judeus que vivam num estado palestiniano, porque sabemos o que acontece aos judeus em terras árabes, vimos em 1948”, desabafa.

E se essa solução, para ser realmente viável, implicasse que todos os colonatos fossem removidos da Cisjordânia? “Seria um evento muito, muito triste, porque temos uma ligação de mais de 4000 anos a este lugar”, começa por responder.

“Se isso fosse o necessário para trazer a paz, de verdade – e não como quando saímos em 2005 de Gaza – seria um preço que poderia valer a pena pagar”, admite. Mas não acredita que seja uma solução. “Não sei como se consegue garantias disso, tendo em conta que tivemos garantias no passado e elas foram destruídas por rockets”, remata.

O colonato-fortaleza das irmãs Goldstein

“Se lhes dermos estes lugares, vão disparar contra Telavive a partir daqui”, ouvimos a seis quilómetros de distância, no colonato de Neve Daniel, onde vivem cerca de 3000 pessoas. Fica no ponto mais alto de Gush Etzion, quase mil metros acima do nível do mar – o que, nas palavras de Benjy Myers lhe assegura “o melhor tempo de Israel”, com “brisa agradável” no Verão e neve no Inverno.

De alguns pontos do colonato é possível, em dias limpos, ver Telavive a oeste e as montanhas da Jordânia a este. As casas são modernas, com jardins bem cuidados. Aparenta ter o sossego e qualidade de vida de um típico bairro de classe média alta.


Shahar, Renana e Neta Goldstein no alpendre da casa dos pais, no colonato de Neve Daniel, Cisjordânia, Foto: Catarina Santos/RR
Shahar, Renana e Neta Goldstein no alpendre da casa dos pais, no colonato de Neve Daniel, Cisjordânia, Foto: Catarina Santos/RR

Num alpendre espaçoso e virado para o pôr do sol, com outros colonatos no horizonte, as irmãs Goldstein rejeitam liminarmente a hipótese de um dia terem de deixar o lugar onde cresceram.

Renana Goldstein-Sherman tem 29 anos e viveu ali 23, na casa dos pais. Depois passou temporadas em Jerusalém e nos Estados Unidos. Agora vive no “moshav” (vila comunitária) de Nes Harim – do outro lado da vedação que separa Israel da Cisjordânia – com o filho de quase dois anos e o marido, que é militar.

“Estávamos aqui no ‘Sábado Negro’ – não sei como lhe chamam em Portugal – e, depois da segunda sirene, por volta das 9h, ele saiu de casa e juntou-se à sua unidade de paraquedistas.”

Ela e o filho não regressaram a casa desde que a guerra começou. “Não quero ir para casa e dormir lá com o meu bebé, porque não temos abrigo de bomba”, conta. Raramente tem notícias do marido. “Tenho as minhas irmãs aqui, que ajudam muito, mas tenho saudades de casa.”

"Estás alerta, não confias em ninguém, quando alguém se aproxima pensas imediatamente que te vai fazer mal"

Ao seu lado, sentadas à mesa do alpendre, estão Neta, de 19 anos, e Shahar, de 24. Ambas viveram toda a vida no colonato de Neve Daniel. A mais nova frequenta uma escola a 10 minutos de carro, noutro colonato. É o local onde conhece mais palestinianos.

“Todos os funcionários são palestinianos. E nas lojas também, os operadores de caixa. Os amigos que construíram esta casa e os empregados de limpeza também são palestinianos”, enumera, para sustentar que “normalmente” têm “uma boa ligação com eles.”

Mas, acrescenta de imediato, “também é sempre assustador.”


Fonte: OCHA/ONU. Ilustração: Rodrigo Machado/RR
Fonte: OCHA/ONU. Ilustração: Rodrigo Machado/RR

“Eu saio da aldeia e tenho sempre medo que alguém me faça algo”, como “quando vou na rua e algum palestiniano começa a buzinar, às vezes a gritar”, explica. “É complicado. Por um lado, estamos em paz com eles, e por outro é muito assustador estar perto deles.”

Todos esses medos ficam trancados fora do colonato, vedado e vigiado permanentemente por militares. “Ontem estava a conduzir e já estava escuro, por um instante pensei que alguém me podia apontar uma arma, mas sabia que não era real. Estamos muito alerta. Mas aqui [dentro] sinto-me muito segura”, acrescenta Renana.

Shahar, a irmã do meio, corrobora. “Acho que tive uma infância maravilhosa, não me sinto com medo a maior parte do tempo, exceto quando há um ataque terrorista.” Como o que presenciou quando tinha 17 anos.

“Estava numa paragem de autocarro e tentaram atropelar alguém. Foi difícil, estás alerta, não confias em ninguém, quando alguém se aproxima pensas imediatamente que te vai fazer mal”, descreve. “Mas na maior parte do tempo acho que a vida aqui é muito sossegada e segura. Às vezes há uma boa relação com os palestinianos. Gostava que fosse mais, mas não depende só de nós.”


Trabalhador palestiniano numa casa em construção no colonato de Neve Daniel, a 14 de junho de 2009. Foto: REUTERS/Ronen Zvulun
Trabalhador palestiniano numa casa em construção no colonato de Neve Daniel, a 14 de junho de 2009. Foto: REUTERS/Ronen Zvulun

Minutos antes, Shahar abraçava as irmãs e o sobrinho como se não se vissem há uma eternidade. Foi chamada pera o exército e acabou de regressar para uma licença de 24 horas. Integra a reserva de uma unidade de busca e salvamento.

Está a contar com uma guerra prolongada, porque desta vez não aceita outro resultado que não a total destruição do Hamas. “Viu o que eles fazem. Não têm misericórdia. Até serem destruídos completamente, espero que não pare. Quero viver sossegada, quero poder circular no meu país e sentir-me segura, sabendo que ninguém me vai tentar atacar e que os meus amigos – e um dia os meus filhos – poderão ir a qualquer lugar sem medo de que, de repente, nos tentem bombardear.”

Sabendo que isso significa ficar mais tempo sem ver o marido, a irmã mais velha também conta com uma guerra longa. “Infelizmente, acho que vai durar, porque vimos que o Hamas não é só mais um pequeno grupo terrorista, é um verdadeiro exército”, sublinha Renana.

“Nas últimas noites não consegui dormir, porque o meu marido está lá e não posso falar com ele, não sei o que se passa com ele.” Apesar dos custos pessoais, não hesita: “Eles declararam que não nos querem aqui, querem toda esta terra, querem eliminar o estado de Israel, por isso temos de lutar contra eles e de garantir que não existirão mais.”

A violência dos colonos e o “propósito” dos colonatos

Casos como o de Zakaria Adra, que foi atingido a tiro à queima-roupa por um colono, numa aldeia do sul de Hebron visitada pela Renascença, não são isolados e têm aumentado desde 7 de outubro em toda a Cisjordânia. Renana diz que tem acompanhado, que sabe que “alguns colonos são violentos”, mas acredita que “todos os judeus condenam” essas ações.

“Fico furiosa quando um judeu faz isso, porque não é aquilo em que acredito e porque faz com que todos pareçamos violentos. Estamos a tentar não o ser, estamos a tentar proteger os civis, seguir uma moral, mas estes episódios são muito, muito maus”, considera. Contudo, complementa de imediato: “há muitos mais vindos do outro lado”.


Linha de tiro no complexo de colonatos de Gush Etzion, a 26 de outubro de 2023. Desde 7 de outubro, a procura de licença de portae de arma disparou em Israel. Houve mais de 225 mil candidaturas, das quais cerca de 20 mil foram aprovadas. Foto: Giovanni Porzio/contrasto via Reuters Connect
Linha de tiro no complexo de colonatos de Gush Etzion, a 26 de outubro de 2023. Desde 7 de outubro, a procura de licença de portae de arma disparou em Israel. Houve mais de 225 mil candidaturas, das quais cerca de 20 mil foram aprovadas. Foto: Giovanni Porzio/contrasto via Reuters Connect

À luz da lei internacional, aquele território, onde se erguem as bonitas casas de Neve Daniel, deveria um dia fazer parte de um futuro estado palestiniano. A ONU considera que todo aquele bairro é ilegal, como todos os colonatos na Cisjordânia. As irmãs Goldstein não veem a questão assim.

“É fácil olhar para isto como se o problema fossem os colonatos na Cisjordânia, mas não é. Porque eles dizem que não querem saber, querem ‘do rio até ao mar’”, argumenta Renana. “Eles não querem [o que está aqui desde] 1967 ou 1948, eles querem tudo, não importa. Eles chamam a Telavive um colonato”, nota.

"Nós dávamos-lhes os colonatos, de toda a Cisjordânia, e todo o território de Israel seria atacado."

Renana trava um pouco a generalização. “Claro que não digo que todas as pessoas individualmente vejam isto assim. São as lideranças, as organizações terroristas e muitas outras pessoas em volta [que pensam isto]”, afirma. E logo retoma: “Pode ver o que acontece quando têm um regime, como em Gaza, o que fazem.”

Enquanto a irmã mais velha falava, Shahar foi brincando com o sobrinho no relvado ali ao lado, correndo, rindo. Quando regressa à mesa muda de expressão.

Advoga que a comunidade internacional apoia a causa palestiniana porque "parece que Israel é forte e eles não são." Tem uma explicação para isso: "Não é por sermos mais espertos ou algo do género, nós queremos viver em paz. Pegamos no dinheiro que temos e construímos escolas, infraestruturas, aplicamos na educação, para que as pessoas possam estudar na universidade e ter sucesso. Mas lá todo o dinheiro vai para a guerra, para os túneis e não vai para os civis, de todo", afirma, numa torrente que sai como um disparo.

E retoma a deixa da irmã sobre as lições de Gaza. “Nós dávamos-lhes os colonatos, de toda a Cisjordânia, e todo o território de Israel seria atacado. Eles não viveriam em paz. Isso foi o que eles disseram em Gush Katif, em 2005”, afirma, referindo-se ao antigo colonato no sul da Faixa de Gaza, evacuado quando Israel se retirou do território em 2005.

“Não importa quanto lhes dermos, eles simplesmente estarão mais perto para atacar todo o país. Eles não nos querem aqui, em todo o território de Israel”, acredita Shahar.


Militar vigia o local onde um palestiniano esfaqueou um judeu, num autocarro, junto aos colonatos de Neve Daniel e Elazar, a 23 de março de 2022. Foto: REUTERS/Mussa Qawasma
Militar vigia o local onde um palestiniano esfaqueou um judeu, num autocarro, junto aos colonatos de Neve Daniel e Elazar, a 23 de março de 2022. Foto: REUTERS/Mussa Qawasma

O contraste entre a vida nos colonatos de Gush Etzion e nas vilas palestinianas em volta é evidente. Na construção, nas infraestruturas e até no acesso regular à rede de água. Um pormenor muito distintivo é facilmente percetível nos telhados – os palestinianos raramente podem dispensar cisternas para armazenamento de água da chuva, porque nem sempre a que é canalizada chega às suas casas.

Perguntamos a Shahar se acha que os palestinianos à sua volta estão em pé de igualdade em termos de oportunidades. “Se quiserem”, responde. “Mas o Hamas também tem controlo aqui, não é só em Gaza. Por isso, mesmo que 90% dos palestinianos quisessem a paz e viver como iguais, o Hamas não deixa e não lhes dá a oportunidade de ser como nós”, defende.

“Se eles querem mesmo viver em paz e não nos tentarem matar, dia sim, dia não, talvez Israel lhes possa dar os mesmos direitos que nos dá a nós”, sintetiza.

Insistimos: aceitaria imaginar um cenário em que os colonos saíssem da Cisjordânia, se a paz dependesse disso? “Mais uma vez, não é possível falar sobre isso, porque sempre que o fizemos, sempre que deixamos o sítio onde vivíamos, eles construíram mais espaços terroristas. Não há nada para discutir, porque é algo que não vai acontecer. Não tenho nada que pensar sobre isso”, remata Shahar, ainda envergando as calças do uniforme militar.



Veja também:

Dentro de um colonato. O rabi de espingarda às costas que vê Abraão da janela do quarto (Reportagem áudio longa)
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Ouça a reportagem no aglomerado de colonatos de Gush Etzion, Cisjordânia

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