A comida não cai do céu. Mas em Bruxelas cai do telhado

A falta de espaço nas cidades obriga a pensar em soluções inteligentes. É na Bélgica que está a maior horta urbana no topo de um edifício do mundo. É no telhado que são produzidos tomates, ervas aromáticas e peixes.

16 jul, 2022 - 14:00 • Tomás Anjinho Chagas



Tomates produzidos com a água dos peixes. Foto: BIGH Brussels
Tomates produzidos com a água dos peixes. Foto: BIGH Brussels

Imagine que o peixe que come em Lisboa é produzido num telhado em Oeiras. Ou que os tomates vendidos num supermercado no Porto crescem no topo de um edifício em Matosinhos. Na Bélgica não é preciso imaginar, já acontece.

É uma porta normal de um edifício que serve o mercado de Anderlecht, perto de Bruxelas. Ao subir as escadas chega-se ao topo, e não há espaço vazio. Tudo é aproveitado, são 4 mil metros quadrados de plantações em estufa, plantações ao ar livre e de viveiros.


Mercado em Andrerlecht (Bruxelas), que tem no telhado 4 mil metros quadrados de plantações Foto: Tomás Anjinho Chagas/RR
Mercado em Andrerlecht (Bruxelas), que tem no telhado 4 mil metros quadrados de plantações Foto: Tomás Anjinho Chagas/RR
Parte da plantação de tomates no topo do edifício Foto: Tomás Anjinho Chagas/RR
Parte da plantação de tomates no topo do edifício Foto: Tomás Anjinho Chagas/RR


A empresa chama-se BIGH e quer revolucionar o abastecimento alimentar nas grandes cidades, a lógica é que se produza o que se consome. Corta-se na dependência, aproveita-se o espaço que está por utilizar e reduz-se a logística no transporte.

Com sete empregados e sete estagiários, esta empresa quer que este método de produção agroalimentar represente 30% dos alimentos consumidos em Bruxelas no futuro. Por enquanto, não chega aos 1%, mas desde 2015, altura em que foi criada, tem vindo a crescer todos os anos.

A convite do Parlamento Europeu, a Renascença junta-se a um grupo de jornalistas convidados para conhecer o projeto. A agricultura alia-se à engenharia e à biologia, a visita guiada é fascinante mas complexa.


Aquaponia no topo de um edifício em Bruxelas Foto: Nações Unidas
Aquaponia no topo de um edifício em Bruxelas Foto: Nações Unidas

Tomates e peixes trocam nutrientes

Cultivar sem terra parece contraditório, mas é uma realidade. Hidroponia é o nome dado a esta técnica que dispensa a terra, porque alimenta as plantas diretamente na raiz através de uma solução nutritiva.

Mas esta empresa vai mais longe, porque os nutrientes utilizados para fertilizar os tomates vêm dos tanques onde estão a ser criadas trutas. Os dois espaços são separados por um corredor. Do lado esquerdo há uma estufa de tomates, do lado direito estão vários viveiros- chama-se aquaponia.

Os peixes, neste caso as trutas-arco-íris, produzem uma série de nutrientes na água em que vivem. A BIGH trata a água com um filtro UV e depois é utilizada para regar os tomates, uns metros ao lado. Poupa-se na água e nos fertilizantes.

Esta é a lógica de todo o projeto, tudo se trasforma. A água da chuva é usada para as plantas e a energia consumida é quase toda produzida por painéis solares. Os sistemas de abastecimento de água são circulares e poupam mais de 90% da água que é utilizada em viveiros convencionais.


Tomates produzidos com a água proveniente dos viveiros, naturalmente adubada pelos peixes Foto: Tomás Anjinho Chagas/RR
Tomates produzidos com a água proveniente dos viveiros, naturalmente adubada pelos peixes Foto: Tomás Anjinho Chagas/RR
Tanques de viveiro onde as Trutas-Arco-Íris são produzidas, que são depois vendidas para consumo em Bruxelas Foto: Tomás Anjinho Chagas/RR
Tanques de viveiro onde as Trutas-Arco-Íris são produzidas, que são depois vendidas para consumo em Bruxelas Foto: Tomás Anjinho Chagas/RR


Corredor que separa as duas produções. Do lado esquerdo fica a estufa dos tomates, do lado direito os tanques dos peixes Foto: Tomás Anjinho Chagas/RR
Corredor que separa as duas produções. Do lado esquerdo fica a estufa dos tomates, do lado direito os tanques dos peixes Foto: Tomás Anjinho Chagas/RR

Os tomates crescem e depois de colhidos são vendidos para supermercados em Bruxelas. Os peixes acabam normalmente por ser comprados por restaurantes, também na capital belga.

“Tem a vantagem de ser servido fresco” sublinha Francçois Latrille, biólogo marinho. Este empregado da BIGH lembra que quem vive na Europa Central, normalmente, come peixe que “já foi pescado há 9, 10 ou 11 dias”.

A ideia é precisamente essa: tornar as cidades menos dependentes do ponto de vista alimentar. Produzir comida na cidade para ser consumida na cidade. O processo é mais caro, mas há passos que são cortados, a logística de transporte é mais barata, porque está tudo mais perto. Poupa-se no combustível, por exemplo.


Ervas aromáticas produzidas numa estufa em cima dos viveiros Foto: BIGH Brussels
Ervas aromáticas produzidas numa estufa em cima dos viveiros Foto: BIGH Brussels

Ervas aromáticas: a prata da casa

Em cima da estrutura onde ficam os tanques das trutas (que ficam em cima do mercado), está uma outra estufa que produz ervas aromáticas. É o negócio mais rentável da BIGH. Nesta área produzem-se cerca de 5 mil plantas por semana e como toda a lógica por detrás da empresa, tudo se aproveita.

A estufa é aquecida com o calor produzido pelos frigoríficos que arrefecem a água dos peixes. Os tubos aproveitam essa energia e levam-na do andar de baixo para o de cima. O calor necessário para a produção das plantas é grátis, na medida em que é aproveitado dos sistemas que iam libertá-lo de qualquer forma. Assim se aquecem os coentros, o manjericão e a salsa.

Francçois Latrille, biólogo marinho da BIGH explica que esta é "a produção mais lucrativa da empresa" e que "ajuda" a manter todas as outras. A maioria das ervas são vendidas a supermercados locais e uma parte segue para restaurantes da cidade.


Manjericão, salsa e coentros, produzidos no telhado deste mercado Foto: BIGH Brussels
Manjericão, salsa e coentros, produzidos no telhado deste mercado Foto: BIGH Brussels

Portugal com “mais obstáculos” e a lutar contra os preconceitos do peixe de água doce

A vontade de replicar este sistema em Portugal existe, mas há “mais obstáculos do que noutros países”, queixa-se João Cotter, CEO da Aquaponics Iberia à Renascença.

Este empresário explica que no nosso país “temos condições muito melhores para fazer aquaponia do que na Bélgica” por causa das temperaturas. No entanto, sublinha que tem havido barreiras legais que impedem a legalização de algumas espécies adequadas a este tipo de produção.

A Aquaponics Iberia implanta sistemas de hidroponia. É o que fez em Oliveira de Frades, ao instalar 600 metros quadrados de hidroponia que abastecem algumas escolas do concelho. Mas o CEO admite que em Portugal “ainda não existe nada em grande escala”.

Mas o “potencial” da hidroponia em Portugal “é elevado”, garante João Cotter, acrescentando que o país pode ainda ter um problema de menatlidade. Um deles, explica o empresário, é o “preconceito” em relação ao peixe de água doce.

“Há muito peixe bom de água doce”, afirma o CEO desta empresa, que relata que anda desde 2013 em reuniões com membros do governo para obter financiamento.

O primeiro investimento pode ser o salto necessário para a aquaponia ganhar escala em Portugal. “Falta o capital inicial para nos podermos candidatar a fundos europeus”, explica João Cotter.

A Renascença tentou contactar o Ministério da Agricultura para saber se o Governo está disposto a incentivar este tipo de produção, sem sucesso.


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