Entrevista Renascença

João Mota homenageado no Festival de Almada: “Ainda bem que se lembram de nós antes de morrermos”

16 jun, 2023 - 19:00 • Maria João Costa

Aos 81 anos, o ator e encenador João Mota é homenageado pelos mais de 65 anos dedicados ao teatro. Embora diga não gostar de honras, à Renascença mostra-se satisfeito. “É bom sinal. É sinal que alguma coisa ficou”, diz numa conversa em que critica o atual estado da educação. Professor durante mais de três décadas na Escola Superior de Teatro e Cinema, Mota lamenta o desinvestimento na educação pela arte.

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De bengala na mão, aos 81 anos, João Mota lamenta que as suas pernas já não tenham a força de antes. Mas a energia que lhe falta ao corpo, não lhe tolda o pensamento. O ator e encenador que é homenageado este ano na edição 40 do Festival de Almada é critico quanto ao atual estado das coisas, desde logo na educação.

Professor durante três décadas na Escola Superior de Teatro e Cinema, João Mota que deu os primeiros passos no teatro aos 14 anos ao lado da irmã, a atriz Teresa Mota, diz que é preciso “mudar os programas tanto do secundário, como os outros”. Defensor da educação pela arte, Mota considera que os professores se deveriam unir para pedir mudanças curriculares.

Nesta conversa, à margem da apresentação do Festival de Almada, João Mota recorda o início da sua carreira, a criação do teatro A Comuna, como fazia teatro em ditadura e como driblava a censura. Sobre os dias de hoje diz que faltam políticos com valor e teme o crescimento dos populismos em Portugal e na Europa.

João Mota, o Festival de Almada presta homenagem aos seus 65 anos de teatro. É uma vida dedicada a esta arte. Ainda se lembra de como tudo começou?

Eu comecei nos programas infantis da Emissora Nacional quando tinha 10 anos! Faz hoje 71 anos. Ainda não havia televisão! A primeira peça foi "O Mar" do Miguel Torga, com a Germana Tânger, que infelizmente já morreu. E entrou um miúdo, claro, era o João! A primeira peça de televisão também foi comigo, nessa altura já tinha 14 para 15. Aos 15 anos, fui para o Teatro Nacional, onde fiquei 10 anos.

O Teatro foi um "bicho" que se entranhou?

A pouco e pouco, sim. Começou na escola e depois a minha irmã, a Teresa Mota fazia teatro, como o meu sobrinho Emmanuel Demarcy- Mota também faz. É um bichinho, a pouco e pouco, que vai crescendo e depois já não é possível parar, porque tem tanta coisa a descobrir, que às vezes precisa de um tempo de reflexão, mas para continuar, não é para parar!

Esse lado ajudou-me muito também. Eu fui professor da Escola Superior de Teatro e Cinema de 35 anos. Na escola de educação pela arte, com o Arquimedes Silva Santos, estive 10 anos. Depois estive na Fundação Calouste Gulbenkian a dar aulas a professores também durante 18 anos. Fiz tudo ao mesmo tempo.

Há textos maravilhosos que nos fazem exatamente, reencarnar porque descubro em mim, coisas que desconhecia.

Acabou por ser um homem completo no teatro, não só porque formou pessoas, formou uma companhia, também representou. Há alguma dimensão do teatro que não lhe tenha tocado?

Desenho bastante mal! O que quando faço cenários, faço rascunhos e alguém tem que perceber o que eu digo! Tento fazer o melhor que posso e que sei. Não quer dizer que seja muito bom ou que seja ótimo.

O importante é o verbo "tentar". Tentei! Isso continuo a tentar. Se é melhor ou pior, nunca me preocupou. Como não me preocupa também o problema da morte. Desde miúdo, a morte habita em nós, e é uma coisa de que se fala muito pouco. Pensamos que somos eternos, quando temos 20, 25 anos. Esse é um caminho muito interessante: Aprender a saber morrer. Deixando caminhos para os outros.

Seja em profissão for! Até pode ser como carpinteiro, se quiser, como empregado de escritório, como médico. É muito importante percebermos o papel que cada homem tem na sociedade e cada um de nós devia ser exemplo. Isso eu procuro ser exemplo. Eu vou tentando ser!

Acha que faltam exemplos desses na sociedade atual?

Os que eu conheço assim foram o Gandhi, Mandela, Luther King, depois não tenho muitos mais nomes para lhe dar.

Ao longo desta vida toda de teatro, há personagens certamente que se colaram a si. Que personagens sente que o marcaram ao longo destes anos?

Um antigo embaixador da Roménia em Portugal dizia que o ator é o único que pode falar de reencarnação. Por isso, é difícil quando pergunta qual foi o papel. Todos serviram para eu me ir conhecendo melhor, ir aprofundando dentro de mim próprio, todos os defeitos, as qualidades que tenho, o ódio que existe, o ciúme, o amor, o morrer por.

Vamos descobrindo e isso é maravilhoso. Quando os textos nos levam a isso. E há textos maravilhosos que nos fazem exatamente, reencarnar porque descubro em mim, coisas que desconhecia. Isso é maravilhoso!

É fundador de uma companhia icónica, A Comuna que conta 52 anos. Como era fazer teatro antes da democracia?

Havia muito teatro. Mais do que há hoje! Não esquecer isso. Havia o Teatro Variedades, o Capitólio, Maria Vitória, ABC, Avenida, Nacional, Trindade, São Luiz, Monumental. Repare, cada um tinha companhias. O Teatro Nacional tinha 30 atores! O Trindade com o Ribeirinho também tinha 20! A Laura Alves também tinha. Isso era maravilhoso! Depois o Villaret, com o Raul Solnado também. Havia companhias!

Hoje há duas pessoas que se juntam para fazer teatro, porque cada vez é tudo mais difícil, porque é o problema da educação. Não há cultura sem educação. E nós estamos a sofrer, não só em Portugal dessa passagem aos outros da educação.

A educação leva-me a despertar a sensibilidade e todas as expressões artísticas. Quando falo de política cultural, não falo de teatro, falo de teatro, de cinema, de música, de dança, da poesia. Interessa-me isso tudo. E isso não está bem

Em que é que não está bem? Que diagnóstico é que faz dessa política cultural?

Temos de mudar os programas dos liceus, tanto do secundário como os outros. Temos de começar a criar uma geração que agora está com 3, 4 anos de idade. Temos de ter professores para isso. Temos é pessoas que lhes dão o lanche, que estão com eles, que os põem a dormir. É só isso?!

Onde é que está o jogo? É interessante porque em francês ou inglês não se diz representar, diz "play", jogar. É isso. Jogarmos com os mais novos. Deixamos essa liberdade deles descobrirem o próprio jogo através de outro. Há essa ligação, depois no primeiro ciclo, em que a criança tem de viajar muito, tem que ir ao Castelo de São Jorge, tem que ver os barcos, tem que ir a Almada, tem que ver a ponte pequenina lá em cima quando vai no barco, depois vem pela ponte e vê os barcos pequeninos.

Essas aprendizagens são muito importantes. Ir a um museu, ver pintura. "Ah, não percebo nada!" Azul, amarelo, vermelho, alguma coisa lhe diz interiormente. Não sabem explicar.

Ao nível da educação estamos pior do que estávamos.

Falta educação artística?

A educação pela arte. Felizmente essa escola existiu. Só durou 10 anos. Foi uma escola piloto que deu depois, mais tarde, os magistérios primários, deu escolas superiores de educação. Simplesmente não acompanhou o que era a escola de educação pela arte

É tão ou mais importante, do que estar uma hora o professor a falar ou mandar ler da página 25 a 35. Isso pode ser dado de outra maneira. Eu posso dar o Castelo de São Jorge, as lutas que foi contra os mouros. Há lá uma porta, posso brincar. Eles aprendem.

Levo-os a um armazém, eles sabem o que é um armazém, sabem fazer trocos, sabem o que é a venda. Vão ao circo! Há uma prática que nos leva. Eu faço com eles o jogo das cadeiras, que é uma coisa que as pessoas fazem sempre. Eu faço com eles a fazer de elefantes, de camelos, de girafas e vão aprendendo os animais ao mesmo tempo.

Essa aprendizagem é essencial, porque isso não esquecem, fica! O estudar muito, ler muito, é importantíssimo, mas não chega. Tem de haver se contacto com outro e com a natureza.

Há pouco falava do que era fazer teatro antes da Democracia. Como é que foram esses primeiros tempos de A Comuna? Como é que se conseguia driblar a censura?

Foi uma luta muito grande!

Comecei por fazer Gil Vicente. Mais ou menos, Gil Vicente eles deixavam passar na leitura da censura. Claro que eu não fiz "A Alma" a ir para o céu! A alma abria a porta do teatro e ia para a rua! É no cotidiano que a gente tem que viver. Não é no céu ou no inferno. Para mim, o inferno e o céu já estão cá na Terra. É preciso é vivermos no cotidiano. Essa é que é a luta!

A luta da alma era uma luta sobre uma educação. Terrível, o que ela passava! O lado negativo, o lado pagão, ela era batida. Ia crescendo e quando crescia tinha posse de ser livre e ia para a rua. Ora isto foi logo "Ai, Ai, Ai, Ai!!"

Depois no "Auto da Barca", os Cavaleiros. Era eu, por acaso, que fazia esse papel vestido de soldado. O diabo matava-me. E eu tornava a ressuscitar e a dizer "a juventude vencerá sempre". Tornava-me a matar, matava para aí 10 vezes até ao final da peça, mas 10 vezes ele se levantava e a juventude lutará!

Eram os cavaleiros....os cavaleiros hoje têm de tentar opor-se a um poder que está a acontecer infelizmente pela Europa novamente. Em Portugal temos um populismo também que pode vir a ser grave. Em França já é bastante. Chegou à Polónia, à Hungria, Itália!

As coisas vão mudando, mas temos que saber lutar ao mesmo tempo. Mas lutar brincando ao mesmo tempo. Tanto do lado da tragédia, como o lado da farsa. Nós próprios, como seres humanos, temos, como as enguias, percorrendo, vamos andando e vamos perfurando.

Ou seja, as lutas da há 50 anos têm hoje uma nova necessidade?

É sempre outra. A de hoje, agora é terrível.

Ao nível da educação estamos pior do que estávamos. Quando tirei o meu sétimo ano na altura, nós sabíamos. Como o francês sabe, o inglês sabe. Hoje não sabem. Eu apanho-os na Escola Superior para Licenciaturas e mestrados, e eles não sabem!

Quando vão para o primeiro ano têm de lhes dizer tudo! Ou então foi colado com cuspo para passarem. Porque a profissão de professores também, como é que eu posso dizer, não está valorizada o suficiente como no meu tempo.

O ser professor tinha lugar! Também se ouvia para professores aqueles que tinham vocação. Hoje muitos vão para professores, porque é uma maneira de tentar ganharem um pouco de dinheiro, porque é muito pouco. Depois mudam de sítio para sítio. Mas a primeira coisa que os professores deviam fazer em juntar-se, era que o ministério mudasse os programas. Mas para isso eles têm de saber o quê e têm de estar preparados para os novos programas. Estão?! Estamos?! O problema é esse.

Vai ser homenageado no Festival de Almada. Como é que vê esta homenagem? Que que peso tem ela para si?

É um peso mais interior, do que exterior. Eu nunca fui muito de ir aos sítios. Claro que eu gosto e alimenta um pouco o ego. É como as condecorações dos senhores Presidentes da República, as condecorações, as medalhas de ouro da cultura, essas coisas todas que me vão dando.

Claro que fico contente, mas, se calhar há outros que mereciam tanto, ou mais, do que eu. Eu sou um pouco fugidio a essas honras. É uma honra do Festival de Almada. Ainda bem que se lembram de nós, antes de morrermos. É bom sinal. É sinal que alguma coisa ficou.

Um louvor, uma condecoração essas coisas não é mais dizer do que: "Continue, até agora tem estado a trabalhar bem. Não pares. Vai mais longe!" É assim que eu vejo.

E um ator não tem idade para se reformar?

Não devia ter. A coisa que os atores dizem sempre é que gostavam de morrer em cena. Eu não porque praticamente já não represento, embora tenha entrado agora na "Casa das Cabras".

Geralmente só enceno e ainda dou aulas. E o prazer de dar aulas é muito grande. Por isso é que tenho pena de estar pior das pernas. O dar aulas, eu faço a verdadeira investigação, porque vou experimentando.

Quando crio uma peça, estou condicionado a tempos e a subsídios. Posso experimentar menos. Posso investigar menos. Mas aproveito para investigar, para depois investir nas peças.

A questão dos subsídios é um dos problemas maiores do teatro em Portugal. Como é que vê o problema?

Sempre foi! Já no tempo do Shakespeare! O teatro sempre foi assim e alguns até eram queimados quando foi no tempo da Idade Média! Havia atores que eram queimados porque diziam a verdade!

A verdade não agrada a toda a gente. Os jogos de mentiras a que a gente assiste diariamente, não só em Portugal, mas em todo o mundo... É sobre a guerra da Ucrânia, sobre o Putin, sobre os americanos. O dinheiro deles é de vender armamento. Andamos todos noutro sítio.

Por isso, quando falo de exemplos, temos de andar a par de tudo, ser militantes do cotidiano. Não é só tu és de esquerda ou de direita, não. Tanto gosto de pessoas de direita, como de esquerda que sejam exemplos.

Um dos últimos que morreu, o Adriano Moreira, por exemplo, o que Lucas Pires, Jorge Sampaio, houve um presidente de que não gostei muito, o Ramalho Eanes, mas o seu mandato foi muito importante. O Francisco Sá Carneiro. São estadistas!

Eu gosto é desses. Agora se é mais à esquerda ou à direita, não importa. Eu sou a favor da Assembleia, claro. Mas deviam ser escolhidos os melhores entre os melhores, mas geralmente não são até que fazem carreira logo desde os 14, 15 anos e depois não ganham o suficiente para deixarem de ser gerentes ou mandar uma companhia petrolífera, por exemplo.

É isso que é pouco valorizado. Deviam ser os melhores. Antigamente havia a Assembleia dos Velhos. Em que havia dois ou três novos que assistiam que era a passagem. Ora isso acabou. Parece que há uma guerra dos velhos contra os novos, e os novos contra os velhos. É ridículo.

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