24 mar, 2023 - 19:08 • Maria João Costa
Aos 86 anos, Manuel Alegre está a lançar “Toda a Prosa” (Ed. Dom Quixote). Nas suas palavras, este é um livro em que a prosa está “a sair da clandestinidade”. Admite que os vários livros aqui reunidos, alguns com mais de 30 edições, fazem um “retrato do país” entre os anos 1940 e o “advento do 25 de Abril” de 1974.
Em entrevista à Renascença, o escritor confessa que é, ainda hoje, “prisioneiro” de dois dos seus livros de poesia, “Praça da Canção” e “O Canto e as Armas”, mas reunir a prosa mostra que é mais do que só poeta. “Não há assim uma diferença tão acentuada entre uma toada poética e uma toada de prosa”, refere.
Recusa a ideia de a prosa ser uma biografia ficcional, mas reconhece que há uma “transfiguração de vivências pessoais”. Desde o exílio na Argélia, ao medo, da fome à falta de liberdade durante a ditadura, tudo surge retratado na sua escrita em prosa. Sobre a arte da escrita, diz ser uma necessidade.
"Toda a Prosa" representa uma vida de escrita, e, juntando com a sua poesia, podemos dizer que estamos, como escreve Paula Mourão no prefácio, perante uma "biografia ficcional"?
Não, isto não é uma biografia. Isto é uma transfiguração de vivências pessoais que abrangem um período histórico português que vai desde os anos 40 até ao advento 25 de Abril. Como disse Paula Mourão, no lançamento, é um retrato do país durante esse período.
Ao lermos a sua prosa, os seus vários livros que foi publicando ao longo dos anos, encontramos um retrato de Portugal dos últimos anos?
É um retrato do país. Ela [Paula Mourão] disse até que a prosa e a poesia são um retrato do Portugal contemporâneo. Há muitas maneiras de celebrar o 25 de Abril, e eu resolvi juntar num só livro toda a minha ficção e depois verifiquei que, aqueles livros juntos, no fundo, davam um novo livro.
"Quando se fala do 25 de Abril e da Liberdade, é preciso falar dos tempos em que não havia Liberdade. O 25 de Abril não caiu do céu"
Os livros estão ordenados pelo seu ano de publicação e isso também mostra a forma como a vida foi mudando?
Sem uma sequência cronológica, "Alma", "Jornada de África", "A Terceira Rosa", "Rafael" poderiam ser uma trilogia ou uma tetralogia em que os principais personagens até podiam não ter mudado nome. Mas mudaram. Foi assim que aconteceu. Mas dão um retrato, de facto, desse tempo português.
Que tempo era esse?
Era o tempo da pobreza, do medo, em que não havia liberdade. Era o tempo em que na minha escola os rapazes iam para as aulas com um naco de broa e uma sardinha para todo dia, iam descalço.
Mas era também o tempo em que se ouvia a BBC em segredo. O tempo em que havia notícias de prisões. Em "Alma" fala-se mesmo das detenções e das prisões então ocorridas, mas também do MUD e da sua grande luta, e das prisões que se seguiram a esse grande momento que foi o aparecimento do Movimento de Unidade Democrática.
Na "Terceira Rosa" fala-se do assassinato do General Humberto Delgado. "Rafael" é o romance do exílio. Aliás, o único que eu conheço! E o exílio e o tempo suspenso. O tempo em que se é de lado nenhum, em que se procura sempre um caminho de regresso. Portanto, neste livro, que é um livro longo onde estão vários livros, no fundo está um mesmo retrato desse país.
Caminhamos para os 50 anos do 25 de Abril. É nesse sentido importante a consciência desse passado?
Quando se fala do 25 de Abril e da Liberdade, é preciso falar dos tempos em que não havia Liberdade. O 25 de Abril não caiu do céu. Houve muito tempo em que se sofreu e lutou pela Liberdade. Em que se viveu sem Liberdade, com medo, à volta do medo, sufocados de medo, amordaçados de medo, etc.
Todo esse tempo, de uma maneira ou, de outra, está ali, mas está também o deslumbramento da infância. O país da infância, como lhe chamada Saint Exupéry. A primeira paixão, os primeiros amores. A descoberta da morte, o sentimento de perda. As grandes perguntas sem resposta que são, ao fim e ao cabo, a condição humana. Tudo isso está aí assim.
No livro estão também contos. Eram textos mais dispersos?
Os contos também fazem a mesma abordagem. Mas são textos que nasceram de outra maneira. Em momentos mais fugazes, mas dispersos. Não é a mesma coisa. O romance conta uma história que tem um princípio, meio e fim. Tem outra estrutura. Têm outro ritmo.
A prosa poética?
Pois, dizem-me que a minha prosa é poética. Não sei se é uma virtude ou se é um defeito.
Mas há um cruzamento entre a sua poesia e a prosa?
A Paula Mourão também falou muito bem disso. Mostrou a porosidade que há entre a prosa e a poesia. E que há. Aliás, acho que é uma fronteira muito mais ténue do aquilo que parece e do que aquilo que se diz.
Também há escritores romancistas que escrevem poemas de vez em quando. E há outros poetas que escrevem prosa, e escrevem bem.
Mas conseguia escrever a sua poesia enquanto escrevia alguns destes livros que agora estão aqui reunidos em "Toda a Prosa"?
Sim, sim! Não é incompatível. Embora com alguns desses romances, sobretudo os mais trabalhosos, estive mais concentrado.
Mas eu escrevo prosa um pouco, como quem escreve poesia naquilo que o Herberto Hélder chamava "O estado do poema". Quer dizer, segundo um certo ritmo, uma certa toada, um certo encantamento da palavra e da sonoridade da própria palavra.
Nesse aspeto, não há assim uma diferença tão acentuada entre uma toada poética e uma toada de prosa que no fim ao cabo, têm a mesma fonte.
É o poeta?
Já contei uma história, quando regressei do exílio, o funcionário que fez o meu primeiro bilhete de identidade foi em Aveiro. Ele não me perguntou qual era a minha profissão, escreveu "poeta". Eu estou-lhe grato, acho que é uma bonita homenagem. E sou mais conhecido como poeta, do que como prosador, embora, dá-me a impressão que com este livro está prosa a sair da clandestinidade.
Embora isso não seja bem verdade, porque eu tenho ali livros, têm 30 edições, outro 16, outros bastante. Portanto, a minha prosa é lida. Simplesmente, eu sou um bocado prisioneiro dos meus dois primeiros livros, "Praça da Canção" e "O Canto e as Armas" que tiveram um grande impacto. Foram livros emblemáticos que tiveram consequências não só poéticas, naquela altura. E para muita gente sou sempre o poeta da "Praça da Canção", o poeta de "O Canto e as Armas". Sou um bocado prisioneiro.
É um privilégio ter escrito esses livros que são livros emblemáticos. Fazem parte da História Portugal. Goste-se ou não, mas, ao mesmo tempo sou prisioneiro deles, porque já publiquei e escrevi muitos livros de poesia e prosa depois disso, mas volta-se lá sempre à Praça da Canção e ao "O Canto e as Armas".
"Para muita gente sou sempre o poeta da "Praça da Canção", o poeta de "O Canto e as Armas". Sou um bocado prisioneiro"
Agora ao revisitar a sua prosa e dos leitores poderem ter acesso a ela nesta versão integral, é dar um renovado motivo para ler Manuel Alegre?
Para mim é uma surpresa, sobretudo o facto de eu constatar que sem ter sido um programa, não foi um programa, sem ter sido uma intenção programada, esses livros, pelo menos alguns deles, em conjunto, constituem um retrato desse tempo histórico português. Vai desde os anos 40, que é o tempo do "Alma", até ao advento do 25 de Abril. Não depois. Até ao surgimento do 25 de Abril que aparece nomeadamente na "Terceira Rosa", com a morte do Delgado e depois o regresso a Portugal e a festa do 25 de Abril. E aparece em "Rafael" os conspiradores que vêm de Argel e de Espanha para entrarem em Portugal não percebem que estão a 24 de abril. Já está a tocar a "Grândola Vila Morena". Eles não sabem e voltam para Madrid.
Como é que foi o trabalho de organização dos livros, de voltar a abrir estes textos? Teve a tentação de fazer alguma alteração?
Não, poucas alterações. Porque, eu não sou muito de fazer alterações. Isto é, eu escrevo rapidamente. O [Miguel] Torga, aliás, dizia muitas vezes, "para me defender da minha facilidade". E tinha razão!
Normalmente escrevo, depois deixo ficar a levedar, faço modificações, mas uma vez publicado, mexo o menos possível. Porque foi assim que aquilo foi de encontro aos leitores. Foi assim que nasceu. É ali que está a genuinidade daquele livro e daquilo que se quis dizer. Portanto, não faço grandes alterações.
Hoje posso pensar que havia um outro livro que eu teria escrito de outra maneira. Teria dado até títulos diferentes a um, ou outro livro, mas não vou fazer isso.
E o que é que os leitores lhe dão de volta sobre os seus livros?
Os leitores dão-me coisas boas! Primeiro lendo os livros, não é? É bom. Acho que não há muitos escritores que tenham livros com 30 edições, ou mesmo 16. Ou que tenham os seus livros sempre sistematicamente reeditados.
E dizem-me coisas simpáticas sempre quando estão comigo. Acho que no essencial, eles percebem os meus livros.
É também um testemunho que quer deixar? Um testemunho de vida?
Essa não foi a minha intenção, essa não foi a minha intenção. Eu escrevo pelo gosto de escrever e pela necessidade de escrever. Para mim escrever, não é um sacrifício. É um estado de graça.
Não programei, como eu disse, o descrever esse tempo histórico português através de vários livros, e isso aconteceu.
Eu queria escrever um livro sobre a guerra, mas não queria que fosse uma reportagem. Nem queria que fosse um livro confessional. Queria que fosse um livro que tivesse uma perspetiva histórica. Porque ali está a História de Portugal. Estão dois desastres, o de Alcácer Quibir e o da Guerra Colonial. E no fundo os nomes dos que estiveram em Alcácer Quibir são nomes portugueses.
Que estão nas suas personagens.
Todos eles estiveram também, com certeza, em Angola, na Guiné ou em Moçambique. Portanto, é uma História que se repetiu, não exatamente da mesma maneira, mas com um lado trágico. É a História de Portugal.