Entrevista Renascença

Luís Pinheiro de Almeida: "Era um terror viajar com Cavaco", mas os Beatles quebraram o gelo

06 jan, 2023 - 19:28 • Maria João Costa

“Viagens no Tempo” é o novo livro de Luís Pinheiro de Almeida. Aos 75 anos, o jornalista reúne as memórias das viagens que fez em trabalho. Apertou a mão a Ceausescu, foi o único jornalista no casamento de D. Duarte, foi alferes de Otelo e ao mesmo tempo jornalista da ANOP e foi detido pela Mossad, em Israel. Histórias que desfia no livro editado pela Documenta. "Agora é o escândalo que importa! A verdade está um pouco arredada", lamenta.

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Partilhou risos com Cavaco Silva sobre os Beatles, fez a sua primeira viagem profissional à Roménia do ditador Ceausescu, foi detido e interrogado pela Mossad israelita quando fugiu a uma viagem à Terra Santa organizada pela Renascença e foi a Gaza. Luís Pinheiro de Almeida reúne, agora, as memórias das suas viagens jornalísticas em livro.

“Viagens no Tempo” (Ed. Documenta) junta, além das histórias, fotografias do jornalista que foi chefe de redação da ANOP – a Agência Noticiosa Portuguesa, passou pela Lusa, mas também pela Renascença. Luís Pinheiro de Almeida, um apaixonado por música e em particular pelos Beatles, conta neste livro muitas peripécias, uma delas vivida com Otelo Saraiva de Carvalho, quando acumulava funções de jornalista e alferes miliciano no gabinete do Capitão de Abril.

Em entrevista à Renascença, o jornalista que reconhece ter tido a melhor profissão do mundo, olha hoje com desanimo para a forma como é feita informação. “Agora é o escândalo que importa! A verdade está um pouco arredada. O "fact check" está um bocado arredado. Não confirmam. O contraditório não existe”, critica.

Escreve na abertura do livro que "ser jornalista é a melhor profissão do mundo". E mantenho! Mantenho a motivação!

Este livro recupera histórias de uma vida. Tem boa memória ou foi sempre guardando referências

Eu tenho espírito de “Ephemera”, e por isso sou voluntário na “Ephemera”. Eu guardo tudo e mais alguma coisa. Não deito nada fora. Ser jornalista é a melhor profissão do mundo. Ainda é, apesar de alguns solavancos, e como tive a sorte de estar na agência noticiosa e chefiava a política, e depois fui até diretor adjunto, etc. viajei muito.

"Fui a Gaza, a Mossad apanhou-me, fui denunciado e antes de regressar a Portugal fui submetido a um intenso e rigoroso interrogatório"

São essas viagens que junta neste livro a cada capítulo.

Algumas das viagens até, passe a graça, era eu que me indicava a mim próprio, porque tinha essa capacidade. Nessas viagens eu guardei tudo o que havia para guardar! Eu tenho uma mania que é de sempre que vou a algum sítio, mando um postal para mim próprio. Esse postal tem de ter na frente, o nome do sítio onde eu estou. E no verso que é a parte onde a gente escreve, tem de ter a hora local, a hora de Lisboa e a data obviamente. Tem que ser posto correio no sítio onde eu estou. Resultado, tenho centenas e centenas de postais dirigidos a mim próprio, dos sítios onde eu estive.

É por isso que as memórias que descreve parecem tão vivas, como se as tivesse acabado de viver?

Exatamente. Não tive dificuldade nenhuma em escrever o livro. Demorei dois, três meses a escrever para confirmar factos, falar com pessoas, etc. Porque tudo o resto tenho tudo em notas e apontamentos que fui guardando. Foi muito fácil. O difícil, o que demorou mais tempo, cerca de um ano, foi organizar e a trazer à luz do dia os arquivos. A partir daí, depois de organizados foi muito fácil escrever o livro.

Mas este livro tem mais do que as suas histórias. Estão aqui também muitos testemunhos de quem partilhou estas aventuras jornalísticas consigo?

Eu acho que o livro é um bocado narcisista, porque é "eu estive", "eu fui", "eu apertei a mão", "eu subi", mas no fundo são as minhas memórias. Para disfarçar um bocado esse narcisismo pedi a testemunhas, companheiros de viagem, jornalistas, ou não, que me escrevessem as suas impressões. Acho que essa é a parte mais rica do livro. Tenho de tudo, desde Marcelo Rebelo de Sousa, enquanto jornalista, a Ramalho Eanes, Miguel Sousa Tavares, Gonçalo César de Sá, António Sousa Duarte, tudo colegas. Acho que são as partes mais interessantes. Os testemunhos corroboram as minhas impressões, algo que me deixa contente.

Entre muitas histórias há uma que mistura os Beatles, que o Luís tanto adora, e Cavaco Silva. Parece uma junção improvável.

Ah, foi tão engraçado! Foi a parte mais gira da viagem. Era um terror viajar com Cavaco Silva! Coitado do homem, mas era de facto, para os jornalistas era um terror, porque não criava empatia connosco. É verdade! E a verdade tem de ser dita! Mas uma vez que fui a Londres a acompanhar Cavaco Silva, e o ex-presidente da República passou umas horas comigo, e ria, ou sorria como eu nunca tinha visto a falar dos Beatles e do Yellow Submarine. Ele doutorou-se em Manchester, suponho eu, em 68, 67 por aí. E ele viu o Yellow Submarine nessa altura e ficou fascinado com os Beatles! Como sabia que eu gostava dos Beatles, ele para criar empatia, sorria. E passou o tempo todo comigo a falar sobre o Yellow Submarine. Para mim foi uma coisa do outro mundo!

Há outras histórias, por exemplo, a da viagem que fez em 1975 com o Presidente Costa Gomes à Roménia onde conheceu Ceausescu, por exemplo. Foi uma testemunha da História? Quer deixar também esse testemunho às gerações futuras?

Sem estar a ser muito megalómano, um dos meus objetivos é deixar um testemunho vivo da História Universal nas últimas décadas. Gostaria muito que os meus netos lessem o livro daqui a uns tempos, e, através dele, conhecessem também um pouco a História do que foi este mundo nas últimas décadas.

E há histórias insólitas.

Uma das coisas mais importantes e mais características foi a viagem que fizemos num avião militar português a três países comunistas, então, a Bulgária, a Roménia e a Hungria. O Presidente Ramalho Eanes deu boleia a jornalistas comunistas, de um país para o outro. A alegria deles ao entrarem no avião da NATO, coisa que nunca lhes tinha sido permitido, ver como era o avião por dentro - os jornalistas não tinham acesso a essa informação, só os espiões - passaram a viagem toda, espantados, a fotografar todo o interior do avião. Hoje em dia, é difícil perceber isto, mas naquela altura era duro!

No meio disto, o Luís foi jornalista e ao mesmo tempo alferes miliciano no gabinete de Otelo Saraiva de Carvalho, no COPCON. Como é que eram compatíveis as duas funções? Havia informações militares que eram segredo e ao mesmo tempo uma tentação para um jornalista?

Isso foi uma das incongruências do chamado PREC [Processo Revolucionário em Curso]. Hoje em dia isso seria impossível, ser jornalista e ser militar ao mesmo tempo. Foi das coisas espantosas que me aconteceram. Eu era alferes miliciano no COPCON e era jornalista na ANOP, a Agência de Noticiosa Portuguesa. Isto hoje seria inacreditável. A primeira coisa que eu fazia quando chegava o COPCON era ir ao gabinete do oficial de dia, porque tínhamos uma coisa que era a Fita do Tempo, onde se anotava tudo o que acontecia no país, hora-a-hora. As informações que nos chegavam das unidades militares, tudo o que se passava, rebentamento de bombas, raptos, homicídios, sei lá, tudo o que acontecia no país era transmitido ao COPCON.

Eu, como alferes miliciano, tinha acesso à fita de tempo, escolhia as coisas mais importantes e telefonava para a ANOP para eles investigarem. Dizia "Rebentou uma bomba em Bragança. Investiguem lá isso!", ou então, "Houve um rapto em Beja. Investiguei lá isso". Seria inconcebível uma coisa dessas hoje. A ANOP era o órgão de informação mais informado, como deve calcular!


"Agora é o escândalo que importa! A verdade está um pouco arredada"

Mas houve questões que saíram que não deveriam sair?

Eu só divulgava aquilo que era público. As coisas confidenciais, isso não divulgava nada. Mas na minha relação com o jornalismo, eu jornalista lá dentro, com os jornalistas cá fora, houve coisas que não podia dizer.

Houve um dia, quando entrei no COPCON, a 12 de agosto de 1975, foi quando saiu o chamado documento do COPCON. Fui eu, com a experiência que tinha de associativo da Faculdade de Direito que passei ao copiografo. Eu tinha o stencil e fui ter com ele para passar o documento. O documento chamava-se "Autocrítica Revolucionária - Documento de Trabalho do COPCON". Enquanto passava ao copiografo, recebi uma chamada da Capital, a dizer: "Sr. Alferes chegou-me aqui às mãos um documento que diz "Autocrítica Revolucionária - Documento de Trabalho do COPCON". Isto é verdadeiro? Não é verdadeiro?". Fiquei em brasa! Eu estava a passar o documento ao copiografo e eles já o tinham! Não podia fazer nada e disse-lhe para esperarem um bocadinho que eu ia ver se era ou não verdade!

Fui ter com o General Otelo Saraiva de Carvalho e disse: "Oh, meu General, desculpe lá, então eu estou a passar o documento ao copiografo, e a Capital diz que já lá o tem". O Otelo levou as mãos à cabeça e disse dois nomes que eu não posso repetir. "Aí os malandros mandaram isso para os jornais sem dizerem nada!". E disse, "olha, o documento existe. Eles que suavizem o texto, em vez de Autocrítica Revolucionária - Documento de Trabalho do COPCON, ponham só ‘Documento de Trabalho do COPCON’. E ele aceitou, felizmente, foi compreensivo.

Há também um momento em que a vida do Luís passou pela RFM, do Grupo Renascença. Conta no livro uma viagem a Israel que não acabou da melhor forma.

Essa viagem foi fantástica, foi organizada pela Liga dos Amigos da Renascença e apanharam um susto comigo, coitadas das senhoras, porque eu andava sempre fora do baralho. Quis ir a Gaza e fui! É uma história complicadíssima que também conto no livro.

Fui a Gaza, a Mossad apanhou-me, fui denunciado e antes de regressar a Portugal fui submetido a um intenso e rigoroso interrogatório, porque intitulei-me, e sou, jornalista. Tinha o cartão e tudo!

Eles perguntaram, se eu era jornalista, porque é que tinha ido numa numa viagem religiosa? Eu disse: "não são incompatíveis. Eu sou jornalista, mas sou católico e trabalho num órgão que é da Emissora Católica Portuguesa. Mas o senhor foi como jornalista ou foi como religioso? Eu disse, se quer que lhe diga fui pelas duas coisas! Eu sou religioso, queria conhecer e conheci Israel, a Terra Santa, na viagem organizada para Rádio Renascença, mas como sou jornalista tinha curiosidade em saber algumas coisas e ir a Gaza! Então e a sua máquina de escrever? Oh, meu, eu não trouxe máquina de escrever, porque tomo notas à mão e não vou escrever, só quando chegar a Lisboa é que vou escrever"!

Bom, foi um trinta e um! Depois de muita conversa, ficaram-me com um rolo de fotografias. O resto eu trouxe, porque não as descobriram e foi fantástica essa viagem!

Chegou a viajar com passaporte militar?

Fui a Angola, à independência. Fui como jornalista e com uma licença militar! Fui com passaporte militar. É inacreditável! O nosso país, que eu adoro, e aqueles tempos que eu adoro da Revolução e do 25 de Abril, hoje em dia não dá para entender como se vivia naquela altura! Eu já tenho 75 anos e a minha geração viveu!

Como é que vê hoje a informação que se faz nos media?

Eu prefiro não ler! É um bocado falar da concorrência, mas eu só ouço a TSF, desculpe dizer isto, mas eu sou pela verdade. Mas também só ouço no carro!

Agora é o escândalo que importa! O que tem audiência, tudo o que dá dinheiro. A verdade está um pouco arredada. O facto em si, o "fact check" está um bocado arredado destas coisas. Ah é assim? Pimba! Não confirmam. O contraditório não existe, e eu, já fui vítima disso também.

Agora há a mania dos "opinion makers”. Agora os jornalistas são todos “opinion makers”, eles é que têm opinião. Os factos esquecem-se! O que importa são os “influencers”, valha-me Deus! E as verdades ninguém as diz! As manchetes do Correio da Manhã e do Tal e Qual é que interessam! A verdade verdadeira já não interessa a ninguém. Mas há coisas boas obviamente! Não sejamos tão maus! Mas eu fico aflito para descobrir alguma coisa que possa interessar. É difícil!

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