Entrevista Renascença

Graça Morais lamenta que o Estado não lhe compre obras há mais de 30 anos

14 out, 2022 - 18:54 • Maria João Costa

Diz que a política cultural está longe de ser ideal. Graça Morais admite que até podia baixar o preço, se o Estado quisesse comprar as suas obras e disponibilizá-las em museus. À Renascença, a pintora que tem a exposição “Anjos e Lobos”, em Lisboa, explica que se inspirou nos rostos das ucranianas em fuga e que reza enquanto pinta.

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“Muitas vezes rezo quando estou a pintar”, confessa Graça Morais. A artista tem uma nova exposição em Lisboa. “Anjos e Lobos” (Galeria São Roque) é uma mostra que reúne trabalhos inéditos, alguns com mais de 40 anos. Classifica-os como “tesouros” que estavam esquecidos no atelier. Em entrevista à Renascença, Graça Morais explica que alguns dos trabalhos mais recentes inspiraram-se nos rostos de mulheres ucranianas que fogem da guerra.

Diz que não pinta Vladimir Putin, a quem chama “lobo” e “diabo”, mas quer mostrar as consequências das suas ações. Leitora ávida de notícias, Graça Morais deixa a atualidade contaminar o seu trabalho. Quanto aos anjos, diz o seu foi a sua mãe, hoje são a filha e o marido. Católica assumida, admite que há quem veja uma “dimensão do sagrado” na sua obra.

Questionada sobre o reforço do orçamento da Cultura, Graça Morais lamenta que o Estado não lhe compre uma obra “desde 1990”. A esse lamento acrescenta outro, é que as suas obras fiquem fechadas nas casas dos colecionadores privados, e não estejam disponíveis para o público dos museus. À Renascença, a artista admite que até fazia barato se o Estado lhe comprasse obras e manda um recado a Fernando Medina. “Era bom que o ministro das Finanças olhasse para a Cultura com a importância que realmente tem”.

Há uma permanência na minha pintura deste olhar sobre as pessoas que fogem das guerras, do extermínio, da fome, das desgraças, das perseguições políticas

"Anjos e lobos. Diálogos da Humanidade" é a exposição que agora dá a conhecer. Esta é uma exposição que tem alguns inéditos, mas também tem muitos trabalhos de outros anos. Quem são os Anjos e os Lobos?

A exposição é uma pequena antologia. Há uma obra de 1978 que pintei quando estava em Paris como bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian. Tinha 30 anos. Essa peça é o ponto de partida do resto da exposição. E há obras que são inéditas, mas que estavam guardadas em gavetas no meu atelier, algumas estavam viradas contra a parede.

Foi o galerista que a desinquietou?

Este galerista é muito interessante. O Mário Roque é médico, antiquário e galerista. É uma pessoa com uma enorme sensibilidade. A mãe dele adorava a minha pintura e ele também se apaixonou pela minha pintura. Então, decidimos fazer esta exposição à procura de tesouros e à procura de quadros mais atuais. O último que fiz, terminei-o na véspera da inauguração, está logo à entrada.

São trabalhos que têm algo em comum?

Têm em comum o meu universo pessoal, e o meu olhar sobre o mundo. Não é uma série como aquela série que fiz, a "Metamorfose da Humanidade" em que todos estavam ligados. Aqui realmente há uma unidade grande. Há uma componente que é o olhar para o ser humano e sobretudo olhar para o rosto das mulheres, e para um universo muito simples que é o universo rural, mas também para o universo muito pessoal.

Há uma dicotomia no título. Por um lado, "Anjos" por o lado, "Lobos". É como se houvesse aqui um frente a frente. O mundo divide-se neste frente a frente, no seu entender?

Cada vez se divide mais. Nós vivemos neste momento, nos últimos meses, espantados. Ninguém estava à espera que a Europa pudesse entrar numa guerra. Felizmente não é na Europa toda, mas já estamos a sofrer as consequências severas do ataque terrível que Putin está a fazer à Ucrânia. De facto, cada vez se sente mais que o mundo está muito extremado entre esses diabos, esses lobos. O lobo em si é um animal que não é tão perigoso, como estes diabos, porque até defendemos a não extinção do lobo como animal que tem de se proteger. Aqui é o lobo naquele sentido de é realmente algo de mau, quase demoníaco.

Esses lobos estão aqui representados?

Na minha exposição não estão esses personagens, não os pinto, não está o [Vladimir] Putin, não estão outras pessoas detestáveis que governam este planeta. Mas, de facto, estão as vítimas desses lobos esfaimados, desses homens sem escrúpulos.

Sou católica, não praticante, mas continuo a ter fé, e muitas vezes rezo quando estou a pintar

As consequências. Vemos por exemplo, neste desenho a preto e branco, um homem a carregar uma criança. É alguém que foge desses lobos?

Sim! Há uma permanência na minha pintura, nos últimos anos, desde 2011, deste olhar sobre as pessoas que fogem das guerras, do extermínio, da fome, das desgraças, das perseguições políticas. Este abandono, o seu ninho, o seu ambiente e a deslocação desses seres humanos sem nada, a mim impressiona muito. Acho que impressiona a toda a gente, e como hoje temos acesso, quase em direto, a essas cenas terríveis através da internet, da televisão, dos jornais, é impossível. Só uma pessoa que seja muito, muito egoísta é que não é sensível à dor de esses seres humanos que procuram um canto.

Eu estive aqui com uma jovem ucraniana que o Dr. Mário Roque acolheu, a ela, ao marido e a uma criança. Arranjou-lhes um apartamento que eles viverem e ela disse-me que os pais dela e os irmãos estão numa cidade em sem água, sem luz, na iminência de serem bombardeados, imagino o drama. Nós estamos a conviver já com pessoas que conseguiram fugir, mas que vivem aterrados por aquilo que está a acontecer à sua família.

E quem são os Anjos?

Os anjos somos nós com boas intenções! Os anjos são as pessoas que acolhem essas pessoas que são perseguidas. São as pessoas de quem nós gostamos e que temos memórias que nos ajudaram à construção da nossa forma de ser, do nosso caráter. Por exemplo, o meu grande anjo foi a minha mãe. Hoje é minha filha, é o meu marido e são pessoas boas que vou encontrando e que são de uma grande generosidade.

O que há de religioso ou de religiosidade nesta exposição em que fala dos diálogos da Humanidade? Há uma dimensão espiritual?

Eu acho que essa dimensão nós sentimos e não precisamos de ir à Igreja. Podemos sentir quando estamos numa igreja, quando estamos num lugar sagrado. Mas também sentimos nessa dimensão mágica e misteriosa do ser humano.

Eu às vezes rezo, sou católica, não praticante, mas continuo a ter fé, e muitas vezes rezo quando estou a pintar. O que mais me sensibiliza, sobretudo em Bragança, onde está em permanência sempre sete salas com a minha obra, que vou mudando de tantos em tantos meses é que há pessoas que vão visitar as minhas exposições, esta que tenho lá agora até ao fim do ano, que se chama Inquietações, e não é a primeira vez que o encontro, sobretudo mulheres, a ver as exposições e dizem que vão lá para rezar.

A Sé fica ao lado, é só atravessar a rua. E elas dizem "eu sinto essa dimensão do sagrado na sua obra e preciso vir aqui para criar este diálogo com qualquer coisa que eu não entendo bem, mas tenho necessidade de olhar, de contemplar e de rezar".

E isso também lhe acontece quando está a criar?

Sim, muitas vezes, quando estou a criar sinto esses momentos. Outras vezes, não. Eu tenho quadros que são muito difíceis. Costumo dizer que estou em guerra com esses quadros, porque apesar deste olhar para a realidade que me cerca, e para os meus sentimentos, emoções e intuições, eu quero é fazer pintura e fazer bons desenhos.

Toda a minha cultura como artista, que tive ao longo destes anos, vem ao encontro de qualquer coisa que eu não sei bem explicar e quando estou a pintar começam a aparecer. Às vezes a luta é grande, porque quero pintar melhor do que pinto e nem sempre consigo e por vezes fico extenuada e muito cansada.

Não fico infeliz, porque essa luta é uma luta onde estou a encontrar o meu caminho. Quero ultrapassar-me a mim mesma. Acho que isso é uma exigência, e é uma necessidade.

Dizia antes de começámos esta entrevista que gosta de acordar suavemente, não ver o que é que se passa no mundo, mas o que se está a passar no mundo está a contaminar o seu trabalho. Sente necessidade, como artista, de trazer a sua obra esse mundo que a rodeia?

Sim, e quando digo quando acordo não gosto de ligar rádio, nem televisão, porque a maior parte das notícias são muito más e Às vezes explora-se demais as notícias más. Não vale a pena dar tanto valor a coisas tão banais, como às vezes a imprensa dá, mas felizmente também valoriza outras que merecem.

Depois saio à rua, tomo o meu café e a primeira coisa que faço é comprar jornais, porque gosto muito do jornal em papel. Às vezes compro de vários jornais, porque cada um tem um olhar diferente e é muito interessante de ver. Entendo que esses jornais mostram muito do imaginário de um país. E isso faz-me bem e muitas vezes recorto certas imagens, fotografias que são mais impressionantes e que trago depois para a minha pintura.

Era bom que o ministro das Finanças olhasse para a Cultura com a importância que realmente tem
Exposição Anjos e Lobos Foto: DR
Exposição Anjos e Lobos Foto: DR
Exposição Anjos e Lobos Foto: DR
Exposição Anjos e Lobos Foto: DR

Estamos rodeadas dos seus quadros. Vejo alguns trabalhos a preto e branco, mas também desenhos a pastel, com muita cor. Como é que é feita na sua cabeça, ou no seu coração, esta decisão de materiais para cada trabalho?

Isso é uma boa pergunta, porque às vezes penso que vou fazer uma série só com carvão. Mas rapidamente vou tendo necessidade de experimentar outros materiais. Então, passo para a pintura acrílica ou para o sépia, ou tinta da China. Não consigo programar.

O que acho interessante quando estou no atelier é esse lado da surpresa que eu própria ganho ao fazer certos trabalhos. Enquanto sou surpreendida, estou muito entusiasmada a pintar. Quando deixo de estar surpreendida, paro, e às vezes até estou um ou dois dias sem pintar, e viro-me mais para a leitura. Há sempre livros que eu preciso de ler, ou vou ver um filme, porque aqui em Lisboa tem sempre muito bom cinema, ou vou simplesmente passear na rua.

A pintura não é programada?

Essa necessidade, "agora vou pintar", não consigo planear a minha vida dessa maneira. Tenho agora uma tela enorme para começar e ainda não comecei e, ao contrário, estou a fazer pequenos desenhos. Ainda não consegui enfrentar essa tela. Não depende só da minha vontade.

É assim que vê a tela, é um "enfrentar"?

É sempre o enfrentar o desconhecido. Isso é que é fascinante na arte. A própria obra vai-se fazendo sozinha, mas faz-se sozinha, porque primeiro tive muitas horas de trabalho. Eu chamo a isso trabalho, porque se eu não tiver essas horas de insistência e persistência e aquele encontro que nós temos connosco, em qualquer trabalho que se faça com vontade, que saia bem, e não é preciso ser artista, pode ser outro trabalho qualquer, há um momento em que nós sentimos que há um encontro total entre nós e o mundo e que esse encontro se faz através, no meu caso, através da pintura.

Temos nesta altura o orçamento da Cultura. Foi anunciado um aumento de verbas, nomeadamente para o investimento em arte. Sente que a política cultural tem dado espaço aos artistas, como a Graça Morais?

Eu tenho a maior simpatia, e gosto muito deste ministro da Cultura e tenho esperança que ele vá conseguir mudar, porque a situação não tem sido boa nos últimos anos. Nós sabemos que os museus do Estado estão com dificuldades enormes e a maior parte dos artistas não têm apoios do Estado.

Eu nunca fui a favor da dependência do subsídio. Nunca fui, nem nunca tive nenhum subsídio do Estado, mas fui sempre a favor de que o Estado deve comprar obras aos artistas, facilitar o acesso a ateliês, sobretudo quando a pessoa não vende nada no princípio. É dificílimo arranjar espaço para trabalhar e nem sempre se consegue um quarto na nossa casa, onde uma pessoa consiga ter o espaço de liberdade para criar e mesmo o espaço que precisa.

Como é o seu caso?

Não tem sido fácil. Por exemplo, no meu caso, desde 1990 que o Estado não me compra nem um desenho, nem uma pintura. Eu lamento muito, porque há desenhos e séries muito boas que acabam por ser compradas por particulares e esses quadros ficam fechados na casa deles, em vez de estarem num museu. Eu até preferia fazer um preço mais baixo ao Estado, e que essas obras ficassem à disposição de um público muito mais vasto, que visita os museus.

Acho que esta política está muito longe de ser o ideal. Era bom que o ministro das Finanças olhasse para a Cultura com a importância que realmente tem. [Olhasse] para a alta cultura, porque hoje chama-se cultura a tudo, e há coisas que têm a ver com a cultura, com a memória de um país, mas esta cultura viva da música, do cinema, do teatro, da dança, da arte, a pintura, a escultura e as intervenções diversas, estão longe de ter o apoio que deviam ter, no sentido de estimular os artistas para organizar grandes exposições.

Toda a vida, eu fui mais apoiada pela Gulbenkian do que pelo Estado. A Gulbenkian sempre teve um olhar atento à minha obra. A minha primeira exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo e no Rio de Janeiro foi a Fundação Gulbenkian, que apoiou. E eu sei que é sempre uma instituição extraordinária, que tem tido sempre o papel de um grande ministério da Cultura, que ultrapassa esse lado político, que também é importante.

Eu sou contra a arte que seja protegida por qualquer força política, porque essa arte pode degenerar em qualquer coisa que nós não achamos bem.

Não estamos num espaço de museu, estamos num espaço de uma galeria. É uma exposição comercial. Tem tido muitos visitantes? Tem tido procura desses colecionadores privados?

Felizmente! É uma exposição comercial. Eu não fazia uma exposição numa galeria em Lisboa há muitos anos, e acho que também é importante, porque a exposição que eu fiz na Fundação Vieira da Silva teve imensos visitantes, e no Museu do Chiado. São exposições visitadas, mas às vezes as pessoas querem comprar, mas nos museus não há comércio.

Aqui realmente há uma oportunidade de as pessoas levarem para casa um bocado daquilo que eu fiz, e que até está a correr bastante bem esse lado comercial. O quadro da capa [do catálogo] foi adquirido por uma mecenas não portuguesa. É uma mecenas de grandes museus da América e da Europa e comprou o quadro para oferecer a um desses museus. Fiquei muito contente. Acho que esta exposição vai ser um marco importante na minha vida, até por esse lado económico. É bom o artista também vender, até porque eu vivo da minha obra.

Quando conhece os seus colecionadores gosta de perceber para onde vão os seus quadros. Tem a noção por onde é que a sua obra está espalhada? ou há quadros que já não sabe deles?

Durante 20 e tal anos expus na Galeria 111, do Manuel Brito, que era um grande galerista e da mulher, a Arlete. Na altura, os quadros eram muito baratos, vendiam-se muito bem e hoje tenho dificuldade em saber quem tem a maior parte dos meus quadros.

Tenho agora uma investigadora, Joanna Baião a fazer o levantamento de toda a minha obra, ela é paga pela Fundação para a Ciência e pelo IPB de Bragança. Há um laboratório Artes de Montanha, que foi pensado pelo ex-ministro da Ciência, Manuel Heitor, e esse laboratório está a desenvolver muitas atividades tendo como elemento principal a minha obra.

Estão a fazer o levantamento da minha obra para um catálogo “raisonné” e tenho tido muita dificuldade em saber onde é que estão certos quadros. É muito difícil. Penso que qualquer dia tenho que fazer um anúncio no jornal para ver onde é que eles andam (risos). Por vezes aparecem nos leilões.

Ganham outras vidas?

Os quadros têm uma vida. É muito curioso. Também têm a sua biografia, porque eles mudam de mãos quando há divórcios, quando há mortes, porque os filhos, os herdeiros, querem fazer partilhas e vendem os quadros. E às vezes vendem porque as pessoas também estão cansadas deles e querem fazer dinheiro.

Isso custa-lhe?

Não. Acho que é a vida própria de uma pintura. Eu só espero que as pessoas os tratem bem. Alguns gostava de voltar a vê-los, de facto!

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  • Paula Russell
    08 nov, 2022 Lisboa 08:09
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  • Pedro Palma
    17 out, 2022 Nazare sur mer 10:00
    Deixe lá... quando a senhora morrer, o mesmo Estado vem dizer que a senhora foi uma das maiores, e quiçá ainda dá luto nacional !
  • sa de sa
    16 out, 2022 lisboa 20:38
    The independent art is dependent of state money

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