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Entrevista Renascença

“É sempre tentador matar um escritor”, assume o autor Francisco José Viegas

30 set, 2022 - 21:00 • Maria João Costa

“Melancholia” é o romance que marca o regresso do inspetor Jaime Ramos. A personagem criada há 31 anos por Francisco José Viegas vai investigar a morte de uma escritora no famoso festival Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. À Renascença, Viegas fala também do Brasil, as injustiças do confinamento e dos “abusos” na certificação de judeus sefarditas no Porto.

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Na véspera das presidenciais brasileiras, em entrevista à Renascença, o escritor que “quase” viveu no Brasil, Francisco José Viegas lamenta que o país esteja “fragmentado”, “dividido em trincheiras”, “entre dois caudilhos” e que seja difícil de frequentar.

O autor que está a publicar um novo policial escrito no rescaldo da pandemia considera que ainda não foi feita justiça aos que tiveram de continuar a trabalhar durante os confinamentos. “Melancholia” é um livro que marca o regresso da personagem criada há 31 anos por Viegas, o inspetor Jaime Ramos que vai ter de investigar a morte de uma escritora no famoso festival Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. O escritor Onésimo Teotónio Almeida é personagem do enredo.

Ao autor do livro que mergulha também na História da herança judaica da cidade do Porto, a Renascença perguntou sobre a polémica das certificações de sefarditas para a obtenção de nacionalidade portuguesa. Francisco José Viegas não hesita, diz que houve “abusos”.

“Melancholia” marca o regresso do Inspetor Jaime Ramos à ação. Em que fase da sua vida é que o leitor vai agora encontrar este investigador criado por si há 31 anos?

Vai encontrá-lo mais maduro, mais conformado com o envelhecimento. São 30 anos de carreira, pelo menos na literatura, e é preciso perceber que no romance anterior, “Luz de Pequim”, ele tinha sido afastado da investigação por um diretor moderno, cheio de linguagem inclusiva e burocrática, e que parecia um apresentador de televisão, mas que, no fundo, odiava a polícia.

Jaime Ramos foi condenado, e castigado, não diria pela sua irreverência, mas pela sua idade, a dar aulas aos novos inspetores. Mas acabou por ser chamado para ajudar num caso de um cadáver no Palácio de Cristal. Obviamente, ninguém pode resistir a um cadáver em excelentes condições, ainda por cima no Palácio de Cristal!

É o crime de novo a chamar Jaime Ramos à profissão.

Há uma investigação nova que o leva ao universo da literatura, dos escritores, da solenidade. É um mundo que Jaime Ramos nunca visitara, mas que acaba por chamá-lo a partir de um festival literário e da morte de uma escritora.

Temos a morte da escritora Cristina Pinho Ferraz, num festival literário bem conhecido, o Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. Porque quis trazer o festival, no qual costuma participar como escritor e editor, para a sua literatura?

Bom, porque a certa altura isso aconteceria! (risos) Eu acho que Jaime Ramos andou sempre a rondar o mundo da literatura, embora nunca o visitando. Mas é um tema que confronta Jaime Ramos com uma certa artificialidade. Aquilo que ele vê no país, que é um complexo de oligarquias, endogamias, famílias poderosas, no fundo, transfere-se um bocadinho para o mundo da literatura, e, portanto, para a sua própria melancolia.

“Melancholia” é de resto o título do livro.

Quando ele visita essa melancolia dos escritores, acaba por descobrir, por um lado, que é ligeiramente artificial, por outro, muito cómica. É uma melancolia cómica, porque se aproxima muito do burlesco. Obviamente que é sempre tentador matar um escritor, ainda por cima matá-lo num festival como as Correntes d'Escritas!

Jaime Ramos senta-se na plateia das Correntes d'Escritas a assistir às conversas no Cine Teatro Garrett. Há no livro uma reflexão sobre a literatura policial. Ainda é um género mal compreendido?

Não. É um género muito popular! É um género que de repente invadiu não só a literatura, mas também, o cinema e a televisão. Acho que toda a literatura acaba por ser contaminada pelo policial. Se não é policial, acaba por ser contaminado pelos seus tiques, pelos seus temas, pelas suas investigações e também pela natureza do modelo literário. Há um interesse muito mais forte pelas personagens e pelo passado das personagens. É isso que faz a grandeza do género policial.

Os policiais estão na moda?

Acho que passámos de uma situação em que a literatura policial estava um bocadinho fora da lei, era um bocadinho desconsiderada, para uma situação em que a literatura policial é um modelo de referência. O que não quer dizer que seja muito compreendida!

De qualquer modo, isto é bom para a literatura policial, mas também é mau, porque a cristaliza. A própria literatura policial tende a fugir a essa consagração. Por isso é que há autores como o John le Carré, que não é bem policial, que é o thriller político e de espionagem que acaba por a certa altura, revolucionar o género, introduzindo fatores como o discurso poético, a reflexão sobre temas muito mais complexos do que propriamente descobrir quem é o responsável, ou saber quem é o morto, ou o culpado. No fundo são as coisas menos importantes do género policial.

“Melancholia” é um livro onde entram algumas personagens reais, como o escritor Onésimo Teotónio de Almeida. Teve de lhe pedir autorização?

Informei-o! (risos) Informei o Onésimo que ele figurava como personagem ativo. É o único que aparece com nome próprio. Quanto aos outros, claro são dissimulados. O aparecimento destes autores, não é propriamente como um espetáculo, no sentido de serem pessoas que possam ser reconhecidas. Não! Eles cumprem determinado papel, são misturas de vários, como o leitor irá perceber. O que para mim é fundamental é esse reencontro de Jaime Ramos com a melancolia.

Confinamentos? 'Houve uma reabilitação forçada da classe média, que podia ficar em casa. Mas houve muitas outras pessoas que fizeram com que o país andasse. É preciso fazer-lhes justiça, que é uma coisa que eu não vejo'.
“Melancholia” traduz o contexto em que o livro foi escrito, eventualmente durante a pandemia que também surge no romance ou durante os confinamentos?

Não, o livro foi escrito depois dos confinamentos. Durante os confinamentos eu tentei resistir à loucura do confinamento e continuei a trabalhar. Estive muito pouco confinado. Há uma reflexão que Jaime Ramos faz a certa altura, sobre a luta de classes no confinamento. Fomos empurrados para essa loucura do "Fique em casa", "Não saia de casa" por pessoas que tinham muita responsabilidade nas televisões, rádios e jornais e que não perceberam que estavam a lidar com um fenómeno muito complexo.

Houve quem não pudesse parar de trabalhar no confinamento.

Muita gente tinha que continuar a trabalhar e não podiam ficar em casa. Tiveram que continuar a levantar-se às 5h da manhã, a apanhar autocarros, ir trabalhar. Essas foram as pessoas que as autoridades, acabaram por maltratar, porque eram consideradas desobedientes. Tinham que sair de casa, porque tinham que continuar a trabalhar. Para elas não houve confinamento.

Não podiam deixar que o país parasse. Desenvolveu-se uma certa injustiça. Houve uma reabilitação forçada da classe média, que era aquela que podia ficar em casa. Mas houve muitas outras pessoas que fizeram com que o país andasse. Para elas, ainda hoje é preciso fazer-lhes justiça, que é uma coisa que eu não vejo.

Porque lhe interessa explorar o sentimento de melancolia na sua escrita nesta fase?

Interessa-me sobretudo, a desvalorização da melancolia. Durante muito tempo, esta associação da melancolia à tristeza, à depressão favorecia muito os tratamentos com medicamentos da melancolia. A verdade é que a melancolia é um pilar da nossa civilização. Sem melancolia não há livros, não há amor, não há arte, não há introspeção ou contemplação. Costumo dizer que a culpa e a melancolia são dois instrumentos fundamentais da civilização para poder existir.

Sem o sentimento de culpa, provavelmente seriamos bandidos, pessoas sem consciência. Por outro lado, a melancolia é aquilo que nos impede de sermos pateta alegres. Exige passarmos por um estado de contemplação. Jaime Ramos com a idade, o amadurecimento, provavelmente também com a proximidade da morte, e das doenças, ele tem uma disponibilidade maior para isso.

Essa melancolia de Jaime Ramos tem a ver com o facto de ele ser um homem do Porto?

É provável. Eu costumo dizer que o Porto é uma cidade burguesa, conservadora e melancólica e favorece muito este tipo de inquéritos de Jaime Ramos sobre a natureza do mundo. Há uma diferença essencial em relação aos livros iniciais, em que há um apetite muito vivo e físico de Jaime Ramos pela vida e ação. Vai diminuindo com a idade. É preciso perceber que há 31 anos, ele aparecia pela primeira vez num livro, na “Morte no Estádio”. Desde aí foi envelhecendo. Portanto, tem uma tendência natural para revisitar o passado, para se confrontar com ele.

Tem muito a ver com essa melancolia portuense. Neste livro isso desloca-se para esse outro foco de paixão que são, por exemplo, as árvores do Jardim do Palácio de Cristal. São símbolos dessa melancolia.

É nos jardins do Palácio de Cristal que é encontrado o corpo da vítima, a escritora Cristina Pinho Ferraz.

Cristina Pinho Ferraz é a vítima, o cadáver encontrado no Palácio de Cristal, e que o leva a fazer um inquérito sobre como é que essa mulher pode ser, por um lado tão perversa, e por outro tão pura. Capaz de agir sobre o comando de uma certa maldade, mas ao mesmo tempo de uma ingenuidade que o comovem.

Ele percebe também que a melancolia funciona como um estatuto profissional neste caso dos escritores e pode ser artificial! Ele diz "posso fingir a melancolia"! Mas na verdade a melancolia é uma coisa muito mais profunda que se esconde. É uma nuvem da qual não se pode falar e que atravessa as personagens.

No livro está também presente toda a herança judaica da cidade do Porto. Assistimos hoje a uma vaga de pedidos à Comunidade Judaica do Porto de certificação de descendentes de judeus sefarditas para processos de obtenção da nacionalidade portuguesa. Tem havido “abusos”?

Há notoriamente abusos! O Porto teve uma comunidade muito numerosa. A História dos Judeus do Porto teve também a ver com o facto do Porto ser uma cidade livre. Uma cidade muito resistente ao autoritarismo. O número de autos de fé foi diminuto. O Mosteiro de São Bento da Vitória, é da vitória sobre os judeus, mas existem esses vestígios do judaísmo.

É preciso perceber que a grande sinagoga no Porto foi construída nos anos 1930 quando, pela Europa fora, o antissemitismo crescia a um ritmo alarmante. Essa paixão da comunidade judaica do Porto pela sua tradição, e raízes, deve ser revisitada de tempos a tempos. A maior sinagoga da Península nasceu quando o antissemitismo estava a instalar-se por toda a Europa.

Claro que com o tempo, a comunidade foi diminuindo até níveis dramáticos, mas acho que isso não tem a ver com este problema dos vistos que, como sabemos, é público e notório estão marcados por um certo abuso.

Os processos deram origem a alguns negócios muito pouco claros. Não gostaria de falar sobre o assunto, mas parece-me haver indicações de que alguns abusos foram cometidos. Isso não é bom, sobretudo para a tradição judaica do Porto e para a memória até do Capitão Barros Basto que foi o grande impulsionador do renascimento judaico do Porto no século XX.

Presidência de Jair Bolsonaro é dramática para a História do Brasil (...) É uma pena que o Brasil, esteja dividido entre dois caudilhos
No livro fala dos escritores brasileiros e diplomatas. O Brasil, é um país que conhece muito bem. Que prognóstico faz para as eleições presidências de domingo?

Quando ia muito ao Brasil, quase vivia no Brasil, era um país aberto, onde as pessoas podiam ter ideias, discuti-las. Hoje é muito difícil. É um país muito fragmentado, muito dividido, onde o confronto de ideias deu lugar ao confronto de pessoas. Isso tornou-se desagradável e tornou a vida impossível para muita gente.

Esta presidência de Jair Bolsonaro é dramática para a História do Brasil, mas isso também tem a ver com a natureza dos próprios populismos. É uma pena que o Brasil, esteja dividido entre dois caudilhos, e duas formas de caudilhismo que são muito normais na América Latina, o que é uma pena.

Obviamente no Brasil, desapareceu o centro, uma certa moderação, desapareceram pessoas influentes que perderam todo o espaço de manobra. E eles próprias perderam o Brasil. Penso que será muito difícil, nos próximos tempos, ter um presidente com tanto prestígio, tanta aceitação e experiência como foi o caso de Fernando Henrique Cardoso. Lamento muito pelo Brasil, lamento que tenhamos chegado a esta situação que é tão estranha que qualquer comentário é imediatamente motivo de polémica.

O Brasil está dividido em trincheiras e essas trincheiras não deixam ver para lá dos próprios muros. Isso torna o Brasil, não diria “infrequentável”, mas muito mais difícil de frequentar.

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