Entrevista Renascença

Rodrigo Guedes de Carvalho. “Escrevo todos os dias, com hora marcada, na esperança que a musa compareça ao meu lado na secretária”

18 fev, 2022 - 19:17 • Maria João Costa

Fala do país e do mundo na televisão quando veste o fato e a gravata, mas Rodrigo Guedes de Carvalho é mais do que o jornalista do Jornal da Noite da SIC. Está a completar 30 anos de carreira literária. Tem novo livro a sair em abril e o seu primeiro livro “Daqui a Nada” agora reeditado.

A+ / A-

Ainda se lembra “perfeitamente” do dia em que começou a escrever, à máquina, numa mesa de jogo, o seu primeiro romance. Era verão e ainda não tinha 20 anos. Rodrigo Guedes de Carvalho está a completar 30 anos de escrita literária. O seu primeiro romance “Daqui a Nada” é, agora, reeditado pela Dom Quixote, a editora que tem em mãos o seu novo romance, pronto a sair em abril.

Nesta entrevista à Renascença, o também jornalista e pivot do Jornal da Noite da SIC, fala da sua oficina de escrita, de como tem hora marcada para escrever na esperança que a “musa” surja, diz que a inspiração nasce do “poder de observação” e que sua “forma de escrever contra a violência, é escrever sobre a violência”. Talvez por isso admita que alguns livros possam ser “um bocado mais amargurados”.

Sobre o seu outro trabalho, Rodrigo Guedes de Carvalho fala dos desafios dos media que, como a SIC, sofrem ciberataques. O pivot considera que hoje o “papel do jornalismo é tentar encontrar um lugar de verdade”. Com 30 anos de “relação com os portugueses” através da tv, admite que no início da pandemia aconteceu “começar a falar com eles de uma forma como se desapertasse a gravata”. “Também sou apenas um cidadão português com os problemas, pensamentos e angústias de toda a gente”, conclui.

E de repente passaram 30 anos. Escreveu “Daqui a Nada” tinha 20 anos. Muito antes de o publicar. Este seu primeiro livro está a ser reeditado pelo Dom Quixote. Diz, numa nota de autor, que “Não é o livro que hoje escreveria”. O que mudou nesses 30 anos?

Passaram 30 anos tanto na vida literária, como na minha outra vida. De facto, parece que foi ontem. Isto é um alerta para todos, porque o tempo passa depressa! Necessariamente, 30 anos operam uma enorme diferença em qualquer pessoa e um autor não poderá ser, de forma alguma, exceção. Sendo que, nos autores, aqueles que vou conhecendo, reparo que vão fazendo da passagem do tempo uma vantagem, ou seja, tentam tornar-se melhores através da experiência e das vivências, com o passar dos anos. Tentam tornar-se melhores na sua escrita.

Vivia então a tal “fresca ingenuidade” que refere na Nota de Autor?

O "Daqui a Nada" é um livro onde eu reconheço fragilidades próprias da época em que foi escrito, mas eu não o quis alterar muito quando foi reeditado pela Dom Quixote. Perguntaram-me se eu queria, no fundo, reescrever o livro, cortá-lo, editá-lo. Eu disse que não, que, para isso, preferia avançar para outros livros. Aquele livro, para o bem e para o mal, é o que é. É o meu início. Dele me orgulho assim.

Ainda se lembra do momento em que decidiu escrever, dedicar-se à escrita?

Lembro-me perfeitamente! Quando comecei ainda tinha 19 anos. Foi num verão, o primeiro em que eu estava em Lisboa, no primeiro ano da faculdade, e tinha voltado para o Porto para passar o verão. Decidi fechar-me no meu quarto, numa belíssima mesa de jogo de madeira que tenho pena que se tenha desviado, nunca mais a vi, onde coloquei a máquina de escrever e escrevi. Lembro-me perfeitamente que tomei a decisão sobretudo para tentar perceber se eu conseguiria pôr de pé um romance.

O que o motivou?

Era um leitor ávido e estava a começar a interrogar-me como é que os escritores fazem isto? Como conseguem manter uma narrativa e prender-nos de página a página? Como é que nos conseguem provocar emoções através de uma coisa que no fundo são, palavras de tinta preta num papel branco? Não passam disso. Está, por exemplo, em desvantagem perante o cinema. Como é que eles conseguem? Será que eu consigo fazer isto? E foi sobretudo esse auto desafio a que me propus quando avancei para o “Daqui a Nada”. Aliás, a primeira versão foi basicamente a versão que ficou.

Há, ainda, muitas famílias marcadas pela Guerra Colonial. “Daqui a Nada” é um livro que tem uma vida longa de 19 edições. Acha que os leitores se identificam com estas personagens e esta história?

É-me sempre muito difícil responder porque é que os leitores procuram os livros? Porque é que eles chegam aos livros? Vão chegando das formas mais dispares. Muitas vezes, a conselho de alguém que já leu. Essa geração da Guerra Colonial, que é a geração dos meus pais, vai lentamente desaparecendo. É uma geração que está a chegar aos 80 anos, mas penso que haverá ainda parte dessa geração, e, sobretudo, os seus filhos, que é a minha geração, que o vivemos, mas não o vivemos.

Também esteve em África?

Eu tinha 10 anos quando fui para África, estive lá dois anos com o meu pai e a minha mãe em Luanda, mas, basicamente, quase não me lembro. Não tenho essa vivência e tenho alguma pena. Eu gostaria de ter experimentado mais os sons, as cores e os cheiros. Então, vivemos uma espécie de melancolia por transposta pessoa. Foi, também, porque senti ter essa capacidade, escrever pelos que fizeram a Guerra Colonial coisas que eles não têm a capacidade de o fazer. Lembro-me que esse foi um dos poucos comentários que o meu pai fez: "Que bom que alguém pega nestas histórias e nestas vivências e faz com que elas não sejam esquecidas".

Sou uma pessoa que gosta muito de pessoas.
De onde nascem as histórias que provocam a inquietação para escrever?

Penso que esse é um mistério no qual os criadores não gostam muito de mexer para não perturbar. Nós não sabemos bem como é que nasce. No meu caso, nascerá, naturalmente, de um poder de observação que tenho desde miúdo. Já o disse várias vezes, eu fui durante muito tempo filho único e neto único e, portanto, fui uma criança sozinha no meio de adultos e os adultos viviam a sua vida. Nenhum parava para dar atenção a uma criança, as crianças é que tinham que acompanhar o passo dos adultos. Isso fez de mim, naturalmente, um espetador, um observador. Desde criança que cresci assim e fui mantendo essa curiosidade. Gosto muito de estar quieto e calado e a observar. Isso atravessou toda a minha vida. Depois vai havendo histórias que me vão surgindo. Eu sou daqueles que acha que, sim, o romance tem que ter uma história e uma narrativa, não sou nada adepto dos escritores que dizem que o romance não é para contar uma história. Não! É para contar uma história de uma forma bela, daí entrar o epiteto de literatura. A história vai-me aparecendo na cabeça e está sempre à volta de personagens. Sou uma pessoa que gosta muito de pessoas. Acho que são um mundo infinito. E é sempre sobre pessoas que eu escreverei. Assim que começo a ter o número suficiente de personagens para as colocar em conflito e andamento numa história, então aí, avanço para o livro.

O seu último livro publicado, o “Margarida Espantada”, é um livro que fala da violência doméstica. Que caminho sente que vai trilhando na sua escrita, ganha densidade?

Não me caberá a mim dizer. Eu tenho por exemplo um livro, o "Mulher em Branco" de 2006, é o meu terceiro livro, em que acho que, do ponto de vista literário, é o meu livro mais difícil para o leitor. É um livro muito burilado que vive muito da forma e parece quase um livro exibicionista no sentido de: "reparem como eu escrevo tão bem". É um livro difícil, denso, no qual não é fácil entrar e podemos perder facilmente o fio à meada sobre qual era a personagem que estava a falar, e esta personagem é quem? Por acaso, acho que nos meus últimos três livros, a escrita está bastante mais depurada no sentido narrativo. Até está um pouco mais clássico se é que podemos determinar o que é o clássico na literatura.

É uma história que podemos ouvir como se alguém estivesse sentado a uma lareira a contá-la. O que se passa é que, muitas vezes, a minha escrita, o meu universo atravessa factos, dados ou acontecimentos de uma grande dureza. É a minha forma de escrever contra a violência, é escrever sobre a violência. Nesse sentido, acabam por ser por vezes livros um bocado mais amargurados. Agora o que me aconteceu, foi que, nos últimos três romances, sem que me tivesse previsto, há personagens que vão transitando, que vão perfurando de um romance para o outro e estou a achar esse exercício bastante curioso.

Na sua carreira de escrita estão, também, guiões para filmes e peças de teatro. Que exigências diferentes há nessa escrita?

É bastante diferente e, nesta fase da minha vida, confesso-lhe que me interessa pouco. Estou muito contente por, neste momento, estar circunscrito ao romance em que não dependo de ninguém. A escrita para cinema e para teatro é apenas o início de um processo no qual depois podemos perfeitamente perder o controlo, depois ficamos a pensar quem vai dar vida àquilo. No cinema e teatro há sempre quem vem depois, o encenador, o realizador, o produtor seja quem for, que achará sempre que o nosso texto é, apenas, um ponto de partida. Então, propõe-nos que se corte aqui e acolá, que no diálogo que ela diga isto e não aqueloutro e que ele em vez de ser moreno, dava-nos mais jeito que fosse loiro. Então começa a haver uma desconstrução que para mim nesta idade é excessiva naquilo que eu quero fazer e mostrar às pessoas enquanto narrador. Prefiro ter o controlo total que tenho no romance, onde obviamente tenho uma editora, a Cecília Andrade que lê o livro de uma forma critica e chamando-me a atenção para isto ou aquilo, mas que respeita muito o espírito do que eu quero escrever. Deixei de ter esses convites, deixei de escrever para cinema, mas também nesta altura seria alguma coisa que não me interessaria muito, a não ser que me surgisse um projeto interessante!

Sendo o rosto do Jornal das Oito da SIC, por vezes o jornalismo rouba tempo ao escritor?

Rouba o tempo que roubará a qualquer escritor que, no fundo, não viva da escrita e que tenha que ter um emprego. Penso que seremos a maioria em Portugal, pessoas que não conseguem viver da escrita e que terão sempre uma outra atividade. No meu caso, a SIC, é um emprego que tem um horário então, o que me resta é fazer uma coisa que, para mim, não é muito difícil, que é ser disciplinado. Tenho que ter em conta qual é o meu horário na SIC e nesse não me é possível escrever, então escrevo em todos os outros horários que me sejam possíveis. Mas eu encaro a escrita e, à medida que vou conhecendo biografias de outros escritores, reparo que é um traço muito comum toda a gente encarrar a escrita como um verdadeiro trabalho ao qual tem que se comparecer.

Como é a sua oficina de escrita?

A partir do momento que começo a escrever, faço por escrever todos os dias. Dou-me uma folga por semana. Haverá um sábado ou um domingo em que não escrevo. De resto, escrevo todos os dias, com hora marcada, na esperança de que a Musa compareça a essa hora ao meu lado na secretária. Agora, os dias são absolutamente desiguais. Há dias em que escrevo 10 páginas, há outros dias em que escrevo uma. Tenho uma única regra. Trabalho muito por capítulos, talvez seja a minha cabeça cinematográfica que trabalha por cenas. Trabalho por capítulos curtos. Nunca fecho um capítulo e fico sem nada para o dia seguinte. Nunca começo o dia, começando um capítulo, ou seja, fecho um capítulo e começo o próximo. Nem que sejam duas linhas para, no dia seguinte, ter uma espécie de pontinha de fora onde retomar.

É metódico.

É a única regra que faço. E tem-me acontecido, nos três últimos livros, que, sensivelmente a meio do romance, escrevo o fim. Escrevo mesmo o último capítulo. É curioso. Eu determino o destino para o qual quero caminhar. Depois, no fundo, é ir buscar o início do livro e ligá-lo àquele final. Fazer toda a caminhada que seja interessante, até chegar aquele epílogo. Às vezes penso, “OK, se calhar este não será o fim, depois eu mudo”. Mas ficaram nos dois últimos romances. O fim ficou inalterado.

Vai ter novo livro ainda este ano?

Tenho um livro que sai em abril. Já andamos para cá e para lá com as revisões entre mim e a editora.

Tem título? Pode falar sobre a história do novo livro?

Não queria revelar o título, porque gosto do título e acho que é apelativo e curioso. Mas não queria revelar. Mas posso dizer-lhe que, no seguimento do que me tem acontecido, em que as personagens de outros romances acabam por infiltrar-se no novo romance, aqui isso acontece de forma notória. Qual é o desafio acrescido? Espero que tenha sido conseguido! É criar um livro que, ao mesmo tempo, tenha duas caraterísticas. Para os meus leitores mais atentos, e que conhecem e gostam da minha escrita, que eles reconheçam aquelas personagens e que fiquem contentes de reparar que elas regressam. Mas para o leitor que nunca leu uma linha minha, que vai entrar pela primeira vez, que a história se sustente sem ser preciso qualquer "background". Isso, do ponto de vista criativo, é um enorme desafio. Espero eu ter conseguido!

Assim que me chega qualquer notícia, mesmo que venha com fotografias e vídeos, a minha primeira ideia é desconfiar. Isto é terrível!
Tem abraçado algumas causas. Recentemente falou publicamente sobre a questão da seca e de como a água é gasta. Também no início da pandemia, foi muito mais do que só jornalista nos pivots do Jornal da Noite. Sente que o pivot tem também uma função social?

Não. São coisas diferentes. Eu não diria que defendo causas. Eu dou a minha opinião e depois há pessoas que difundem a minha opinião querendo introduzir-me num movimento "também Rodrigo Guedes de Carvalho veio dizer que...". Não tenho causas do ponto de vista macro. Disse essa coisa sobre a água, porque é uma coisa que há muitos anos me faz uma enorme aflição, esse desperdício de água de particulares, de câmara e entidades públicas.

Em relação à pandemia, aquilo foi um momento único para todos nós. Quando fizermos a História destes dois anos vamos reparar que foi o período das nossas vidas em que mais fomos apanhados de surpresa. É uma coisa que virou a nossa vida de pantanas. Acho que todas as regras que conhecíamos, até então, podiam ser postas em causa. Mas não fiz isso com nenhum ponto de vista estratégico ou de criar a ideia de que os pivots podem e devem fazer isto.

É uma coisa que me apeteceu para a qual acho que, se eu não tivesse os anos de profissão que tenho, não me sentiria sequer à vontade ou no direito de fazer isso. Mas eu tenho uma relação com os portugueses de 30 anos. Aconteceu-me começar a falar com eles de uma forma mais quase como se desapertasse a gravata, passo a expressão, para comungar com eles e também lhes dar uma coisa que acho essencial no jornalismo. Lembrar-lhes que eu também sou apenas um cidadão português com os problemas, pensamentos e angústias de toda a gente. Agora, foi uma coisa que foi acontecendo de forma absolutamente orgânica e não pensada, mas que não pretendeu criar nenhum movimento.

Estes últimos dois anos têm posto o jornalismo à prova em vários sentidos, não só pela forma como se faz informação, como se distingue as chamadas “fake news”, os problemas económicos que os media enfrentam. Posto isto como vê o jornalismo que se está a fazer em Portugal?

É a chamada pergunta em leque! É demasiado abrangente. Mas acho que há um problema fundamental do jornalismo ao qual não são imunes a importância cada vez maior das redes sociais e a capacidade de difusão massiva que escapa completamente ao tempo em que os jornalistas eram as únicas fontes de informação.

O papel do jornalismo é tentar encontrar um lugar de verdade na massificação de informações que circulam e muitas delas são manipuladas, manipulatórias ou já vêm enviesadas e feitas de mil enganos que se multiplicam em dois mil. É tentar cometer o menor erro possível. É estar muito atentos às fontes de informação. Este é, para mim, o grande desafio do jornalismo. Eu, hoje em dia, assim que me chega qualquer notícia, mesmo que venha com fotografias e vídeos, a minha primeira ideia é desconfiar. Isto é terrível! Mas é desconfiar de onde vem, que canais atravessou. Esse tempo de incertezas em que os jornalistas foram muitas vezes levados a cometer erros que não dependeram deles, penso que é o grande desafio dos tempos modernos e veio para ficar. Tudo se vai jogar nesse tipo de manipulação e na guerra tecnológica que estamos a ver. Da mesma forma que podemos ser mandados abaixo por alguém, literalmente como fomos, também, sei lá se de futuro podemos ser completamente truncados e utilizados para veículos de propaganda sem que nos apercebamos disso.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+