O Natal “é sempre uma oportunidade para renascer”, diz Teresa Salgueiro

17 dez, 2021 - 21:45 • Maria João Costa

A cantora dá este domingo um concerto de Natal no Cinema São Jorge, em Lisboa onde vai interpretar músicas portuguesas de Natal. Em entrevista à Renascença, a ex vocalista dos Madredeus explica como a pandemia a deixou num silêncio, sem inspiração e se tornou num momento de reflexão.

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Passados 15 anos do fim dos Madredeus, Teresa Salgueiro continua a sentir que aquele projeto musical que marcou para sempre a música portuguesa, está no seu coração. “Está em mim e faz parte do meu ADN”, reconhece a cantora que este domingo sobe ao palco do Cinema São Jorge, em Lisboa, para um concerto de Natal, só com músicas portuguesas, promovido pela EGEAC.

“O Natal destas canções e também o da minha infância, é um Natal à volta da figura do Menino Jesus”, lembra Teresa Salgueiro que guarda na memória o Natal em família, como um momento de união e partilha. Desde 2016 que Teresa Salgueiro não lança um disco. O último foi Horizonte. Mas a cantora estava a começar a trabalhar num novo álbum quando a pandemia se intrometeu pelo meio.

“Nos primeiros tempos senti que estava dentro do silêncio. Não foi um tempo de inspiração, de concretização. Foi um tempo de reflexão”, diz a artista que agora já se sente com um sentimento de esperança em que as ideias musicais voltaram a fluir. Sobre o impacto da pandemia na cultura, Teresa Salgueiro fala em “grande resistência” e diz que o seu valor ficou “realmente provado”.

Teresa Salgueiro vai subir ao palco do Cinema São Jorge este domingo para um concerto de Natal. O que vai oferecer ao público?

Vou apresentar-me em palco com o José Peixoto na guitarra, o Rui Lobato nas precursões e também guitarra, o Fábio Palma no acordeão e a Sofia Queiroz no contrabaixo. Juntos costumamos fazer outro reportório e são músicos com os quais gosto muito de trabalhar. Recebi este convite da EGEAC para fazer um concerto de Natal e aquilo que pensei é que gostaria de cantar canções da tradição de um Natal português.

E que músicas escolheu do cancioneiro português de Natal?

Fiz uma recolha de canções tradicionais portuguesas e o concerto será, na sua grande maioria, a interpretação destas canções, arranjadas por nós. A maioria das canções são geralmente cantadas por coros, têm harmonizações muito conhecidas do Fernando Lopes-Graça, Jorge Crones de Vasconcelos, de Mário Sampaio Ribeiro ou Eurico Carrapatoso, entre outros. Fiz uma pesquisa através de várias gravações a que tive acesso, nomeadamente um disco maravilhoso da Gulbenkian que se chama 'Canções de Natal Portuguesas'. Fui buscar as melodias e depois, não indo atrás das harmonizações conhecidas, preparamos arranjos para esta instrumentação. Há apenas um tema em que visitamos a harmonização do compositor Eurico Carrapatoso que é o tema "José embala o Menino". Tudo o resto, são arranjos em que ficamos centrados na melodia da voz e livremente transpusemos para esta instrumentação.

Que memórias é que a Teresa Salgueiro tem do seu Natal em família, na infância?

Recordo a união, a partilha, amor. A minha família nuclear é uma família muito pequenina, porque não tenho irmãos e normalmente passo o Natal com o meu pai e a minha mãe. Passávamos sempre os três. A tradição foi sempre essa. O meu avô vivia na ilha da Madeira, por isso era um Natal vivido a três. Se bem que depois tinha uns primos muito próximos que nos juntávamos nos dias à volta, mas a noite de Natal e o dia era passado com os meus pais num ambiente de grande harmonia. Toda a antecipação desse dia era feita com muita expetativa. Sempre gostei muito de ouvir as canções de Natal. Desde menina, na escola cantava algumas das canções.

É uma memória de família, o Natal?

Tenho muita memória do amor familiar, da reunião, daquele silêncio que se consegue. Ainda hoje, tenho a sensação de que na noite de Natal o tempo quase se suspende. No meio do rebuliço, da corrida dos nossos dias, de certa forma o Mundo suspende-se e as pessoas procuram a ocasião de estarem juntas em família. Tenho muito boas recordações.

Há uma dimensão religiosa para si no Natal? e na música?

O Natal destas canções e também o meu, da minha infância. É um Natal à volta da figura do Menino Jesus. Do nascimento de Jesus, de um eterno renascer de uma visão para o Mundo, de partilha, de amor e cuidado pelo próximo. Para mim, penso que esse sentimento também tem de estar presente nas canções. Essa figura do Menino e a reunião da família e o cuidado que devemos ter com as crianças, em particular, porque são o futuro do Mundo e também um com os outros. É o cuidado dentro do mais essencial, o Menino que nasce numa gruta, no meio do frio, no meio da maior humildade, é toda esta reflexão que nessa noite em que se suspende o tempo, continuamente faço. A par desta reflexão, há também a constatação daqueles que têm família e se podem reunir, ou aqueles que nada têm. Eu penso que é mesmo o momento de pensar nos mais humildes e repensar a nossa forma de estar no mundo. É sempre uma oportunidade para renascer.

Como é que a Teresa Salgueiro enfrentou esta pandemia e passou estes últimos tempos tão desafiantes?

Já lá vão dois anos e houve fases distintas. O último concerto que fiz antes do confinamento, foi em Buenos Aires. Cheguei a Portugal a 4 de março e poucos dias depois ficamos todos em fechados em casa. Eu tive a sorte de ter-me mudado para o campo, poucos meses antes, e, portanto, a questão de estar confinada em casa foi vivida de uma forma muito distinta. É um grande privilégio poder estar em contato com a natureza. Nesse sentido foi bastante tranquilo. Foi, e continua a ser, uma oportunidade para refletir. Parece que houve uma suspensão. Aquilo que eu sempre senti durante todo este tempo, pelo menos até ao ano passado quando começou a abrir mais e conseguimos fazer concertos, foi que a minha noção do tempo se alterou completamente. Por um lado, parece que passou muito tempo, por outro, às vezes parece que não.

Conseguia criar?

Nos primeiros tempos senti que estava dentro do silêncio. Não foi um tempo de inspiração, não foi um tempo de concretização. Foi um tempo de reflexão. Depois tive a felicidade de no ano passado, de setembro a dezembro, fazer alguns concertos, o que me deu alguma alegria e esperança. Depois os meses mais difíceis foram os do início deste ano, aqueles primeiros 4 meses em que tudo se agravou bastante. Depois as coisas foram abrindo e eu finalmente comecei a sentir que saía desse silêncio, dessa espécie de torpor. Comecei a ter convites de vários artistas para fazer concertos e fiz, com muitos músicos diferentes, o que foi maravilhoso. Além desses encontros, também senti uma capacidade, uma vontade e uma inspiração de fazer coisas novas. Vamos ver.

Desde 2016 que não lança um disco. Poderá fazê-lo e breve?

Quando isto tudo começou estava precisamente naquele momento em que ia tomar balanço para começar esse processo. No primeiro ano, entre março e até abril deste ano estive realmente encerrada. Não conseguia projetar nada. Não conseguia projetar ideias. Depois, quando em abril começamos a fazer concertos e comecei a encontrar-me com outros músicos, aí sim, comecei, não só a ter ideias de coisas que quero gravar, como comecei a escrever. Comecei a alinhar uma série de ideias musicais que ainda não tive ocasião de trabalhar, porque felizmente comecei realmente a ter bastantes concertos e alguns deles como são encontros com músicos com os quais não me costumo encontrar, necessitam de mais disponibilidade. Por exemplo, este concerto de Natal precisa de todo um trabalho de levantamento de reportório e arranjos. Ainda não tive ocasião de desenvolver as ideias que, entretanto, fui tendo, mas sinto-me finalmente com esperança. As ideias musicais voltaram a aparecer, o que é maravilhoso.

Que valor é que acha que a cultura perdeu ou ganhou neste tempo de pandemia. Que mensagem deve dar?

É algo muito vasto e cada ator cultural terá a sua própria mensagem. Globalmente acho que a cultura dá uma mensagem de grande resistência. Somos pessoas que por um lado, resistem, e por outro, têm a capacidade de estarem em contato com esse mundo das ideias, do sonho, do pensamento, com o intangível que é real. Faz parte das nossas vidas, e completa-nos. Acho que também há essa ligação constante ao mundo onírico. Ao levar, naquilo que produzimos, a nossa leitura do mundo, acho que levamos uma esperança às pessoas. Podemos confirmar, com aquilo que vamos fazendo, que a vida é muito mais do que o mundo material. O valor da cultura ficou realmente provado. As pessoas têm uma necessidade enorme. O valor intrínseco da cultura é muito mais do que o mundo material. Os artistas também precisam da materialidade para viver, como é evidente, mas aquilo de que nós vivemos, nos alimentamos e oferecemos aos outros, daquilo que o público frui, é algo que nos reúne a todos e que nos interpela para viver a vida com um sentido mais em conjunto. Um sentido de fraternidade.

Tem um percurso longo na música, começou cedo nos Madredeus, foi uma autodidata. Que lugar sente que ocupa hoje no panorama da música portuguesa?

É uma pergunta complexa. Por um lado, o lugar que eu tenho, é o lugar que o público me dá. Esse é o lugar. O lugar que eu procuro na música, é o lugar da entrega, desde sempre. De aprendizagem, de fruição, de partilha e de troca com o público. Perante a música, eu tenho sempre a mesma paixão, a mesma entrega e a mesma vontade de alargar as minhas capacidades, o que eu possa comunicar e experienciar. O lugar que eu ocupo na música portuguesa, é mais um. É um percurso, já longo efetivamente, e bastante singular. Essa aventura longa com os Madredeus, tão especial. Depois todo um percurso que tenho vindo a continuar. É um lugar de persistência e paixão acima de tudo.

Com os Madredeus percorreu o mundo. Foi um grupo que marcou indiscutivelmente a música portuguesa e a sua representação internacional. Que memória guarda?

Foram vinte anos. A dada altura, quando saí da banda, era mais de metade da minha vida, porque eu comecei tinha 17 anos. Entretanto, já se passaram mais 15. Faz parte de mim, é indissociável de mim a experiência com os Madredeus, no sentido em que tudo aquilo que eu faça é indissociável desse início.

Claro que procuro diversificar e visitar estilos musicais diferentes, mas há uma matriz. E essa matriz já estava comigo, mesmo antes dos Madredeus. Já havia também um gosto meu pela música portuguesa, pelas palavras, porque tudo começou para mim, no canto, assim mais seriamente através da escuta de dois discos. Um, o disco “Busto” de Amália Rodrigues e o outro disco “Cantigas do Maio” de Zeca Afonso. A escuta desses discos e essa poesia portuguesa cantada, essa entrega, essa diversidade foram uma matriz que veio a materializar-se, depois, no encontro que foi uma felicidade enorme com aqueles músicos que me estavam a oferecer canções para cantar que tinham a ver com o mesmo sentimento que encontrava quando ouvia aqueles discos. E isso é muito curioso. O lugar dos Madredeus, é um lugar maravilhoso e enorme, é indissociável da minha vida e é um lugar de aprendizagem. É um lugar que está no meu coração, está em mim, e faz parte do meu ADN.

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