Reportagem

Como é que a Covid-19 está a mudar a Igreja?

23 dez, 2021 - 12:39 • Ana Catarina André

Mais de um ano e meio depois do início da pandemia, a paróquia de Santo António de Nova Oeiras tem menos idosos e jovens na missa, mas mais fiéis entre os 30 e os 40 anos. Surgiram novos projetos de apoio aos mais frágeis e houve grupos que se renovaram. O digital veio para ficar com o aparecimento de iniciativas de oração à distância.

A+ / A-

A missa está prestes a começar. À entrada do salão paroquial de Santo António de Nova Oeiras, no distrito de Lisboa, a equipa de acolhimento vai disponibilizando álcool gel a quem chega e indicando os lugares neste espaço improvisado – a igreja é agora demasiado pequena para assegurar o necessário distanciamento social imposto pela pandemia.

Aos poucos, o número de participantes nas eucaristias vai-se aproximando dos registos pré-pandemia, adianta o pároco Nuno Westwood. A assembleia, porém, mudou. Muitos dos mais velhos passaram a assistir à celebração através da televisão ou pela internet. Alguns dos mais jovens deixaram de aparecer. Também há caras novas, sobretudo pessoas entre os 30 e os 40 anos, que descobriram a fé em tempos de Covid-19.

Entre os membros da assembleia estão Susana Martins e Fernando Durão. São catequistas de um dos cinco grupos de jovens da paróquia. Participam na missa com os adolescentes que acompanham, entre os 14 e os 15 anos. “Com a pandemia, a eucaristia passou para segundo plano. Para muitos [dos jovens], bastava o encontro de catequese. Não sentiam falta da missa”, considera a animadora de 48 anos, frisando que têm procurado inverter esta tendência, propondo a realização do encontro semanal do grupo antes da missa, para que possam depois ficar para a celebração.

"Alguns ficaram desmotivados. A quarentena afetou-nos muito”

Menos crianças e jovens na catequese

Neste momento, a paróquia de Santo António de Nova Oeiras tem cerca de 200 crianças e jovens na catequese, um número que, segundo Fernando Durão, é 10% a 15% inferior ao registado no ano anterior.

Rafael Balão, de 14 anos, é um dos jovens mais assíduos do grupo. Conta que, ao longo do último ano, se manteve ligado ao grupo, mas admite que a sua fé vacilou. “Percebi que a Igreja fazia falta na minha vida”, admite. A mobilização do grupo para apoiar uma causa social foi importante para se sentir motivado.

“Um dos desafios que nos fizeram, no âmbito do Say Yes [itinerário de preparação para a Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023], foi a criação de um projeto que pudesse beneficiar outras pessoas ou instituições. Foi assim que descobri o Francisco, um rapaz que sofreu paralisia e que precisava de ajuda para fazer reabilitação e para que a casa, onde vive, possa ser adaptada às suas necessidades.”

Nos últimos meses, Rafael e outros dos jovens do grupo fizeram cartazes e vídeos de divulgação para recolherem tampas para angariar fundos. Chegaram mesmo a apelar ao contributo de todos, no fim das missas. Quando as condições sanitárias o permitirem, querem conhecer o Francisco.

O projeto, porém, não foi suficiente para reavivar o entusiasmo de todos os jovens do grupo, sobretudo na fase em que se reuniam através das plataformas digitais. Nessa altura, muitos desligavam as câmaras dos computadores, sem que os animadores percebessem se estavam ou não a acompanhar a sessão. “Alguns ficaram desmotivados. A quarentena afetou-nos muito”, assume Rafael. “Nós, jovens, gostamos muito de estar fora, estar com os amigos. Daí a que o regresso tenha sido espetacular”, diz, frisando que “foi incrível” voltarem a reunir-se presencialmente, quase um ano e meio depois.

Os mais novos preferem encontros religiosos presenciais

Um estudo, recentemente divulgado, sobre a experiência religiosa em Portugal durante a pandemia, concluiu que são os jovens quem tem mais vontade de regressar aos encontros presenciais no pós-covid.

“Quando começámos a comparar a percentagem de indivíduos que já usava meios digitais antes da pandemia, com a dos que pretendem continuar a utilizá-los após a pandemia, verificamos que a percentagem era semelhante, mas que não eram as mesmas pessoas”, diz a investigadora Clara Almeida Santos, explicando que dois terços das pessoas que procuraram, pela primeira vez, ferramentas e conteúdos digitais de teor espiritual com o primeiro confinamento, deseja manter a utilização. Por outro lado, 20% dos já usavam antes, quer interromper o uso.

“A faixa etária onde mais gente vai desistir é a faixa etária dos 15 aos 24 anos. Podíamos pensar que os mais jovens têm maior apetência para este tipo de recursos digitais, mas não é isso que o nosso estudo revela”, considera a professora da Universidade de Coimbra.  E acrescenta: “Pode ter a ver com a necessidade de contacto com a comunidade física. Passaram grande parte do confinamento em ensino à distância, na prática espiritual ou religiosos pretendem regresso à vivência física”.

Margarida Franca, outra das autoras do estudo, considera que “a religião entrou nas nossas casas de maneira completamente diferente” e que, “em muitos casos, levou à criação de novos espaços em casa para assistir à missa ou participar na catequese”. Muitas pessoas criaram pequenos altares em casa, marcando assim esse espaço celebrativo.

Menos receitas

A recolha de ofertórios nas duas paróquias também foi afetada com a pandemia. As receitas diminuíram, mas “com o contributo de todos”, as contas foram-se equilibrando. “Sempre que solicitamos a colaboração, as pessoas foram generosas”, diz o padre Nuno Westwood.

“No primeiro mês, em junho de 2020, foi surpreendente. Apesar de estarmos reduzidos a um terço da população que frequentava a missa, os ofertórios eram iguais. Acredito que as pessoas foram acumulando alguma coisa que trouxeram. A baixa sentiu-se depois, mas com a generosidade de todos tem dado para as despesas.”

Um novo mundo de possibilidades pastorais

Tal como nas paróquias de Nova Oeiras e São Julião da Barra, também no Centro Universitário Padre António Vieira, em Lisboa, o diretor, o padre João Goulão assistiu a essa necessidade de encontros presenciais por parte dos jovens. “Houve uma geração, sobretudo os que entraram na faculdade, que ficou privada dos encontros, das festas, das noites, dos novos programas. Em vez disso, estes jovens estiveram em casa a conhecer gente pelo Zoom. Nota-se muito a necessidade de estar, e de voltar a alguns hábitos da fé”, diz o sacerdote jesuíta.

“As ‘netflixizações’, ‘instagramações’ e ‘uberizações’ do quotidiano fazem com que olhemos para a vida quase do ponto de vista customizável. Temos também uma necessidade grande de contar a nossa história, o que pode ter dado, a certa altura, a perceção de que poderíamos viver só no digital”, refere João Goulão, explicando que não é assim. “O digital trouxe um marco de possibilidades muito grande para o serviço pastoral que tem de estar sempre a par do encontro da comunidade e da comunidade constituir um corpo.”

Foi a aposta no digital que fez com que a comunidade da paróquia de Santo António de Nova Oeiras continuasse a sentir-se unida. Como conta o padre Nuno Westwood, apesar de nos jovens existir uma clara preferência pelo digital, muitos dos mais velhos adaptaram-se ao online e continuam a usá-lo para rezar. “Temos um grupo que todos os dias reza o terço online, com transmissão pelo Facebook, com este sentido também de abertura aos outros, a quem esteja na Internet e queira rezar com eles”, conta o presbítero, adiantando que a missa continua a ser transmitida pela Internet, embora a aposta da comunidade seja no presencial.

Também há um grupo que se encontra online para partilha da Palavra e um outro, constituído exclusivamente por homens, que se reúne todas as sextas-feiras às sete da manhã, a que deram o nome de Men’s Gym (as iniciais de God, You, Me).

“Percebemos que havia muitos homens que tinham o desejo de ter um espaço de oração e partilha e ficamos surpreendidos com a adesão”, conta Lourenço Sobreiro, um dos membros do Men’s Gym. E conta: “Antes da pandemia, reuníamos presencialmente, às 6h45. Agora, graças às plataformas online, conseguimos que mais pessoas participem, incluindo algumas que estão longe, em países como Espanha e o Qatar”.

Vizinhos solidários

Desde o início da pandemia, as comunidades de Santo António de Nova Oeiras e de São Julião da Barra disponibilizaram acompanhamento espiritual, psicológico, social, informático e administrativo a todos os que precisaram. Em abril de 2020, organizaram um momento digital de partilha e oração, a que deram o nome de "Countdown", que assinalou o fim do primeiro confinamento e o regresso à missa presencial. “Fizemos uma transmissão online com testemunhos, momentos de oração e música. Depois na passagem de ano, como sabíamos que havia pessoas sozinhas, repetimos a iniciativa”, conta Helena Chaveiro, da paróquia de São Julião da Barra.

Foi, também, durante o confinamento de março e abril de 2020 que nasceu o projeto Bons Vizinhos. Uma iniciativa que permite um conjunto de voluntários trate das compras de alimentação e medicamentos dos mais idosos e debilitados. “No início tínhamos todos muito medo, mais até pelas pessoas a quem íamos entregar bens, porque eram vulneráveis. Tentávamos sempre não chegar demasiado perto“, conta Margarida Quelhas.

"Tudo o que fizemos foi para que as pessoas não se sentissem sozinhas”

Nesta altura, apercebeu-se também do papel que os mais velhos tinham na Igreja. “Muitas das pessoas que até então faziam voluntariado nas paróquias eram mais velhas, mas como naquela altura não deviam sair de casa, houve um rejuvenescimento dos grupos”, acrescenta a arquiteta de 51 anos, revelando que, desde que o projeto foi criado, os 30 voluntários da equipa apoiaram 24 pessoas.

Madalena Zeferino, uma das beneficiárias, descreve-os como “anjos caídos do céu”. “Telefono, vêm cá trazer-me as coisas e eu pago-lhes”, conta a idosa que tem uma saúde frágil e raramente sai de casa. Deixou de conseguir ir à igreja, mas todos os domingos faz questão de ver a missa na televisão. “Quando me deito, peço a Deus que me deixe chegar ao dia seguinte para ver a missa. Não posso deitar-me sem rezar – agora até rezo mais agora para pedir a Deus que nos ajude a todos nesta pandemia.”

Para o padre Nuno Westwood, o mais importante foi estar com a comunidade. “Tudo o que fizemos foi para que as pessoas não se sentissem sozinhas. A Igreja estava viva, próxima, ainda que com muitas limitações”, afirma o padre Nuno Westwood. “Penso que esta preocupação de manter esta rede de relações comunitária, permitiu que, apesar das consequências negativas que a pandemia trouxe, nos mantivéssemos de alguma forma unidos.”

OuvirPausa
0:00 / 0:00
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+