Legislativas 2022

“Metade mais um” ou “solução para quatro anos”: a dificuldade de pronunciar maioria absoluta

09 jan, 2022 - 22:00 • Fábio Monteiro , Susana Madureira Martins

Maioria absoluta: Costa sonha com ela, Rio admite que é um objetivo “dificílimo”, ambos a cobiçam. Mas quem a pode alcançar? Vieira da Silva, histórico socialista e diretor de campanha de Sócrates em 2005, avisa que hoje “é mais complexo alcançar” tal objetivo. Já Luís Mira Amaral, tendo em conta o programa que o PSD apresentou, defende que o partido, se conseguisse uma maioria absoluta, podia reformar o país. Desde 1974, apenas Cavaco e Sócrates chegaram lá, dois líderes carismáticos, mas opostos, que souberam aproveitar “circunstâncias excecionais”, diz o professor universitário André Azevedo Alves.

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Como um sonho, a maioria absoluta parece ser, por estes dias, aquele objetivo cujo nome o PS e o PSD não querem pronunciar, por receio de acordarem dia 30 de janeiro e tê-lo afugentado. Mas que o sonho pulula por aí, pulula. António Costa tem feito alusões a uma “maioria reforçada”, uma vitória de “metade mais um” e uma solução “para quatro anos”. Já Rui Rio, que entende ter um caminho sinuoso a trilhar para chegar ao Governo, devido à fragmentação da direita, tem falado de um objetivo “dificílimo”.

A aceção do líder do PSD é justa: desde 1974, houve apenas três maiorias absolutas em Portugal, duas conquistadas por Cavaco Silva, em 1987 e 1991; uma por José Sócrates, em 2005. Os dois líderes políticos dificilmente podiam ser mais diferentes, mas, ainda assim, partilham alguns traços essenciais, aponta André Azevedo Alves, professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, em declarações à Renascença.

Ambos são figuras “carismáticas” que souberam aproveitar “circunstâncias relativamente excecionais” para chegar ao poder e controlar o Parlamento: Cavaco Silva beneficiou da “dinâmica de entrada e aproximação de Portugal à União Europeia”, Sócrates apanhou a oposição numa “situação de debilidade”. Ou seja, uma maioria absoluta parece ser não para quem quer, mas para quem pode. E quando as circunstâncias o permitem.

José Vieira da Silva, histórico socialista e diretor de campanha de José Sócrates em 2005, avisa que hoje “é mais complexo alcançar uma maioria absoluta” do que há 17 anos. “O eleitorado agora está mais pulverizado, há mais partidos”, diz à Renascença. A má notícia estende-se a Rui Rio. “A segmentação da direita é uma luta que dificulta a estratégia para uma maioria, não aglutina” os votos.

De acordo com o antigo governante, “não existiu uma estratégia” para conseguir uma maioria absoluta em 2005; o eleitorado “encaminhou-se para aí” e isso “sentiu-se” na campanha. E as duas vitórias de Cavaco Silva, em 1987 e 1991, ocorreram num “contexto específico”. Neste momento, “as condições aritméticas são muito diferentes, há mais partidos e uma enorme abstenção”, alerta.

Luís Mira Amaral tem uma opinião diferente. O governante que integrou três executivos cavaquistas defende que a maioria absoluta não é “um fim em si”, mas “um instrumento para o desenvolvimento económico e social” do país. “Não vejo num Governo PS a capacidade de ter um projeto de desenvolvimento económico que afaste o país deste risco de virmos a ser o mais pobre da União Europeia. Em seis anos, o país praticamente quase estagnou. Este PS mostra que não tem condições para saber aproveitar uma maioria absoluta em prol do desenvolvimento económico do país”, aponta.

Segundo o antigo ministro, desde 2015, António Costa nunca mostrou ter “uma ambição de fazer reformas estruturais”. Já Rui Rio pode ser o homem capaz de liderar essa mudança. E se para tal tiver uma maioria absoluta, melhor. “O programa que o PSD apresentou, um excelente programa económico e social, mostra que, com uma maioria absoluta, o PSD está novamente em condições de desenvolver o país”, afirma. Do documento, Mira Amaral destaca “a preocupação com o crescimento económico, a aposta nas empresas e na competitividade. Em seis anos de PS, nunca ouvimos falar de competitividade”.

Do carisma ao tabu

O PS de António Costa cumpre os pré-requisitos? Na opinião de André Azevedo Alves, o atual primeiro-ministro não possui o mesmo nível de carisma que alguns dos seus antecessores socialistas, como Mário Soares ou José Sócrates, o que torna, à partida, mais complicado o percurso que quer trilhar. “Costa é um líder pragmático, um bom tacticista, alguém que tem um grau de popularidade bastante forte, mas do ponto do carisma pessoal não gera o mesmo tipo de adesão”, afirma, deixando, em todo o caso, uma ressalva: “Este tipo de avaliações é mais fácil de fazer algum tempo depois, olhando para trás.”

Para se alcançar uma maioria absoluta, “não é obrigatório” que os partidos tenham uma figura carismática à cabeça, sublinha o professor universitário. Mas, “num sistema eleitoral como o português, um sistema proporcional, que favorece alguma fragmentação” é “altamente recomendável”. “À partida, o perfil de Sócrates e o de Cavaco Silva propiciavam-se mais a esse resultado”, nota.

Neste momento, acima de tudo, Costa parece não querer agoirar; mas na "entourage" do PS, há quem ouse expressar o sonho. Esta semana, Ana Catarina Mendes fê-lo. “Prefiro que o PS tenha uma maioria – e não tenho nenhum receio, é a Ana Catarina a dizer –, uma maioria absoluta”, disse no programa “Princípio da Incerteza, da “TSF” e da “CNN Portugal”. É pouco provável, contudo, que o atual primeiro-ministro venha a fazer o mesmo. Aliás, se o dissesse, estaria a entrar em contrassenso consigo próprio, pois foi ele que, em 2019, afirmou: "Não tenho dúvidas nenhumas de que os portugueses não gostam de maiorias absolutas. E têm más memórias das maiorias absolutas, seja do PSD, seja do PS.”

Os eufemismos de Costa têm uma justificação: o legado da última (e única) maioria absoluta do PS. “O desconforto e ambiguidade [de António Costa] explica-se de forma bastante fácil em duas palavras: José Sócrates. Há uma memória recente do PS e do eleitorado de esquerda do que foi a governação socrática e do que depois se passou”, diz André Azevedo Alves.

António Araújo, historiador e autor do livro “Da Esquerda à Direita - Cultura e sociedade em Portugal, dos anos 80 à atualidade”, diz que Costa está “algo paralisado” e não tem mostrado “grande combatividade”, mesmo com as sondagens a darem o PSD a crescer. Refere ainda que é estranho alguém que ambiciona uma maioria absoluta faça “tabu” disso. “Já disse que quer ‘metade mais um’, isso aritmeticamente é uma maioria absoluta”, ironiza.

Segundo o historiador, “o eleitorado de esquerda tem mais dificuldade em dar uma maioria absoluta”. André Azevedo Alves partilha da mesma opinião: as referências “tímidas” fazem parte da estratégia. Se Rio não refere o mesmo objetivo, é porque “este parece altamente improvável”; num cenário inverso, em que o PSD pudesse ambicionar uma maioria absoluta, André Azevedo Alves acredita que Rio “não teria problema” em dizê-lo abertamente – até porque poderia capitalizar o legado de Cavaco.

Da pandemia às contas

E depois há as circunstâncias, ou melhor, em 2022, só existe uma: a pandemia. Vieira da Silva não antevê facilidades para António Costa na ida às urnas. “Não é verdade que os incumbentes ganhem com pandemias, lembremo-nos do que aconteceu na Alemanha”: apesar do legado de Merkel, do partido União Democrata-Cristã, que esteve no leme do país durante 16 anos, foi Olaf Scholz, candidato do Partido Social-Democrata, o eleito para novo chanceler.

O historiador António Araújo levanta a mesma dúvida. “A pandemia pode ter dois efeitos: tirar a maioria absoluta, mas dar a vitória.” Se a pandemia “mobilizar muito a abstenção”, afastará o eleitorado de centro das urnas. “Caso este não vá votar, isso penaliza muito Costa. Mas por outro lado, a pandemia, não havendo muitas mortes, o voto tenderá a ser mais conservador, no PS. Se tivesse havido mortos, como o caos em 2020, poderia haver um voto de protesto e raiva no PSD.”

Dito isto, as eleições marcadas para dia 30 de janeiro “não têm uma agenda mobilizadora. Como está tudo ainda no trauma da dissolução da Assembleia, só se discute a questão da governabilidade”, aponta.

De acordo com o projeto “Sondagem das Sondagens”, da Renascença, à data de 10 de janeiro, o PS reunia 37.76% das intenções de voto, enquanto o PSD ficava-se pelos 30.05%; nenhum dos partidos aparenta estar próximo da maioria absoluta, muito menos conhece a percentagem que deve ambicionar para tal.

Em declarações à Renascença, o politólogo Pedro Magalhães lembra que todas as sondagens dão uma indicação das intenções de voto ao nível nacional. E explica: “A percentagem de votos que assegura uma maioria absoluta não é sempre a mesma. Porquê? Uma coisa é a votação a nível nacional, mas os deputados são distribuídos círculo a círculo. E nós não sabemos, podemos inferir, aplicando o método de Hondt, como é que uma mudança a nível nacional se repercute a cada círculo”: calcular o swing proporcional e uniforme.

Segundo o especialista em sondagens, o sistema eleitoral português “penaliza os partidos menos votados e dá um bónus aos partidos mais votados em termos da conversão em mandatos”. No caso de dois partidos que “concentrem muitos votos”, como é o caso do PS e PSD, “esses dois partidos estão ambos a receber o bónus”.

Isto faz com que um partido, com uma percentagem de 40% dos votos, suponhamos, tenha mais facilidade “em ter uma maioria absoluta se os restantes votos estiverem mais dispersos”, do que um que tenha os mesmos 40%, mas cujo principal adversário fique nos 38 ou 37%.

Dez anos de cavaquismo

Quem se recorda do Partido Renovador Democrático (PRD)? A resposta a esta pergunta tem rasteira. Na ida às urnas de 1985, o PRD, partido recém-fundado sob o patrocínio tácito do General Ramalho Eanes, então presidente da República, foi a grande surpresa: absorveu muitos dos descontentes com o fim do Bloco Central, conseguiu 18% dos votos e elegeu 45 deputados. Juntamente com o CDS, integrou o primeiro Governo de Cavaco Silva.

Em 1987, porém, o PRD tirou o tapete ao PSD: apresentou uma moção de censura, aprovada no Parlamento com os votos do PS e PCP. E o Presidente da República Mário Soares rejeitou dar posse a um governo PS-PCP-PRD, convocando eleições. Na época, ninguém antecipava uma maioria absoluta para Cavaco Silva, economista tornado político; nas eleições anteriores, apenas conseguira 29.87%. Mas a conjuntura tornou isso possível.

A larga maioria do eleitorado do PRD, descontente com a rasteira ao PSD, fez a cruzinha no quadrado do partido social-democrata; o país estava saturado de instabilidade política, após 16 executivos em 13 anos. O PS, encabeçado por Vítor Constâncio, não conseguiu fazer frente à onda laranja. O PSD elegeu 148 deputados, o número mais elevado de sempre até hoje, com 50,2% dos votos, enquanto o PRD se esfumou: apenas elegeu 7 deputados, 4% dos votos.

De acordo com o historiador António Araújo, os portugueses, em 1987, estavam “cansados das confusões parlamentares” e tinham ainda na memória a experiência dos resgates financeiros do FMI a pedido de Mário Soares; somado a isto, “as pessoas faziam uma avaliação muito boa do primeiro Governo minoritário. Que aliás, ainda há quem hoje diga que foi o melhor Governo dele”.

O primeiro executivo que Cavaco liderou “não tinha os vícios da maioria absoluta”. “Sobretudo na segunda, havia já um certo cansaço, com o [jornal] Independente a castigar [o Governo] com denúncias de escândalos”, recorda. Mira Amaral também recorda o período 85-87 como essencial para as maiorias absolutas. "Acho que nesses dois anos, nós demos uma imagem de competência. De capacidade e projeto de desenvolvimento do país. Com essa imagem, conseguimos alcançar a maioria absoluta", diz.

Quatro anos mais tarde, em 1991, Cavaco Silva reeditou a conquista – o que não é feito de somenos, diz António Araújo. “Muito mais difícil do que conseguir uma maioria absoluta é depois mantê-la.” Mesmo com um Jorge Sampaio à frente do PS, o PSD voltou a ser demolidor nas urnas, elegendo 135 deputados, com 50,6% dos votos. E o PRD? Liderado por Pedro Canavarro, conseguiu 0.61% dos votos, não elegendo nenhum deputado.

“Os Governos de Cavaco Silva, começando em minoria e depois continuando em maioria, foram executivos ligados a uma época de crescimento e desenvolvimento muito grande do país, em que soubemos aproveitar bem os fundos comunitários. E ter uma grande convergência com a Europa. Quando saímos em 95, deixamos o país praticamente equilibrado”, recorda Miral Amaral.

Sócrates e Santana

Em 2005, foi José Sócrates que ganhou ou foi Santana Lopes que perdeu? Com a saída repentina e inesperada de Durão Barroso para a Comissão Europeia e a sua substituição por Santana Lopes, à época Presidente da Câmara de Lisboa, parte significativa do eleitorado do centro ficou descontente. E quando Sampaio “se fartou” de Santana e utilizou a “bomba atómica”, o regresso do PS ao poder já se avizinhava.

A maioria absoluta era espectável. “Foi muito evidente a necessidade de rejeição de Santana Lopes”, lembra António Araújo. Em 18 sondagens, realizadas entre 15 de janeiro e 18 de fevereiro de 2005, apenas numa o PS não conseguia mais de 40% dos votos. Dois dias depois, Sócrates amealhou 45.03% dos votos, elegeu 121 deputados.

O historiador António Araújo lembra que Sócrates entrou na campanha com “muito gás”. E com um legado governamental favorável. “Sócrates foi um excelente ministro do Ambiente, é preciso não esquecer. Nós hoje estamos bem em termos de energias renováveis, sobretudo eólicas, isso deve-se ao Sócrates. Fechou uma série de lixeiras a céu aberto. Era um indivíduo muito dinâmico, com um grande garra e força. E as pessoas gostam disso”, recorda. O “animal político”, conforme ficou conhecido José Sócrates, era “dinâmico” e conseguia entusiasmar o eleitorado: imagem pública, claro, pré-Operação Marquês.

Se António Costa preserva ainda o sonho de conseguir uma maioria absoluta, tem menos de um mês para se metamorfosear. Já a Rui Rio, que continua a crescer nas sondagens, resta-lhe esperar pela onda laranja. O debate entre os dois candidatos na quinta-feira deverá dar sinais para onde tende a maré.

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  • José J C Cruz Pinto
    11 jan, 2022 ÍLHAVO 13:24
    Há pessoas em que não há fotografia em que apareçam a olhar para alguém (que não ele/a) a que não falte a legenda: "Mas quem é este/a "g***o/a?" [O/a outro/a, claro!]

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