Reportagem

Heróis Sem Capa levam livros para dentro das escolas no pós-pandemia

26 dez, 2022 - 07:00 • João Carlos Malta

Mafalda é escritora e ilustradora. Criou uma coleção que transforma hérois da vida real em protagonistas de livros. Os seus "Heróis sem capa" estão a percorrer as escolas espalhadas pelo país. Para muitos dos meninos que viveram os primeiros anos escolares em casa é a primeira oportunidade para contatar com um autor de carne e osso. No Colégio do Oriente, em Lisboa, houve espaço para a magia se soltar, mas também para falar de paralisia cerebral e ouvir tiradas quase filosóficas.

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Foram quase dois anos intermitentes e com muitos meses passados em casa, em que os contactos e as atividades nas escolas estiveram bastante condicionados. Por isso, a chegada da autora e ilustradora Mafalda Mota era aguardada com ainda mais ansiedade por cerca de 40 alunos no Colégio do Oriente, em Lisboa. Para muitos era a primeira vez que podiam ouvir e falar com uma escritora.

No ar, a expectativa é quase palpável. Os meninos do 3.º ano ajeitam-se nos lugares, ainda se ouve o burburinho, até que Mafalda lança um sonoro e forte “Bom dia”. A resposta é prolongada: “Booooom diaaaaaaaaaaa.”

“Estão um bocadinho às escuras, não fazem a mínima ideia do que vieram fazer aqui, pois não?”, pergunta a escritora. “Não”, ouve em uníssono. “Ainda bem”, retorque Mafalda.

Mais à frente, os meninos com idades a rondar os oito e os nove anos vão descobrir que terão à sua frente Maxy, a heroína de “A Magia em Mim”, o último livro da coleção “Heróis sem Capa” -- projeto da jovem escritora de 26 anos, que tem os seus alicerces em histórias sobre heróis de carne e osso que fizeram coisas extraordinárias.

Como Mafalda gosta de dizer, pessoas que não precisam de capa para serem verdadeiros heróis. A criatividade e os desenhos da artista fazem o resto.

Inicia-se a leitura do livro, e a escritora transporta a plateia para o universo de Maxy, uma menina que adora pintar. Por isso, o pai deu-lhe um pincel que lhe permitia fazê-lo não apenas em papel, ou em telas, ou em paredes. Podia pintar o que quisesse, como quisesse, quando quisesse.

Um superpoder, portanto. Mas a pequena Maxy, ao contrário de todos os outros, não via beleza no que fazia. Estavam, assim, lançados os dados para a imaginação dos meninos entrar em ação.

Esta não é uma sessão de leitura em que só há uma história a acontecer. Mafalda lança desafios a quem a escuta. Será que os heróis sem capa, pessoas comuns, podem salvar cidades?

Na sala ouve-se um sim primeiro, outro sim de seguida. Mas alguém, mais cético, acrescenta: “Salvar as pessoas sim, as cidades não.”

Mafalda contrapõe: “Mas e se eu for uma cientista da NASA e vir que vem aí um meteorito e que vai destruir a cidade de Nova Iorque, eu posso ou não salvar a cidade?”

Há quem não fique convencido, porque um “meteorito é muito grande”. Mas logo surge quem na sala pense numa solução:

“Há muitas formas de destruir um meteorito. Fazes um robot que tenha jatos para voar, e que tenha mãos, um robot gigante. Ele agarra-o com as mãos e, se o meteorito começa a ficar mais forte, lança os jatos”.

E pronto, está o problema resolvido. A conversa segue animada e polvilhada de magia mas, ao contrário de um mágico que nunca revela os seus truques, a escritora decide partilhar como criou a Maxy.

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"Surprendeu-me ter conversas com miúdos do terceiro ano que podia ter com pessoas da minha idade que tenho 26 anos. Estar a falar sobre emoções e a importância de dar carinho ao que fazemos e a nós mesmos", Mafalda Mota, criadora da coleção "Hérois sem Capa".

“Eu sei que não disse, mas se folhearem o livro vão ver que sempre que a Maxy está de pé, tem uma bengala na mão.”

“Porquê?”, pergunta alguém. “É coxa”, ouve-se em resposta. Podia ser, mas não é. Maxy é inspirada em Maysoon Zayid, que nasceu com paralisia cerebral.

“Paralisia cerebral? O que é isso”, pergunta um dos alunos. Mafalda não hesita: “É uma doença que, no caso de Zayid, faz com que trema muito a toda a hora. E para ela se segurar e se manter em pé precisa de uma bengala.”

Logo de seguida, desvenda-se também o porquê de esta humorista, com raízes na Palestina e que vive em Nova Iorque, ser uma heroína.

“Apesar deste diagnóstico complicado e de ter ultrapassado todas as dificuldades na vida, ela escolhe passar três meses por ano em campos de refugiados, onde as pessoas estão mais tristes e longe de suas casas, e ensina-as a pintar, a dançar e a fazer yoga e teatro. Para que assim, através da arte, consigam curar um pouco a dor que sentem”, resume Mafalda Mota.

Termina a leitura da história, mas como Mafalda junta à escrita a paixão pelo desenho e a ilustração, os meninos são convidados a pintar um boneco.

Mal acaba a tarefa, Theo revela que a mensagem principal do livro foi completamente compreendida. “Ela [Maxy] via que, mesmo não sendo perfeito, podia ser bom. Só”.

Antes já havia dito que tinha gostado muito do livro, porque foi “baseado numa pessoa real, que precisava de uma bengala e que ajudava os outros. Ela deu-nos uma lição”.

Mafalda Mota não esconde que ficou surpreendida com o facto de mais de uma criança ter “percebido tudo à primeira”.

“Isso às vezes não acontece. Depende da idade, do sítio, dos professores, dos pais. Depende se a criança é recetiva, se vê muito televisão ou não, se lê ou não lê. As variáveis são infinitas.”

Mesmo assim, revela, não esperava ter diálogos tão profundos com meninos do 3.º ano. “Surpreendeu-me estar a ter conversas que podia ter com pessoas da minha idade. De estar a falar sobre questões importantes como as emoções, de dar carinho a nós mesmos, que não sei se teria com todas as pessoas da minha idade.”

Raquel Geraldes, professora de uma das turmas do 3.º ano do Colégio do Oriente, não fica surpreendida com muitas das respostas quase filosóficas que se ouviram, e diz que resultam do estímulo que é dado aos alunos “tanto na expressão oral como na expressão escrita”.

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"São alunos de terceiro ano e passaram os últimos dois anos quase sempre em pandemia. Tentámos promover alguns encontros por via digital, mas não é a mesma coisa", Raquel Geraldes, professora.

“A expressão oral é através de apresentação de trabalhos para que ganhem à-vontade e léxico. E nestas situações demonstram que sabem e que gostam de saber”, acrescenta.

A docente fala ainda da importância de uma sessão de leitura na sala de aulas, ainda para mais com o contexto destes alunos que passaram a maior parte dos dois anos anteriores entre casa e as salas de aula, mas com contactos muito restringidos.

Depois da pandemia de Covid-19, há agora uma nova vida a despontar nas escolas.

“Tentámos promover alguns encontros digitais, mas não é a mesma coisa. Aqui no colégio temos a filosofia de trazer alguns escritores, de incutir o gosto pela leitura, e por isso temos até umas jornadas culturais. Para nós é importante que tenham este contacto, sempre”, afirma Raquel Geraldes.

A isto soma-se a necessidade de poder promover um contacto próximo com os escritores, para que os alunos percebam que “não são figuras mitológicas” e possam “criar dúvidas e perguntar como é que eles conseguiram chegar à história”.

Mafalda verifica também que a pandemia trouxe muitas alterações na forma como os meninos se relacionam uns com os outros.

“Com os primeiros anos noto mais. Estiveram com os pais dois anos fechados numa bolha. Vê-se uma grande diferença em relação aos miúdos que estão no 4.º ano e que já tinham experiência da escola. Para eles é, ainda assim, tudo familiar. Enquanto para os miúdos [até ao 3.º ano] que estão a tocar em tudo pela primeira vez, e em que é tudo muito reticente, há medo até de estarmos assim em grupo”, explica.

“Estes momentos em que nos aproximamos, falamos cara a cara, mostramos o livro e o damos para folhear, e dizemos passa ao próximo e não interessa. Isso é muito importante para que saiam da bolha.”

A própria Mafalda também foi afetada pela pandemia. Lançou o projeto no início da Covid-19, o que atrasou muito o arranque da “volta a Portugal” que queria fazer com a coleção “Heróis Sem Capa” -- que acabou por só arrancar a sério no final do ano passado.

Ainda assim, a experiência diversa que já recolheu permite-lhe perceber que nem todos os alunos são como os do Colégio do Oriente, em Lisboa. As desigualdades no território que se detetam em tantas e tantas áreas têm aqui mais uma manifestação. Mas em que é que isso se traduz?

“Muito abertamente em dinheiro", responde a escritora. "Uma escola privada tem mais dinheiro do que uma escola pública, e uma escola pública na periferia de uma cidade não tem dinheiro absolutamente nenhum. Vou a colégios privados, mas também a escolas públicas quando me convidam, e em que em alguns casos as vidas não são afortunadas, nem pouco mais ou menos”, identifica a autora, que diz que vai a qualquer sítio que a convide, sem diferenciar.

Independentemente da condição socioeconómica e independentemente do grau de ensino, todos os meninos se deparam com a necessidade de lidar com a frustração, tal como Maxy na história.

Renata Coelho, psicóloga do Colégio Oriente, consideraque estes livros são importantes porque são quase “terapêuticos”. “Servem para trabalhar as emoções como a frustração e o sentimento de conseguir continuar perante o obstáculo”.

Algo com que Inês Lourenço se identificou, vendo em si própria algumas das características de Maxy. “Sou um pouco como ela. Quando não desenho bem dá-me muita raiva, e também quando a minha letra não fica bonita”. E como reage? “Dá-me vontade de partir o lápis”, mimetizando o que a personagem principal de “A Magia em Mim” faz num momento de grande frustração.

Inês que, muitas vezes, chora quando não atinge o que idealiza como perfeição, mas que depois se acalma e faz “a letra melhor”.

A professora Raquel Gomes afirma que livros “tão ricos” como o de Mafalda Mota permitem que, depois da sessão, se consiga transportar os alunos para “diversas áreas como a ilustração ou até a escrita e a gramática”.

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"São livros quase terapeuticos. Servem para trabalhar as emoções com a frustração e o sentimento de conseguir continuar perante o obstáculo", Renata Coelho, psicóloga.

Há também muitos desafios para quem faz dos livros vida, e quer que os outros os tenham nas mãos de forma a poderem viajar através da imaginação. Num mundo tão digital conseguir captar o interesse dos mais novos nem sempre é uma tarefa fácil. Mafalda que o diga. Por isso, tem já algumas estratégias.

“Sei que estamos cada vez mais virados para a tecnologia e para os ecrãs, nada contra. Mas também sinto que há uma oportunidade muito grande de os ter com os pés na terra. Muitas vezes, até rejeito a ideia de termos um projetor para ter a certeza de que estão a olhar para mim e a ver o livro. E que depois da atividade queiram mexer e folhear”, descreve.

“É uma forma de os retirar do mundo tecnológico e tê-los presentes no momento, de uma forma mais crua”, sublinha.

Esta não é a única dificuldade para uma jovem autora. Em 2020, 61% dos portugueses não leu qualquer livro. É um dos dados que salta à vista no Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses 2020 realizado pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian.

“Temos muitos livros, mas lemos muito pouco. É uma coisa que me assusta bastante”, Mafalda Mota, escritora.

Apesar de o cenário não ser o mais auspicioso, e a leitura parecer estar a perder adeptos, continua a transportar meninos e meninas para universos fantásticos. É o caso de Benedita Lourenço.

“Achei a história muito bonita, os heróis sem capa também podem ser heróis, e se quisermos ser heróis podemos ser.” E remata com uma declaração de amor incondicional: “Eu acho que os meus heróis são os meus pais.”

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