Cuidadores informais

​Fardo ou missão? Cuidar nunca é um trabalho leve

07 nov, 2022 - 19:00 • Ana Carrilho

Diana sabia o que a esperava quando aceitou casar com Nuno. Mariana viveu oito anos terríveis como cuidadora do marido, diagnosticado com Doença de Alzheimer aos 58 anos. São cuidadoras informais e o cuidar tem-lhes roubado muito da sua própria vida. Ainda assim, assumiram a tarefa: o amor falou mais alto e têm uma rede de apoio com família e amigos. Mas para a maioria dos cuidadores, essa não é a realidade. E há quem entre em burnout, alerta Renata Benavente, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses.

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"Amo muito o meu marido, faria tudo por ele". A afirmação é de Diana Meireles que, aos 43 anos, cuidado do marido. Nuno tem 45 anos e vive com paralisia cerebral desde que nasceu.

À Renascença, Diana diz ser "cuidadora informal por opção”.

“Conheci o Nuno em 2011 e já sabia o que me esperava. Foi ele quem me preparou, quem me ensinou o que era a paralisia cerebral, os cuidados que tinha de ter com ele todos os dias. E eu fui em frente porque o amo muito, faria tudo por ele”, diz.

Para cuidar de Nuno, Diana abdicou da vida profissional. “Fui livreira num grande grupo durante dezoito anos, mas, sem possibilidade de ter horários flexíveis, tive que me vir embora”.

Diana está desempregada e, neste momento, Nuno também. Até há pouco tempo trabalhou no Departamento de Comunicação e Marketing da CERCIMarante, em Amarante.

“A situação económica agravou-se. Dependemos dos subsídios que ele recebe: a PSI (Pensão Social para a Inclusão) e o Subsídio de Desemprego. Somos duplamente dependentes: ele, de mim e dos subsídios; e eu dele, porque não tenho um emprego”, reconhece, com tristeza.

Apesar de admitir que não estão tão mal como outras famílias, Diana Meireles admite que gostaria muito de ver o seu trabalho como cuidadora informal valorizado e reconhecido. Ou ter acesso a um emprego, ainda que a tempo parcial, já que, apesar da dependência de Nuno, não precisa de estar permanentemente com ele.

“Estou inscrita no Centro de Emprego, mas o trabalho que arranjar tem de ser compatível com as necessidades do Nuno, com alguma flexibilidade. E isso é mais complicado”, conta.

Pediu o reconhecimento como cuidadora informal e conseguiu-o, mas, logo de seguida, perdeu-o, quando o marido deixou de ter direito ao Complemento de Dependência.

Vale o apoio dos pais

Diana e Nuno vivem em casa dos pais dele, com os dois filhos de 7 e 14 anos.

Com menos dinheiro na carteira, “acaba por ser um stress diário porque temos obrigações a cumprir. Ainda assim, conseguimos continuar a levar a nossa vida porque temos o apoio dos pais, os únicos que trabalham atualmente”.

A boa retaguarda familiar também tem contribuído para que Diana nunca precisasse de pedir apoio psicológico, face ao desgaste que o trabalho de cuidar provoca na generalidade dos cuidadores informais. “O meu marido também me ajuda muito”.

No entanto, afirma que conhece várias cuidadoras informais com graves problemas, sem tempo para cuidar de si próprias e a precisar de ajuda ao nível da saúde mental.

“Tenho tempo para mim, vou ao cabeleireiro, vou arranjar-me e saímos. Como cuidadora informal admito que estou numa situação tranquila de não ter de cuidar do meu marido 24 sobre 24 horas”.

No entanto, a situação económica obrigou o casal a abdicar de alguns mimos que se concedia de vez em quando. “Por exemplo, as escapadinhas. Pedíamos aos meus sogros para ficar com os meus filhos e íamos passear, namorar um bocadinho. Agora já não podemos fazer isso”.

Já em fim de conversa, Diana deixa a sua mensagem aos cuidadores, em geral: tentem procurar ajuda. Além da ANCI – Associação Nacional de Cuidadores Informais, refere o caso do seu município, Amarante.

“Temos uma rede social que trabalha muito bem com os cuidadores informais. Temos o Programa Cuidar de Quem Cuida, com diversas valências, desde o apoio psicológico, ioga e outras atividades, ajuda com documentação para o Estatuto do Cuidador Informal e outros apoios a que é possível aceder. Procurem ajuda”, apela.

Alzheimer, essa malvada doença

“Um dia chegou a casa já tarde, a dizer que não sabia que horas eram. Respondi-lhe que tinha ali um relógio na cozinha. Assustei-me muito quando o João me disse que não sabia ver as horas”, conta à Renascença Mariana Manuela Pires sobre o momento em que percebeu que algo se passava com o marido. Aconteceu há 10 anos. João tinha 58 anos.

Mariana trabalhava como auxiliar no Hospital de São José, em Lisboa, conhecia muitos médicos e enfermeiras e deu-lhes conta da situação. João foi avaliado num primeiro momento e menos de três meses depois, confirmando o que Mariana já receava: o marido sofria da Doença de Alzheimer.

“Todos os dias havia uma coisa nova. Ele tinha uma oficina de automóveis aqui na Penha de França, sempre aqui trabalhou e conhecia imensa gente, mas encontrava as pessoas e não sabia dizer o nome delas. Quando a neuropsicóloga lhe fez a segunda avaliação, pediu ao João para desenhar um relógio e ele não conseguiu. Soube dizer o nome, mas questionado sobre a idade, respondeu que tinha cinco anos.

A vida da família mudou completamente. Mariana continuou a trabalhar, mas estava sempre em sobressalto. A oficina fechou e foi preciso tirar as chaves do carro ao marido porque ele queria conduzir. Foram vários os bens que desapareceram e para fazer face a dívidas contraídas, às despesas e ao curso de enfermagem da filha, Mariana viu-se obrigada a vender uma casa que tinha no Alentejo.

Por outro lado, como o marido não podia estar sozinho, teve de o pôr num Centro de Dia. Tinha a ajuda de uma vizinha para lhe fazer a higiene, vestir, dar o pequeno-almoço e travessar para o Centro, mesmo em frente de casa. “De vez em quando fugia, fazia quilómetros a pé, chegou a ser apanhado pela PSP na A5. Moro num sétimo andar e tive de substituir as janelas todas e pôr-lhes fechos porque ele queria atirar-se”.

Mariana ainda está a aprender a viver sozinha

“Foi tanta, tanta coisa durante oito anos que já nem sei dizer. Há dois anos, tive mesmo de o pôr num lar porque já não conseguia tomar conta dele”, lembra Mariana Manuela.

Uma decisão que também foi acelerada pela partida da filha para Angola, onde o genro já estava a trabalhar. Primeiro esteve num lar na Malveira e depois conseguiu uma vaga perto de casa, no Centro Paroquial da Penha de França.

“Eu fiquei sozinha, foi muito difícil para mim e ainda hoje estou a aprender a viver sozinha”. No entanto, Mariana Manuela confessa ter uma coisa muito boa: “tenho muitos amigos e sou muito dada. Além disso, apesar da dificuldade em viver sozinha, não me fecho em casa e sei lidar com a situação”.

Ainda assim, confessa à Renascença que na altura de maior crise, o médico chegou a dar-lhe “um comprimidinho”. E não esquece a ajuda que teve com um especialista em medicinas tradicionais.

“Chorava muito, dia e noite, ao princípio não conseguia lidar com esta situação. A minha filha, mesmo à distância, apoiava-me como podia, ligava-me a toda a hora”.

João faleceu há pouco mais de um mês. Mariana diz viver com dois sentimentos: por um lado, alívio, porque o marido estava a sofrer muito; por outro, muita dor. “A dor fica sempre, não tem fim, quando são duas pessoas que se gostam muito, como nós. Estivemos casados 48 anos e somos uma família muito feliz. O meu marido era uma pessoa que vivia para a família, para a mulher e para a filha”.

Fardo ou missão? Depende do significado que o cuidador lhe dá

Cuidar de uma ou mais pessoas dependentes é sempre uma tarefa desgastante, física e psicologicamente. Para alguns cuidadores informais, mais do que para outros. Renata Benavente, psicóloga e vice-presidente da Ordem dos Psicólogos explica que o ajustamento que as pessoas fazem nestas circunstâncias depende de muitas variáveis.

Por exemplo, como encaram esta necessidade de se tornarem cuidadores? Como uma missão, a que dão significado no sentido de também se valorizarem a si próprios; ou um fardo, porque não têm os apoios certos e acontece sem esperarem e sem preparação?

“Se pensarmos numa pessoa que tem uma vida profissional que lhe dá satisfação e que, de repente, se vê forçado a abdicar desse projeto para cuidar de alguém que fica numa situação de dependência, pode ser difícil ajustar-se a essa nova realidade, a esse novo papel que não estava nos seus planos”.

Por isso Renata Benavente considera que é importante que estas pessoas, sujeitas a maior carga emocional e sobretudo as que prestam cuidados de forma permanente e intensiva, tenham momentos de algum alívio.

Para cuidar bem, o cuidador tem de ter tempo para si próprio

Tempo para si próprio, para tratar da sua vida pessoal, ir às compras, ter momentos de lazer, descansar: são necessidades reconhecidas dos cuidadores que já foram transpostas para o Estatuto do Cuidador Informal.

A lei prevê o acesso ao Descanso do Cuidador e, de acordo com secretária de Estado da Inclusão - no 4º Encontro Nacional de Cuidadores Informais, que decorreu no sábado em Leiria -, até 2026, o Governo vai criar 10.300 lugares em lares residenciais e Estruturas Residenciais para Idosos (ERPI) para permitir o Descanso do Cuidador. É uma das medidas mais importantes do Estatuto, que tarda a chegar e quando tal acontecer, vai abranger apenas uma pequena parte do universo de cuidadores informais em Portugal.

Mesmo assim, diz Renata Benavente, há muitos cuidadores que têm dificuldade em “desligar” da sua tarefa; sentem uma necessidade de estar em permanência nesse papel. Daí a necessidade de equacionar alternativas, mobilizando a rede de apoio informal, com vizinhos ou outros familiares.

“Acima de tudo, é importante a pessoa perceber que precisa de momentos para si e que só estando bem do ponto de vista emocional é que poderá estar bem para cuidar de uma pessoa dependente”.

Em plena pandemia da Covid-19, numa altura em que o número de cuidadores informais aumentou significativamente porque os centros de dia fecharam, a OPP – Ordem dos Psicólogos Portugueses criou uma “check-list”. Renata Benavente frisa que no pós-pandemia, está perfeitamente atual. As questões que se colocam são as mesmas e depois de responder ao questionário, cada um é orientado para uma solução, que no limite passa por uma chamada para o SNS 24, para pedir apoio psicológico.

Poucos cuidadores informais chegam aos psicólogos do SNS

Em geral, a referenciação para a consulta de Psicologia nos centros de saúde é feita pelos médicos de família. No entanto, como o número de psicólogos no Serviço Nacional de Saúde é muito baixo face às necessidades, os médicos acabam por enviar apenas os casos que consideram que são mais urgentes e que terão maior potencial de melhoria. “Essa triagem acaba por condicionar o acesso destas pessoas – cuidadores informais – à consulta de Psicologia. Chegam muito poucas”, constata Renata Benavente.

A psicóloga, que exerce a sua atividade precisamente num Centro de Saúde da Área Metropolitana de Lisboa, diz que, em muitos casos, estas pessoas ficam cada vez mais isoladas, nomeadamente, se a pessoa cuidada tem uma grande dependência. “Ficam em grande risco, podem desenvolver problemas psicológicos, quadros de burnout associados ao cuidar”.

Renata Benavente diz ainda que, em muitos casos, o especialista faz consultas com outros elementos da família para melhorar a comunicação, nalguns casos, para que também tenham a noção da sobrecarga a que o cuidador principal está sujeito e se encontrem alternativas.

“O objetivo é sempre conseguir os melhores cuidados e não agravar a carga do cuidador. Porque se a pessoa não está em condições de cuidar de si própria, também não consegue cuidar de outros. E há grandes sobrecargas, nomeadamente com doentes de Alzheimer, que exigem atenção 24h/dia. Por vezes, a institucionalização é a melhor solução para todos. Mas, na verdade, essa também é uma decisão muito difícil de tomar”.

A vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses chama a atenção para a necessidade de apoiar os cuidadores informais.

Estas pessoas também acabam por sobrecarregar o próprio sistema de Segurança Social porque são obrigadas a meter baixas para prestar assistência ou porque elas próprias ficam numa situação de saúde complicada. Nomeadamente a nível psicológico: não são capazes de trabalhar, de se concentrar, de descansar convenientemente, começam a consumir psicofármacos.

Há uma série de custos que decorrem de não se ter investido de uma forma mais preventiva no apoio”.

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