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Guerra na Ucrânia

A sombra do KGB em Portugal. Quatro diplomatas vão jantar, três são espiões

06 abr, 2022 - 06:36 • Fábio Monteiro

Dezenas de diplomatas russos foram expulsos nas últimas semanas de vários países europeus, acusados de espionagem. Há décadas que a Rússia “mexe cordelinhos” nas sombras, incluindo em Portugal. No pós-25 de Abril, vários agentes de Moscovo operaram em Lisboa. Na Guerra Fria, ser diplomata era ser “uma espécie de produto engravatado da era James Bond”, diz Seixas da Costa. Ainda em 2016, o ex-espião Carvalhão Gil foi apanhado a vender segredos da NATO a um agente russo.

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Oslo, 1980. Um russo, um norte-americano e um francês vão jantar a casa de um português. No papel, todos são diplomatas a residir na Noruega. Os tempos, porém, estão repletos de falsas aparências e dissimulações. As disputas de poder na sombra relatadas no romance “O espião que saiu do frio”, por John le Carré, publicado em 1963, são ainda um retrato fiável de parte da realidade política. Falta mais de uma década para a dissolução da União Soviética; contactos com representantes dos países bloco de Leste são tidos, por isso, “com a maior das cautelas”. Um a um, os convidados, acompanhados pelas respetivas esposas, tocam à porta.

O russo é o primeiro a chegar. É um homem pouco subtil. Quando entra na sala de jantar, pede aos anfitriões que fechem a cortina da janela que tem vista para a rua. “Queria dar o ar que o encontro era às escondidas.” Semanas antes, quando levara o diplomata português a almoçar num restaurante chinês “algo escondido”, perguntara-lhe de forma desajeitada: o que acharia o embaixador de Portugal em Oslo se te encontrasse aqui? “Não acharia nada, porque acabei de lhe dizer que vinha almoçar consigo”, respondeu o diplomata português. “Ele [o russo] estava convencido que mantinha um certo secretismo por vir almoçar com um soviético.”

O português é um diplomata ainda em início de carreira, mas é perspicaz; tem sentido de humor e está em Oslo há cerca de dois anos. Possui “alguma curiosidade” pelas dinâmicas que se passam nas sombras – apesar de não se imiscuir nesse espaço - e conseguiu ler, desde o primeiro instante, as segundas intenções do diplomata russo. “A sensação que tenho em relação aos diplomatas do Leste é que, na época, aqueles que se aproximavam, tinham sempre objetivos em termos de intelligence [recolha de informações].” Serem agentes do KGB – os serviços secretos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) – ou funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MID) não fazia diferença. “Andavam todos a fazer um bocadinho de espiões.”

Por ser um “brincalhão”, o português decidiu organizar o jantar com o russo e alguns outros ilustres. Todavia, não partilhou a lista de convidados de antemão. O russo não sabia, então, que o francês e o norte-americano iam estar presentes, e vice-versa. Gera-se, pois, uma onda de espanto quando os restantes convidados chegam e trocam olhares. Oficialmente, não se conhecem. Oficiosamente, todos sabem que são espiões dos respetivos países, salvo o português – que depreendeu o estatuto dos companheiros por via de conversas e informações que recolheu.

A “cara deles quando entraram” denunciou-os. O jantar “foi até um bocadinho… não correu assim com uma grande fluidez”. “Foi uma brincadeira quase excessiva. Achei graça fazê-lo, porque nenhum deles assumia perante mim que era dos serviços de informação. Tê-los colocados juntos à mesa, com as respetivas mulheres, tornava a situação evidente. No fundo, acabei por denunciar que sabia o que eles eram, sem mo terem dito.”

No dia seguinte, o francês mandou um cartão de agradecimento. O norte-americano, com quem o diplomata português - Francisco Seixas da Costa, futuro embaixador de Portugal nas Nações Unidas - tinha mais confiança, telefonou. “Que ótima festa! E que grupo de convidados”, disse, entre risos. Já o russo nunca disse mais nada: voltou a desaparecer no frio.

O caos no pós-25 de Abril

Entre o final da Segunda Guerra Mundial e 26 de dezembro de 1991, URSS e KGB foram sinónimos de ameaça comunista e espionagem, respetivamente. Portugal, que viveu uma revolução a 25 de Abril 1974, no qual o Partido Comunista Português (PCP) desempenhou um papel central, não escapou a este ambiente.

No pós-revolução, foram muitos os jogos de espiões (americanos, russos, franceses) em solo nacional. As tentativas de influência da URSS, através dos serviços secretos, porém, não cessaram com o fim do Estado Novo. Ainda em 2016, Carvalhão Gil, ex-espião do SIS, foi apanhado a vender segredos da NATO a um agente russo, a troco de dinheiro. Mas vamos por fases.

O período entre o 11 de março e o 25 de novembro de 1975 foi “crítico”, diz Fernando Cavaleiro Ângelo, especialista em informações militares e autor do livro "Dinfo - A Queda do Último Serviço Secreto Militar". Com Portugal em convulsão e o mundo em plena Guerra Fria, “os russos viram as lutas pelo poder [político] como uma oportunidade”. “Era uma altura de ouro para que esses serviços pudessem ter acesso a documentos sensíveis. Quer nacionais como da NATO, que noutras capitais eram muito mais difícil ter acesso”, conta.

Existiam muitos militares acabados de chegar da Guerra Colonial que, com a queda do Estado Novo e o término do conflito, tinham ficado em posições fragilizadas. As circunstâncias tornavam, então, estes portugueses potenciais alvos de recrutamento pelos serviços de informação estrangeiros.

A Dinfo – que existiu entre 1974 e 1997 – foi constituída neste contexto; começou como um órgão de contraespionagem, mas, mais tarde, com o surgimento das FP-25, passou também atuar no campo do terrorismo.

“Houve muitas suspeitas identificadas por comportamentos anómalos de militares. Em alguns casos, foram usadas escutas telefónicas. Foi apanhado um militar que estava a ser formado pelo KGB, que devia procurar documentos na NATO relacionados com o nuclear”, diz Fernando Cavaleiro Ângelo. Nesse caso em concreto, em vez de prendê-lo, a Dinfo decidiu torná-lo agende duplo, perceber como o “inimigo” funcionava. Nem todos os recrutas, contudo, lidavam bem com a pressão de ter duas faces: “alguns desistiram, um até morreu num acidente”.

No livro “Dinfo- A Queda do Último Serviço Secreto Militar”, o autor relata três operações de contraespionagem – Albatroz, Búfalo e Tentilhão - e um plano de atentado à bomba contra Ramalho Eanes, descoberto em 1978. As três operações estão relacionadas com a atuação de agentes do KGB em Portugal que procuravam aceder a documentos da NATO.

A dado momento, a Dinfo foi também responsável por vigiar russos no país, incluindo a embaixada em Lisboa – o edifício era conhecido por ter uma árvore que tapava a visão aos espiões portugueses. Como resolveram a situação? Colocando ácido todos os dias na raiz da árvore para a secar.

Diplomacia nas sombras e às claras

Dos escombros da URSS, nasceram 15 nações, entre as quais a Ucrânia – país invadido pela Rússia a 24 de fevereiro deste ano. Boris Iéltsin foi o primeiro presidente da nova nação de Tolstói e Dostoiévski, marcando um período de abertura ao Ocidente. Mas logo no arranque do novo milénio chegou ao poder Vladimir Putin. O ex-agente dos serviços secretos russos, saudosista do Império Russo, guinou o rumo definido pelo seu antecessor.

“O carácter competitivo com que a Rússia surge no panorama mundial nunca permitiu uma proximidade muito grande”, nota o embaixador Francisco Seixas da Costa, antigo representante de Portugal nas Nações Unidas. Não tardou a que a espionagem voltasse a entrar na narrativa russa corrente; que surgissem notícias de diplomatas-alegadamente-espiões-russos expulsos de vários países.

Devido à guerra na Ucrânia, só na semana passada, a Polónia expulsou 45 diplomatas russos por espionagem, a Holanda 17, a Bélgica 21 e a Eslováquia 35.

Na segunda-feira, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português anunciou a expulsão de dez funcionários da embaixada russa em Lisboa. Em comunicado, o gabinete de João Gomes Cravinho disse ter notificado o “Embaixador da Federação Russa da sua decisão de declarar persona non grata dez funcionários dessa missão diplomática, cujas atividades são contrárias à segurança nacional." (Há relatos de “agentes de influência russos infiltrados em Portugal " nas organizações que estão a dar apoio aos refugiados.)

Já esta terça-feira foram também expulsos mais 150 diplomatas de países europeus – Alemanha, França, Dinamarca, Suécia, Espanha e Itália -, como retaliação ao massacre em Bucha, localidade nos arredores de Kiev, onde foram encontrados cerca de 400 civis ucranianos assassinados.

Seixas da Costa é o homem que organizou o jantar em Oslo, há mais de quatro décadas. À Renascença, conta que no tempo da Guerra Fria os diplomatas eram “uma espécie de produto engravatado da era James Bond”, cujas funções não ficavam muito além das dos agentes dos serviços secretos: “recolha de informação”, “extração de notícias” e comunicação ao Governo.

Os diplomatas, porém, não se movem nas sombras. “Não eramos espiões, não fazíamos covert action. Fazíamos ações de forma completamente transparente. Caso contrário, incorríamos o risco de sermos expulsos.”

Segundo o antigo embaixador, é normal, mesmo hoje, que elementos dos serviços de informação vão para outros países com cobertura diplomática, “de forma a serem protegidos pela convenção de Viena”. Portugal é um dos países que o faz – às claras. “Nós temos pessoas do SIS que estão acreditadas como diplomatas, mas que o Governo local sabe serem membros dos serviços de informação.”

Estes agentes não estão fora do país para espiarem Governos estrangeiros, mas antes para participar em investigações sobre terrorismo ou tráfico de droga, por exemplo. Não podem “infringir” as regras do estatuto diplomático. Se ficam com uma visão “embaciada”, fazem leituras dos factos além do legítimo, acabam expulsos do país. “Que saiba, não temos experiência de algum português expulso”, nota.

O arquivo Mitrokhine

Em março de 1992, Vasili Mitrokhine, antigo arquivista do KGB em Moscovo durante décadas, escapou-se até Riga, na Letónia, e foi bater à porta da embaixada do Reino Unido. Na mala transportava dezenas folhas com transcrições e notas sobre várias ações de espionagem e contraespionagem da ex-União Soviética no exterior. Mas em casa, enterrados no solo da sua Dacha (casa de campo), tinha muitos mais milhares de papéis iguais àqueles. E alguns diziam respeito a Portugal.

Mitrokhine regressou à Rússia e em novembro de 1992, juntamente com a família e o resto das suas notas, foi extraído do país pelo Mi6 – os serviços secretos do Reino Unido. Já em 1999, juntamente com o escritor e académico Christopher Andrew, publicou o livro “O Arquivo Mitrokhine - O KGB na Europa e no Ocidente”.

O tomo com mais de mil páginas dedicava apenas três a Portugal, mas algumas das revelações fizeram mossa. A principal novidade era que Álvaro Cunhal, líder do PCP, havia reunido com o principal agente do KGB, Svyatoslav Fyodorovich Kuznetsov (nome de código LEONID), em Lisboa, meses depois da revolução. O encontro decorrera numa “casa segura” do PCP.

E a segunda mais importante era que o PCP havia ajudado o KGB a tirar do país milhares de documentos oriundos da sede da PIDE/DGS: mais precisamente, cerca de 500 quilos de papéis, com informação sensível relativamente a outros países da NATO. (Até hoje, o PCP nega que estas informações sejam verdadeiras.)

Na época, as revelações “foram assumidas com a leviandade do costume”, diz historiador e jornalista José Milhazes, que já se debruçou sobre o envio de arquivos portugueses para a Rússia no livro "Cunhal, Brejnev e o 25 de Abril". Oleg Kalugin, antigo diretor do KGB, chegou a afirmar publicamente que a extração dos arquivos da PIDE “foi uma das grandes operações dos serviços secretos soviéticos”, lembra.

“Os testemunhos que foram dados em vários órgãos de comunicação portugueses sobre a forma como esse arquivo foi levado para a Rússia seriam suficientes para isto ser um caso sério de investigação judicial. Porém, tudo se resumiu a um pedido do Ministério dos Negócios Estrangeiros de informação à Rússia, inquirindo se algum arquivo havia sido levado. E claro que os russos responderam que nada, que não fizeram nada, como era expectável”, diz ainda Milhazes.

Em 2016, o jornalista Paulo Anunciação, do “Expresso”, consultou o arquivo Mitrokhine e trouxe novos detalhes à superfície. Ficou-se a saber que em 1980, o KGB chegara a ter 14 agentes em Lisboa; alguns estavam no país como jornalistas, mas a maior parte, claro, eram diplomatas. O posto era chefiado J. K. Semenychev, então primeiro-secretário da embaixada da URSS em Portugal. Foi também notícia que Octávio Pato, deputado e candidato nas eleições presidenciais de 1976 do PCP, mantivera encontros mensais com o posto do KGB. E que o PCP recebera dinheiro da Rússia já depois da revolução.

O Governo português “nunca se dedicou a sério a tentar perceber como e porquê o PCP recebia tanto dinheiro do bloco comunista. Já há provas mais do que evidentes e documentos publicados, e alguém devia perguntar, à luz da lei do financiamento dos partidos, como é que o PCP conseguia receber aquele dinheiro”, diz Milhazes.

A investigação publicada no “Expresso” revelou ainda os nomes de alguns jornalistas portugueses e de uns quantos diplomatas nacionais, como possíveis colaboradores do KGB. (Todos rejeitam qualquer ligação aos serviços secretos russos).

Seixas da Costa não contesta a autenticidade dos dados compilados por Mitrokhine, mas admite ter ficado com dúvidas sobre alguns relatos. Os espiões “têm que vender” a informação que recolhem. “Podem ter alguma proatividade e alguma inventividade naquilo que foi a conversa tida”. Por outras palavras: será sempre difícil definir onde começa a verdade e onde termina a sombra.

O último caso

A história da espionagem da Rússia em Portugal não terminou no pós-revolução. Foi apenas há seis anos que Francisco Carvalhão Gil, antigo responsável pelo contraterrorismo do Serviço de Informações de Segurança (SIS), foi detido em Milão, Itália, - e posteriormente condenado a sete anos e quatro meses de prisão -, após ter sido apanhado em flagrante a vender segredos ao espião russo Sergey Pozdnyakov.

Casado com uma mulher da Geórgia – nação que integrou a URSS -, Carvalhão Gil fez carreira no submundo da noite de Lisboa e foi um dos primeiros agentes do SIS em Portugal. Alegadamente, fora recrutado pelo Serviço Externo da Federação Russa (SVR) para, a troco de pagamento de quantias em dinheiro, prestar informações cobertas pelo segredo de Estado às quais tinha acesso devido às suas funções.

Quando a polícia portuguesa montou uma operação e deteve os dois indivíduos, encontrou na posse de Pozdnyakov – que dizia ser um empresário – uma folha com a mensagem “declaro recebi 10.000 (dez mil euros), 21 de Maio de 2016”, assinada pelo espião português, assim como notas manuscritas com informações “profissionais e pessoais” sobre “um ex-ministro da República Portuguesa, dois funcionários do Serviço de Informações de Segurança, um ex-diretor deste mesmo serviço, bem como um terceiro indivíduo que não se mostra ligado aos Serviços”.

Já Carvalhão Gil tinha consigo um saco de plástico com uma garrafa de whisky, um envelope com 10 mil euros em notas e algumas fotocópias “aparentemente classificadas como NATO Confidencial” – com dados relacionados com ciberataques e segurança energética. “Desafios, riscos e ameaças da segurança energética de Estados membro da NATO”, lia-se num dos papéis. Uma questão que em 2022 está no centro do conflito na Ucrânia.

Sergey ficou detido preventivamente durante cerca de dois meses. Portugal submetera um pedido de extradição para ser julgado ao lado de Carvalhão Gil. Mas o russo tinha passaporte diplomático e o tribunal italiano rejeitou o pedido. Partiu para Leste e nunca mais foi visto.

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  • ze
    06 abr, 2022 aldeia 12:54
    O 4º diplomata era o amigo do antigo presidente da camera de lisboa......ahahahah......

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