Francisco Seixas da Costa

Invasão em Brasília marca a "perda de legitimidade democrática" de manifestantes bolsonaristas

09 jan, 2023 - 23:36 • José Bastos

Em entrevista à Renascença, o diplomata refere que Lula da Silva vai enfrentrar um desafio, por ser rejeitado por metade do Brasil, mas que será "o titular da democracia" no Brasil. Seixas da Costa espera um período desafiante para a Direita moderada brasileira.

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Embaixador Francisco Seixas da Costa sobre a invasão em Brasília
Embaixador Francisco Seixas da Costa sobre a invasão em Brasília

O embaixador Francisco Seixas da Costa considera que a perda de autoridade moral por parte dos protestos bolsonaristas, deste domingo, acaba por ser "altamente favorável à consagração da estabilidade democrática".

Em entrevista à Renascença, o diplomata refere que Lula da Silva vai enfrentrar um desafio, por ser rejeitado por metade do Brasil, mas que será "o titular da democracia" no Brasil, já que o contraponto é a desordem registada este domingo, em Brasília.

O especialista vê, ainda, uma oportunidade e um desafio para a Direita moderada de se distanciar do extremismo do movimento bolsonarista.

Após os atos deste domingo, não tem havido resistência dos extremistas ao desmantelamento de várias concentrações pelo país. Este é o momento em que a aplicação da lei tenderá a normalizar o cenário?

Diria que é um momento surpreendente, de um certo modo, porque ninguém pensaria que esta movimentação de rua que vinha a ter lugar desde as eleições e, no fundo, até já prevista um pouco antes das eleições, se desmantela tão rapidamente como aparentemente está a poder ser feito. E aqui vale a pena sublinhar um ponto importante que é o papel do juiz Alexandre de Moraes, presidente do Supremo Tribunal Eleitoral que tem tido nesta matéria.

Eu diria que tem sido um herói da democracia brasileira, porque conseguiu, em determinados momentos, tomar decisões e de uma forma corajosa, que acabaram por travar algumas derivas complicadas, desde logo no próprio período eleitoral.

E, portanto, aquilo que se está a passar agora é algo que ninguém esperava, mas que na realidade eu diria que é uma coisa até simples, pela razão de que estas manifestações estavam a ter lugar num quadro democrático e muito daquilo que era a retração por parte do Governo no sentido de as reprimir, porque havia, aparentemente, dentro do Governo tendências para que houvesse uma boa repressão face a estas manifestações e aos acampamentos. E outro grupo dizia que era melhor deixar que estas coisas se normalizassem com o tempo.

De repente, a partir do momento em que os manifestantes perdem toda a autoridade moral de utilizar a democracia e a expressão da democracia como forma de se manifestarem e passam a violência, é ultrapassada uma linha vermelha que permite às autoridades rapidamente terem este tipo de ação.

E o que é interessante é que a perda de legitimidade que estes manifestantes que acontece com estes manifestantes é rápida e momentânea. Nenhuma força política, nomeadamente das forças políticas representadas no Parlamento teve a coragem de vir defender, minimamente, este tipo de ações e isto criou uma bola de neve, eu diria, altamente favorável à consagração da estabilidade democrática.

Justamente o próprio presidente Lula, esta manhã, em pleno processo de limpeza do Palácio do Planalto, depois da invasão, reuniu com as mais altas figuras do aparelho judicial, do aparelho legislativo e do militar. A ideia é justamente passar essa imagem de normalidade, de união dos vários poderes? Sendo certo que, como sabemos, não só a Polícia Militar do Distrito Federal demorou para agir como as Forças Armadas deveriam, num certo sentido, ter posicionado com maior contundência em relação às acomodações em frente dos quartéis. O que levanta, evidentemente, a velha questão das bolsas bolsonaristas. A tendência destes governadores e destes responsáveis pela Polícia Militar, pelas Forças Armadas é de moderar o seu discurso e colocarem-se ao lado das decisões da Justiça Federal?

Nós sabíamos que parte das Forças Armadas estava com Jair Bolsonaro. Ele próprio cooptou para o seu governo centenas de milhares de militares, nomeadamente militares da reserva, o que lhe dava uma certa legitimidade junto do corpo militar. E a própria maneira como as Forças Armadas se pronunciaram, por exemplo, aquando das eleições, num discurso relativamente equívoco, a meu ver, fez com que muitos destes setores policiais, por exemplo, ficassem a meio caminho entre, por um lado, respeitar a legalidade revelada pelas urnas a um candidato como Lula.

Tinha acabado de ser eleito só por metade do Brasil, sabendo que tinha na outra metade uma elevada rejeição e, portanto, há uma dúvida aqui sobre se as Forças Armadas não teriam um papel nesta matéria.

A dúvida punha-se, na altura, sobre se as Forças Armadas teriam vontade de começar um golpe militar. Penso que, para quem conhece as Forças Armadas brasileiras, estão interessadas mais em manter um papel, digamos, de condicionamento político à distância, do que propriamente intervir num golpe militar que as isolaria. Este mundo não está para isso. O Brasil ficaria completamente ainda mais isolado do que ficou com o Jair Bolsonaro, com militares no poder.

Mas os militares mantiveram sempre uma ambiguidade, porque ficaram muito feridos pelo período de Dilma Rousseff, quando, a certa altura, aquilo que parecia ser um compromisso histórico no sentido de não escavar mais naquilo que tinha sido a ditadura militar em 64 e 89 pareceu ser posto em causa. E muitas ficaram, digamos, em causa nesse momento, no sentido de dizer se calhar vai mais longe e isto volta a por o nosso papel histórico, digamos, sobre crítica.

Fez com que, a meu ver, alguns setores políticos, mas também policiais, ficassem a meio caminho e muita desta hesitação no sentido de perceber o que é que os militares vão fazer.

E havia a dúvida sobre os militares. Não estariam incrustados, por exemplo, em ser chamados como garantes da ordem pública, não para pôr em causa, não para fazerem uma ditadura militar, mas para que o poder político ficasse a dever o favor de regressarem, digamos, de terem sido eles os únicos capazes de compor a ordem.

A circunstância destes manifestantes terem passado a tal linha vermelha da violência e, em particular, terem atacado as três instituições do poder, levou-os demasiado longe e os militares ficaram entre a espada e a parede neste aspeto e não puderam ter qualquer outra reação que não agora, complacentemente, aceitarem a decisão do poder civil.

E, portanto, correu tudo bem, correu tudo até tão bem quanto poderia ter corrido.

Estes atos podem ser o suicídio político da direita extremista, abrindo caminho para uma alternativa mais moderada de centro-direita? Isto numa altura em que várias vozes já pedem a extradição de Bolsonaro para ser julgado. Uma comissão parlamentar que investigue os ataques de ontem. Uma comissão parlamentar quase idêntica à que investiga os ataques ao Capitólio, nos Estados Unidos. De lembrar que, enquanto presidente, Bolsonaro apelou, por exemplo, ao encerramento do Supremo Tribunal Federal.

A meu ver, isto pode contribuir para uma evolução civilizacional de uma certa direita democrática. Isto é, há uma direita no Brasil que evoluiu num sentido antidemocrático. A circunstância de haver um escândalo nacional provocado por estas ações e eu acho que é muito pedagógico, por exemplo, mostrar as destruições do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, pode obrigar, digamos, a reformular um pouco a sua posição e, em particular, não darem o mínimo de espaço àquilo que era ações de rua.

Agora, há uma coisa que é evidente: Lula não ganhou adeptos da direita mais radical. O Lula, que saiu do poder em 2010 com 84% de aprovação pública não é, manifestamente, o Lula que ganhou as eleições no início deste ano.

Este Lula tem uma taxa de rejeição muito elevada no Brasil e não vai afastá-la. A meu ver, não vai afastá-la por isso, quer dizer, mas vai. Provavelmente, será o titular da democracia, pela simples razão de que o seu contraponto é isto: é a desordem e o caose é toda esta este tipo de ações.

Mas isto é um grande desafio, mas também um grande desafio de legitimação para a direita democrática. Está representada na posição do chefe dos titulares do Senado e da Câmara de Deputados. Essa mesma direita agora não vai ter uma posição simples e não vai defender os manifestantes e defender a desordem.

E, por isso mesmo, também vai ser muito mais difícil para essa direita. No fundo, se apoiar em ações de rua, essas ações serão sempre vistas no Brasil como o prenúncio outra vez de um ciclo como o que terminou este domingo. E, portanto, eu acho que isto é um grande desafio para a direita democrática no Brasil e é um grande desafio para o reorganizar da direita.

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