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Entrevista

José Pedro Teixeira Fernandes: "A Rússia aposta no conflito prolongado"

31 dez, 2022 - 08:24 • José Bastos

"Não antecipo um cenário de vitórias militares de tal importância que, inevitavelmente, obriguem a negociações e a uma solução política duradoura", defende o especialista em geoestratégia.

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José Pedro Teixeira Fernandes: “A Rússia aposta no conflito prolongado”
A antecipação do panorama internacional de 2023

A Ucrânia prepara-se para receber o Ano Novo no meio de apagões e bombardeamentos aéreos, enquanto na frente de combate o cenário parece manter-se sem progressos aparentes. Os exércitos ucraniano e russo encerram o ano com duros combates no Donbass, onde cada força tenta avanços territoriais ainda que a custo de um elevado número de baixas nas suas fileiras.

Desde a retirada russa da cidade de Kherson que os combates se centraram nas províncias orientais de Donetsk e Lugansk, cujo controlo é uma das razões invocadas por Putin para a invasão ilegal da Ucrânia. Tanto em abril como em julho a Rússia reclamou a vitória militar em toda a província de Lugansk. O cenário começou a mudar este outono com o avanço ucraniano no este e o início de uma operação militar para tomar Kreminna.

“Bajmut, Kreminna e outras áreas do Donbass requerem agora o máximo de forças e concentração. A situação é difícil, dolorosa. Os ocupantes gastam todos os seus recursos - que não são significativos – para forçar algum avanço”, reconheceu o presidente ucraniano no início da semana.

“Continuamos a preparar a defesa (…) para o novo ano. Somos conscientes dos riscos do inverno e sabemos o que temos de fazer na primavera”, acrescentou Zelensky. Sobre a situação na frente de guerra, Zelensky disse não haver “alterações significativas” e que os russos não desistem da ‘ideia louca’ de capturar toda a região de Donetsk. Já o ministro dos negócios estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba, manifestou a sua convicção de que é necessário encerrar a Rússia nas suas fronteiras para extinguir a agressão e impossibilitar a sua expansão.

Com este atual pano de fundo, dez meses depois do início da agressão de Putin à vizinha Ucrânia, um ataque que altera a importância geopolítica da Rússia e veio baralhar a ordem mundial, 2023 chega dentro de poucas horas com o mesmo grau de incerteza, imprevisibilidade e indefinição.

O especialista em geoestratégia José Pedro Teixeira Fernandes, investigador do IPRI, projeta a seguir o novo cenário internacional do novo ano, à luz das ondas de choque provocadas pela invasão russa da Ucrânia, analisando alguns elementos da nova ordem internacional emergente e o confronto Estados Unidos vs China pela hegemonia mundial.

Moscovo pretenderá apostar num conflito prolongado, de desgaste, levando em conta também as dificuldades dos russos para se imporem no terreno militar da forma como gostariam

Ninguém parece conseguir prever como e quando vai acabar a guerra na Ucrânia. O conflito vai estender-se para além de 2023 e com que consequências? Com o risco de divisões no Ocidente?

É uma questão difícil de prever, mas pelos dados disponíveis nesta altura, e pelas tendências perspetivadas, tudo indica que o conflito se vai prolongar. Olha-se para as movimentações quer do lado da Ucrânia, quer dos seus aliados no Ocidente em particular dos Estados Unidos, quer do lado da Rússia e vemos claramente estas tendências de prolongamento do conflito.

Talvez o cenário base a trabalhar para tentar antecipar o que pode ser o próximo ano, 2023, e ainda mais à frente, é mesmo o cenário que admite um certo impasse no conflito.

Este quadro não implica que não possa haver alguns avanços militares por parte da Ucrânia ou, eventualmente, a própria Rússia obter também algum sucesso militar. Mas não antecipo um cenário de vitórias militares que possam ser classificadas como tendo uma importância tal que, inevitavelmente, obriguem a outra parte a pedir negociações e a encontrar uma solução política mais ou menos duradoura.

Com este pano de fundo não será surpreendente se o conflito prosseguir não só em 2023, ao longo do ano, como se prolongar até 2024.

Devo acrescentar que do lado da Rússia parece ser claramente essa a estratégia. Moscovo pretenderá apostar num conflito prolongado, de desgaste, levando em conta também as dificuldades dos russos para se imporem no terreno militar da forma como gostariam.

Assim sendo, com a própria Rússia a não parecer ter agora meios para inverter esse cenário, e com a ajuda ocidental à Ucrânia a manter-se nos níveis atuais, estas variáveis concorrem para esse cenário de 'conflito congelado'...

São fatores cruciais para o resultado final deste conflito. Do lado ocidental, em particular no papel dos Estados Unidos, tudo indica que a ajuda vai continuar a ser muito significativa nos próximos meses. De resto, os sinais foram claros na recente visita do presidente Zelensky a Washington. Por outro lado, a Rússia está a ter dificuldades na gestão desta guerra, enfrentando alguns insucessos flagrantes, mas conseguiu nestes últimos tempos, talvez depois da retirada de Kherson, estabelecer uma estratégia que tem a tendência de prolongar o conflito e, pelo menos, criar um impasse.

Uma estratégia russa de destruição das infraestruturas ucranianas de energia e transportes e de fazer ataques localizados em pontos da frente militar. Por exemplo, Kherson está a ser constantemente bombardeada e também não se sabe o custo humano e material que esse assédio militar representa para Kiev com a manutenção de Kherson, na sequência de uma grande vitória ucraniana. Kherson e a sua situação estratégica é um exemplo de como o conflito se pode prolongar e continuar num impasse. Um impasse com consequências para o Ocidente e em particular para a Europa.

Como vai então o Ocidente reagir a essas consequências, em particular na energia e inflação, e com que diferença de grau na reação entre Europa e Estados Unidos quando, por exemplo, os Estados Unidos já adotaram o ‘Inflation Reduction Act’ a ter enormes repercussões na competitividade global das empresas europeias?

Quando se olha para as consequências da guerra para o mundo ocidental que larguissimamente e de forma coerente tem apoiado a Ucrânia é realmente crucial separar duas grandes componentes. Por um lado, a posição da Europa, em geral e da União Europeia em particular, e dos Estados Unidos não é a mesma face aos impacto dessas consequências. Isso não significa que não haja consequências em todo o Ocidente, seguramente que há como há na economia global, mas a Europa, não só pela proximidade geográfica, como pela sua debilidade energética já para não falar da sua debilidade de segurança e defesa, está numa posição muito mais delicada.

Mas centrando a questão no impacto económico e social, na questão da inflação e da competitividade, os europeus têm - e isto é demonstrável, assente em factos sólidos, não é apenas uma questão de opinião - vários ângulos de muita preocupação. Desde logo, no sentido em que os custos da energia, tradicionalmente já bastante mais baixos nos Estados Unidos, estão num patamar ainda mais elevado por causa da guerra, têm um impacto mais significativo na Europa. São consequências na economia em geral, a energia é dos grandes impulsionadores da inflação, nos rendimentos das famílias e obviamente na competitividade das empresas e, sobretudo, nas indústrias com utilização intensiva de energia.

Ao mesmo tempo, e aqui vem um segundo aspeto, mesmo entre os aliados ocidentais não tem havido uma forma coerente de lidar com estes impactos mais económicos, porque os Estados Unidos avançaram com um conjunto de medidas - a ‘lei de redução da inflação’ é uma delas - que podem fazer sentido do ponto de vista do interesse americano, e muitas delas fazem, mas a questão é que essas medidas têm consequências na economia global e nos seus próprios parceiros comerciais. E os principais parceiros dos norte-americanos são os europeus.

Portanto, os europeus encontram-se neste situação ingrata: de serem, no ocidente, os que têm de suportar as consequências mais graves da guerra - em particular dos custos da energia - e também de, na interação com os Estados Unidos, os norte-americanos terem tomado a dianteira política de um conjunto de medidas que colocam sérios problemas para os europeus, porque os custos da energia já são bastante mais reduzidos - pelo efeito do preço do petróleo e do gás natural - e agora adiciona-se aqui um programa extraordinariamente ambicioso de apoio à economia norte-americana, às indústrias e produção ligadas à economia verde e à transformação energética.

Dito de outra forma: em mercados abertos e numa relação comercial aberta como a existente entre os Estados Unidos e a União Europeia há todo um estímulo para as multinacionais investirem mais nos Estados Unidos do que na Europa e, naturalmente, isto é mau para os europeus.

A Alemanha está numa encruzilhada complexa onde os seus interesses económicos e energéticos não estão em sintonia com os seus alinhamentos político-militares e geopolíticos

A guerra na Ucrânia é a maior crise que a Europa enfrenta desde a Segunda Guerra Mundial e a realidade com que o continente tem de se confrontar é a de que o mundo mudou. Nas próximas décadas sentir-se-ão fortes tensões. Até quando vai a União Europeia poder ter a sua segurança dependente dos Estados Unidos e, por outro lado, alguns dos seus membros manterem fortes laços económicos com a China? Veja-se a recente visita de Scholz a Pequim... Haverá lugar à necessidade de uma definição?

Provavelmente, mais à frente, os europeus vão sentir essa necessidade de definição até porque o mundo antecipável, não tendo de ser esta uma tendência contínua ou já do próximo ano, é um mundo onde o recentrar das questões económicas vai ter lugar no Indo-Pacífico. Este movimento levará naturalmente - e já está bem patente no conceito estratégico de segurança nacional dos Estados Unidos - a um maior enfase a essa zona do planeta num contexto em que a China será o maior rival e competidor. Portanto, os próprios europeus acabarão por sentir essa necessidade de definição de uma forma em que os norte-americanos terão também, eles próprios, de enquanto potência global definir prioridades.

Não sabemos exatamente quando, mas a tendência é, mais à frente, os norte-americanos definirem ainda com mais clareza o Indo-Pacífico como prioridade o que deixará a parte atlântica mais desguarnecida e, nesse cenário, forçará os europeus a terem de agir e assumirem bastante mais do que nesta altura as questões de segurança e defesa. No centro desta vulnerabilidade europeia, o caso da Alemanha é o exemplo mais emblemático, não só por ser a maior economia europeia, o motor económico da União Europeia, mas porque está no centro das duas maiores questões geopolíticas.

Sabe-se da dependência que a Alemanha criou face á Rússia, devido ao fornecimento de gás natural e da enorme transformação em curso nas suas fontes de abastecimento, mas esse modelo também permitiu vantagens significativas porque permitiu custos mais baixos à base exportadora da indústria alemã. Por outro lado, ao mesmo tempo que tem de resolver este problema de dependência energética com a Rússia a Alemanha tem na China, o outro país chave destas questões geopolíticas, o seu principal mercado de exportações.

Portanto, a própria economia europeia, e a Alemanha em particular, está aqui numa encruzilhada extraordinariamente complexa onde os seus interesses económicos e energéticos não estão em sintonia com os seus alinhamentos político militares e geopolíticos.

Este quadro é, não apenas potencialmente, um grande problema. Vemos que já aconteceu com a guerra da Ucrânia e poderá acontecer com a China o que obrigará, mais uma vez, os europeus a definirem-se, sobretudo, se com um pano de fundo em que as questões de rivalidade se acentuam, os norte-americanos vão pressionar os europeus a uma definição em certo tipo de questões. Por exemplo em avaliar uma relação tão próxima, económica e comercial, com a mantida com a China.

A concorrência da China aos Estados Unidos pela hegemonia mundial é o elemento central da nova ordem internacional emergente que terá uma forte componente tecnológica. Com a guerra de Putin a causar a instabilidade global, a afetar os preços da alimentação e energia, a China a entrar na incerteza pós-pandemia, a India expectante, como é que esta nova ordem pode ser percionada fora do eixo Washington-Bruxelas e como fica a ambição europeia de ação global, quando estão a emergir médias potências exteriores à União Europeia - como Turquia ou o Qatar, na energia - e fóruns alternativos como os BRIC's estão a rejuvenescer?

É uma questão multifacetada. Esta maneira como o mundo não-ocidental olha provavelmente para a atual situação geopolítica é muito diferente da forma como usualmente vemos a questão da Ucrânia, o conflito, a visão quase triunfalista como vemos este regresso do Ocidente, a coesão que voltou a funcionar entre os Estados Unidos e a União Europeia e o conjunto dos países ocidentais.

Este choque tem sido muito associado a uma dimensão de conflito entre democracias e autocracias, mas se esta é a imagem prevalecente entre nós e é fonte de satisfação ao vermos a força das democracias e a sua coesão, a verdade é que noutras partes do mundo - na realidade partes que são a maioria do mundo em termos populacionais e de número de estados - é visto de formas diferentes que oscilam entre uma certa indiferença e ceticismo face à atitude do Ocidente onde defendem ter visto uma determinação com a Ucrânia não vista noutros conflitos.

Obviamente depois há aquele grupo de estados que estão mais assumidamente em rota de colisão com o Ocidente em particular, e com os Estados Unidos, um antagonismo que se mantém. Muitos países estão aqui a detetar oportunidades de se posicionarem de outra forma mais vantajosa: mesmo no contexto atual de conflito na Ucrânia, países como a Turquia ou o Qatar são estados que estão notoriamente a extrair vantagens deste confronto geopolítico.

A Turquia desempenha aqui um papel de alguma ambiguidade: por um lado tem um pé na NATO e na aliança em geral com o Ocidente, por outro constitui-se como canal de negociação com a Rússia e vê aqui também a possibilidade de aumentar a sua margem de manobra na sua zona de influência regional. Já o Qatar é neste momento uma das grandes alternativas nos mercados internacionais ao fornecimento de energia, nomeadamente de gás natural e vemos aqui também as contradições do mundo ocidental.

Nós fazemos um discurso muito forte nos valores. Neste conflito todo o ocidente une-se e bem à volta da questão ética, moral, mas também dos valores democráticos que têm estado no centro da imagem que o Ocidente projeta de si próprio no apoio à Ucrânia, mas a verdade é que quando olhamos para países como a Turquia e o Qatar essa não é a realidade que é vista. E a Turquia e o Qatar são países com que o Ocidente precisa de contar neste jogo estratégico. No caso do Qatar a contradição é demasiado flagrante e até foi muito evidenciada nestas últimas semanas e também a Turquia não é o melhor exemplo de democracia.

Em Washington há um novo presidente republicano na Câmara de Representantes que, tudo o indica, irá querer replicar a visita de Nancy Pelosi a Taiwan. Qual será a reação da China?

Taiwan pode tornar-se a "Ucrânia da Ásia"?

Esperemos que não. Mas esse cenário mais extremo de um conflito militar com a China também não é descartável. O que penso talvez ser antecipável no próximo ano não seria o cenário de uma confrontação militar, mas algum aumentar de tensões. No início de 2024 há eleições em Taiwan e provavelmente ao longo de 2023 já haverá essas movimentações políticas. O ato eleitoral levanta sempre questões sobre o futuro de Taiwan da ligação com a China ou de uma independência à margem de qualquer ligação com a China. Por outro lado, os próprios Estados Unidos têm transformações e dinâmicas na sua política interna que provavelmente também se vão refletir na sua relação com a China e na questão de Taiwan.

Em Washington há um novo Congresso, um novo presidente republicano na Câmara de Representantes que, tudo o indica, irá querer replicar a visita de Nancy Pelosi a Taiwan. Qual será a reação da China? Será uma reação mais forte do que a deste ano em que aumentou significativamente as tensões? Em 2023 vão começar também as primárias das Presidenciais de Novembro de 2024 nos Estados Unidos e provavelmente a China também vai ocupar espaço da política interna norte-americana.

São elementos previsíveis no calendário político já para não falar do que pode ocorrer no domínio do imprevisto até por se tratar de uma zona amplamente patrulhada a do mar da China. Há um conflito nas águas marítimas. Há rotas de passagem que são disputadas quase diariamente com pequenas e grandes tensões. Portanto, há aqui margem para aumentar a conflitualidade e tensão.

E neste mundo de incerteza e tensão que papel para a política externa portuguesa? Neste dia primeiro de janeiro, desde logo, anuncia uma melhoria das relações com o Brasil com a troca de poder no Palácio da Alvorada?

A política externa portuguesa faz-se muito nos nossos eixos tradicionais. Por um lado, o mundo euro-atlântico com a União Europeia e os Estados Unidos e, por outro lado, com os países lusófonos dos quais o Brasil é uma peça central. Agora, julgo que mais do que a sensação a realidade é que a importância que nós damos ao Brasil não conferida no meu grau da importância que o Brasil reserva a Portugal. O que faz sentido.

O Brasil é um país muito grande, tem ambições distintas, é uma potência em ascensão - ascensão que também não se processa numa cadência regular - a tender a uma progressiva influência internacional nom médio e longo prazo e, portanto, olha para Portugal de uma forma diferente, apesar de toda a relação histórica, política e cultural existente.

Mas a chegada de um novo presidente, novamente Lula da Silva, vai melhorar a relação entre os dois países e, depois de Bolsonaro, julgo que haverá lugar a uma relação mais normal, mais cordial no plano político, mas também não antevejo um interesse particular de Lula da Silva por Portugal, a não ser em alguns aspetos específicos da relação bilateral. Talvez possa haver aqui uma boa notícia, não exclusivamente da relação Lisboa/Brasília, mas na interceção da relação União Europeia/Brasil que é o acordo União Europeia/Mercosul que já está negociado desde os tempos da administração Bolsonaro - foi no início do seu mandato - mas a que falta a questão da ratificação.

O problema tem estado do lado da União Europeia, em particular por reservas ligadas à política de Bolsonaro para a Amazónia que agora perdem substrato. Se esse acordo União Europeia/Mercosul avançar será uma boa notícia para o Brasil, para Portugal e para a relação entre os dois países aqui num plano mais de uma diplomacia económica e comercial.

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