16 dez, 2023 - 12:00 • Marina Pimentel
Os portugueses não devem aceitar como uma
banalidade a circunstância de o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ser uma espécie de
ouvidor do reino, defende o especialista em Direito da Saúde, André Dias Pereira, em declarações ao programa Em Nome da Lei, da
Renascença.
A propósito do caso das gémeas luso-brasileiras, tratadas no Hospital de Santa Maria com o medicamento Zolgensma para a atrofia muscular espinhal, o jurista lembra que existe uma Provedora de Justiça e é muito questionável que Belém receba cartas de protesto e apelo dos cidadãos, transmitindo a imagem de que o Presidente da República pode ser um manobrador das dificuldade de relacionamento dos portugueses com a administração pública.
”Eu recordo que nós temos uma Provedoria da Justiça. Os cidadãos que vejam os seus direitos violados por parte da administração pública e precisem de uma ação forte, têm a Sra. Provedora de Justiça. Os serviços concretos de saúde têm gabinetes de utente, há um conjunto de instrumentos de reclamação. E sinceramente acho que a nossa sociedade democrática devia fazer uma reflexão muito profunda sobre aquilo que estamos a aceitar como grande banalidade: que o Sr. Presidente da República receba cartas de cidadãos descontentes.”
O próprio Marcelo Rebelo de Sousa disse que era uma espécie de Provedor. ”Disse que era normal, é um provedor. Eu acho que isso deve ser questionado porque verdadeiramente significa que eu posso ver ali na Presidência da República, alguém que me vai ajudar a manobrar nas dificuldades com a Administração Pública", sublinha André Dias Pereira.
"A nossa sociedade democrática devia fazer uma reflexão muito profunda sobre aquilo que estamos a aceitar como grande banalidade"
O também diretor de Centro de Direito Biomédico de Coimbra defende que os portugueses ficaram perplexos com este caso das gémeas luso-brasileiras que receberam o medicamento milionário porque perceberam que, afinal, o Presidente tem uma família que faz telefonemas, manda emails para a Casa Civil e procura membros do Governo, contrariando um estilo de exercício de funções em que Marcelo Rebelo de Sousa aparece com a aura de Presidente casado com a República.
“O Marcelo Rebelo de Sousa tem exercido um estilo de presidência muito solipsista; um homem só. Não se apresenta com assessores ou porta-vozes. Não apresenta a sua família. Uma forma de fazer política que os politólogos estudam e que visa dar-lhe uma aureola de imaculado, de quase casamento com a República. E de repente os portugueses ficam estupefactos ao perceber que ele não só tem família, como é uma família que escreve mails, faz telefonemas, contacta com a Casa Civil, contacta com os assessores, procura ministros, procura secretários de Estado. E portanto isso contrasta com aquela imagem que tínhamos do presidente .E realmente ficamos um pouco perplexos”, diz André Dias Pereira.
O também vice-presidente do Conselho Nacional de Ética diz que o caso das gémeas que receberam um medicamente que custou ao SNS quatro milhões de euros abre um debate que temos de fazer nos próximos anos sobre o acesso aos medicamentos de alto custo.
Presidente da República nega favorecimento e adia(...)
Dias Pereira lembra que países muito mais ricos do que nós só aprovaram o uso do medicamento dado às gémeas muito depois de Portugal e com critérios muito mais apertados e defende que União Europeia faça com os medicamentos inovadores o que fez no caso da vacina para a Covid-19.
”Há um pipeline. Há uma linha que nos próximos cinco anos vai trazer muitos e muitos medicamentos maravilhosos, uns melhores do que outros, de terapia génica, com custos elevadíssimos. Por exemplo, a FDA dos Estados Unidos aprovou há poucos meses um medicamento que custa 3,5 milhões de dólares; o dobro do Zolgensma. É algo de extraordinário que a ciência evolua. E que nós sejamos solidários e apoiemos as pessoas com doenças raras e com doenças genéticas. Temos de conseguir fazer isso. Mas uma coisa é ser solidário, outra coisa é ser néscio. Nós temos de ser capazes de discutir o preço do medicamento. E eu gostava de deixar aqui uma ideia. Assim como se fez para a vacinação Covid, é preciso convocar a União Europeia. Isso envolve a revisão dos Tratados, envolve muito trabalho para que a UE, com 450 milhões de habitantes, tenha outro poder negocial com a indústria farmacêutica que não tem um pais de 10 milhões de habitantes.”
O juiz desembargador jubilado Eurico Reis reconhece que há indícios de que houve favorecimento no acesso à saúde no caso das gémeas, para quem o Infarmed aprovou em três dias o acesso ao medicamento milionário.
"Uma coisa é ser solidário, outra coisa é ser néscio"
E a propósito da consulta marcada pelo ex-secretário de Estado da Saúde, lamenta que quando estamos a comemorar os 50 anos do 25 de Abril, a "cunha" ainda seja uma realidade. ”No geral, isto é tudo uma reminiscência o Estado Novo que era corrupto até à medula. E este sistema das cunhas era tão normal como respirar. Nós vamos fazer 50 anos de Democracia e continua tudo na mesma. Infelizmente.”
O professor da Universidade Católica, Luis Fábrica, considera que este caso das gémeas é só mais um em que é extremamente difícil perceber o que se passa. Porque a informação é tornada pública aos bochechos e depois objeto de meias verdades pelos decisores políticos.
A propaganda e a manipulação, diz o especialista em Direito Administrativo, estão a tomar conta do fenómeno político, o que impede um verdadeiro escrutínio.
"Preocupa-me muito a forma como as técnicas de comunicação estão a tomar conta do fenómeno político. Quer-me parecer que é uma situação perigosa, e muito perigosa para a democracia. E além deste exemplo mais recente, que tem o valor que tem, preocupa-me que ao longo dos últimos anos tenha havido cada vez mais esta teia de meias verdades que cobre os fenómenos políticos e que impede a 'accountability' [responsabilização].”
"Preocupa-me muito a forma como as técnicas de comunicação estão a tomar conta do fenómeno político"
Luís Fábrica defende que vivemos tempos paradoxais. Embora tenhamos cada vez mais informação, estamos cada vez menos informados: "Nós temos cada vez mais acesso a dados, às redes sociais, mas esses dados são cada vez mais manipulados”.
O jurista acha que a comunicação social não consegue fazer o contraponto a isso, porque é a sua obrigação. “Não tem conseguido. Aparece um decisor político qualquer a falar na comunicação social. E nós como cidadãos espectadores gostávamos de lhe perguntar a),b) ou c) e ninguém lhe pergunta. Ele diz aquilo que lhe apetece dizer. Os políticos fazem autênticos passeios nas entrevistas que dão à comunicação social. E, de facto, temos tido uma demissão da comunicação social nesta responsabilidade que é sua”, lamenta.
Declarações ao programa Em Nome da Lei, da jornalista Marina Pimentel, que será emitido este sábado pela última vez pela Renascença, mas pode sempre ser ouvido nas plataformas de podcast.