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Proteger quem denuncia. Lei não defende "hackers” que revelem crimes

25 jan, 2019 - 18:07 • Rui Barros

Especialistas ouvidos pela Renascença dizem que espírito da lei tem abertura para que o interesse público dos dados revelados atenue a pena, mas não prevê o perdão. Alguns defendem que se legisle para proteger mais aqueles que denunciam.

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Um pirata informático acede, de forma indevida, a um conjunto de dados de uma organização e esses dados indiciam comportamentos ilícitos. Por considerar que há interesse público na revelação dessa informação, o “hacker” divulga os documentos e, com isso, desencadeia uma investigação às atividades ilícitas da organização.

Apesar dos eventuais benefícios que a denúncia possa trazer para a sociedade, o cidadão em causa não só não tem direito ao estatuto de denunciador - ou “whistleblower”, na terminologia anglo-saxónica - como também poderá ser condenado pelo acto ilícito que cometeu. As provas divulgadas poderão, até, não ser consideradas válidas.

À boleia do caso Rui Pinto, o “hacker” português que poderá estar na origem da divulgação dos documentos do “Football Leaks” ou dos e-mails que envolvem o Benfica SAD, a Renascença ouviu vários especialistas em Direito para perceber que proteção legal o Estado oferece a quem denuncia casos ilícitos - mesmo que, para o fazer, tenha cometido um crime.

“Na lei portuguesa, não há disposições específicas sobre a proteção dos denunciantes”, explica à Renascença Paulo Sá e Cunha, advogado. “Há determinados instrumentos de Direito europeu que prevêem a criação de canais de denúncia, através dos quais as pessoas que trabalham numa determinada organização possam denunciar com determinadas garantias de anonimato e proibição de represálias”, elucida o advogado.

Para Paulo Sá e Cunha, o caso descrito na lei é bem distinto do de um pirata informático, que “é alguém que está de fora e que acede de forma ilegítima a uma sistema informática para o qual não está autorizado a aceder”. Neste caso, "há uma diferença muito apreciável”, realça o advogado, que vê riscos na possibilidade de se consagrar na lei uma proteção especial a quem comete um ato ilícito para obter provas.

Em entrevista à revista alemã "Der Spiegel", o Rui Pinto defendeu que esse dado não deveria ser o mais importante no caso.“Não acho que deva importar se alguém que divulga documentos incriminatórios está dentro da empresa ou se esse material é divulgado por alguém de fora. No final, é sempre um denunciante [whistleblower] a expor algo que, caso contrário, se manteria longe da sociedade: crimes, coisas erradas, má conduta.

Também por isso, o "hacker" - que, na mesma entrevista à revista alemã, refuta o termo, dizendo-se um "utilizador normal" - considera que o argumento da nulidade das provas pelo facto de terem sido obtidas de forma ilegal não deveria importar. “Alguns dizem que os dados foram manipulados, falsificados ou tirados do contexto. Como resultado, dizem que isto não pode ser admitido no tribunal. Acho que isso não faz sentido. Os documentos são autênticos. É isso que importa. Isso e o seu conteúdo”.

Para Paulo Sá e Cunha, esse argumento não pode ser aplicado aos olhos da lei. “Não podemos tolerar que alguém que atua ilicitamente, praticando um crime, esteja numa posição que é mais favorável para a obtenção de prova do que aquela em que estão as próprias autoridades”, diz o jurista, que avança, até, a possibilidade de a prova obtida poder ser considerada imprestável: “Não é utilizável porque viola os princípios fundamentais do processo penal.”

Manuel Masseno, especialista em direito na área da Segurança Informática e Cibercrime, afina pelo mesmo diapasão de Paulo Sá e Cunha, lembrando que, ainda que os documentos venham a público, é necessário “demonstrar a sua autenticidade”. Ainda assim, Masseno recorda que, apesar de documentos revelados por um “hacker” não servirem como prova, servem, normalmente, para espoletar a investigação.

Estado forte com os fracos e fraco com os fortes?

Na visão de Maria Eduarda Gonçalves, professora de Direito do ISCTE, a discussão legal levantada coloca frente a frente os conceitos de interesse público e de garantias fundamentais - como é o caso do segredo de estado, o segredo de justiça ou, até mesmo, a garantia de não violação das comunicações privadas.

“Situações como a de Rui Pinto e casos ocorridos nos tempos mais recentes, como o de Edward Snowden ou o da Cambridge Analytica, são tudo circunstâncias em que um determinado indivíduo, por iniciativa própria e sobre sua responsabilidade, entra em conflito com determinadas proteções ou interesses protegidos. Nestas circunstâncias, à primeira vista - e é preciso lembrar que nestes casos pode haver cibercriminalidade - estão a ser violados esses mesmos segredos”, lembra a professora universitária, para quem há uma desadequação da lei às necessidades do nosso tempo.

“Até que ponto a legislação dos países oferece proteção a denúncias que, ao mesmo tempo que viola determinadas regras, serve para informar a sociedade sobre atitudes gravosas? É uma questão que não está suficientemente clarificada”, questiona a professora do ISCTE.

A não aplicação do estatuto de denunciante a um “hacker” e o facto de a questão ainda não estar suficientemente clarificada fazem Eduardo Santos, presidente da Associação D3, uma associação portuguesa dedicada à defesa dos direitos fundamentais no contexto digital, temer que haja maior risco de a pena ser mais pesada para quem denuncia do que para quem é denunciado.

“Há que ter cuidado para não se criar um clima hostil para denunciantes, em que se cria na sociedade a ideia de que o Estado é forte com quem denuncia e brando com quem é denunciado. Tal pode ter efeitos dissuasores para outros denunciantes, de futuro”, adverte Eduardo Santos, que pede “um sistema que proteja até os denunciantes que praticaram crimes, se os crimes denunciados tiverem um manifesto interesse público”.

“Não quer necessariamente dizer que houvesse um perdão total do crime ou que fingíssemos que não tivesse acontecido, mas sim que toda a situação envolvente deveria ser levada em conta na punição desse crime”, esclarece o presidente da Associação D3.

Esta atenuação, na perspetiva do professor universitário Manuel Masseno, já está inscrita no espírito da lei. “Há várias formas em Processo Penal para valorizar quem, praticando um ato ilícito, está a fazê-lo também em proveito da comunidade. Isto admitindo que o interesse do próprio era esse e não, por exemplo, ganhar dinheiro”, aponta.

Esta sexta-feira, William Bourdon, advogado francês de Rui Pinto, disse, em entrevista à revista alemã "Der Spiegel", que a tentativa de extorsão à Doyen foi uma "brincadeira infantil", tendo, segundo o advogado, acabado por renunciar ao dinheiro por iniciativa própria

Nova diretiva europeia à vista

Wikileaks, caso Edward Snowden, Swissleaks, Panamá Papers, LuxLeaks, Football Leaks. Se olharmos para os últimos grandes “furos jornalísticos” onde são expostos os “podres” da elite mundial, financeira e desportiva, todos têm um elemento em comum: uma fonte que decidiu expor aquilo que considerava errado. Depois de o fazerem, todas viram a sua vida virada do avesso, com alguns a terem até de ir a tribunal pelas suas ações.

Esta sexta-feira, ficamos a saber os países da União Europeia vão avançar com novas regras para aumentar a proteção de denunciantes que expõem fraudes, evasão de impostos, violações de dados e outras ações ilícitas.

“[A diretiva europeia atualmente em vigor] é muito antiquada, muito frouxa e insuficiente face ao tipo de proteção que hoje é necessário. Com o impacto das novas tecnologias era fundamental fazer-se uma nova diretiva. Não havia nada unificado. Havia elementos dispersos e cada estado-membro tinha o regime que tinha. Muitas vezes as contradições eram imensas”, explica à Renascença a eurodeputada Ana Gomes, que, nos últimos dias, veio a público questionar se Rui Pinto não deveria ser encarada como “whistleblower” - ou, como a própria prefere traduzir, “lançador de alerta”. Até ao momento, apenas 10 países europeus tinham leis claras referentes à proteção de denunciantes.

“É uma situação que também se aplica ao jovem Rui Pinto, que se veio a saber, é uma das fontes do 'Football Leaks'. Queremos avançar com isto, e fico contente que o conselho tenha avançado para o processo negocial de uma nova diretiva”, diz.

Apesar de não conseguir esclarecer, no momento da conversa com a Renascença, se o novo documento que está a ser preparado incluí denunciadores que expõem atos ilícitos mas que não pertencem à organização, Ana Gomes admite que a legislação europeia - e, por consequência, a nacional - possa ter de ser mudada para acomodar denunciantes externos às organizações.

“Não conheço a última versão do texto que está em cima da mesa. Admito que, exatamente porque os novos meios tecnológicos permitem a pessoas que, mesmo fora das empresas, possam ter acesso a informação que é da maior relevância de combate ao crime e à criminalidade organizada, ao branqueamento de capitais, à evasão fiscal - isto é, onde o interesse público tem que ser levado em conta - essas pessoas precisem de proteção”, defende a eurodeputada.

[Notícia atualizada no dia 1 de Fevereiro, após a publicação da entrevista de Rui Pinto à "Der Spiegel"]

Comentários
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  • Americo Anastacio
    02 fev, 2019 Leiria 15:27
    Pelo que percebi, protege-se mais que esconde um crime do aquele se eventualmente o pratica para denunciar o criminoso. Curioso.
  • Estupefação
    28 jan, 2019 14:22
    Este coitado ha-de ser preso por ter denunciado os crimes... quanto ao autor dos crimes propriamente ditos, isto é., quanto ao criminoso, alguma punição prevista?
  • Atento
    28 jan, 2019 Leça da Palmeira, Matosinhos 13:24
    É O PRÓPRIO SLB QUE DIZ, OU SEJA, RECONHECE que os mails ou seja as mensagens divulgadas são SUAS ... É SUA CORRESPONDÊNCIA ... é preciso provar mais alguma coisa sobre este POLVO MONSTRUOSO ?
  • Filipe
    27 jan, 2019 évora 14:04
    Ele devia é ser contrato para investigar crimes de Magistrados , Advogados e Forças de Segurança , deixem lá o futebol ... anda por aí coisa pior e só se servem dele para distrair a malta , vão à alta criminalidade organizada e esta é elaborada pelas altas patentes de Portugal . E , agora se fossem públicos e-mail´s dessa gente ... Este Estado acabava no momento ...

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