Entrevista Renascença

Escritora Djaimilia Pereira de Almeida diz que ser mulher negra é indissociável da sua imaginação

05 jan, 2024 - 22:08 • Maria João Costa

A autora lançou um livro de ensaio. “O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo” é uma obra em que Djaimilia Pereira de Almeida é a protagonista. À Renascença, a escritora refere que o livro a ajudou “a clarificar” porque escreve, a sua responsabilidade e o “quão privilegiada” é. “É muito recente que uma mulher negra possa levar a vida escrevendo em língua portuguesa”, diz a autora.

A+ / A-

Djaimilia Pereira de Almeida vive atualmente noutro fuso horário. Do outro lado do Atlântico, em Nova Iorque, para onde se mudou e onde está a dar aulas, a escritora fala do desafio que é viver submergida noutra língua e como isso está a condicionar os seus sonhos, tão importantes para a sua escrita.

A autora de “Luanda, Lisboa, Paraíso” acaba de lançar um novo livro. “O Que É Ser Uma Escritora Negra Hoje, De Acordo Comigo” é uma curta e intensa obra de ensaio sobre si. Em entrevista ao Ensaio Geral da Renascença, a autora começa por explicar que “aspirava” a falar neste livro, não só sobre si, mas sobre “muitas outras pessoas que se encontram numa posição” idêntica à sua.

“É muito recente que uma mulher negra possa levar a vida escrevendo em língua portuguesa”, sublinha Djaimilia Pereira de Almeida, que neste livro, escrito em jeito de luto depois da morte do seu pai, olha para a sua cor de pele como na infância não olhou, entende o seu mundo identitário como algo que acrescenta e enriquece a sua literatura. Contudo, a autora recusa a ideia de “etiqueta ou catalogação” do seu trabalho pelo facto de ser uma mulher negra.

O que a motivou a escrever este ensaio que sai um pouco do registo habitual da sua escrita de ficção. No fundo, a personagem principal é a Djaimilia Pereira de Almeida.

Eu não tenho a certeza de que o livro fuja um pouco ao que eu tenho feito. De facto, aparenta que eu estou no centro ou que a personagem sou eu, ou que é um texto centrado em mim. No entanto, desde o título, eu ambicionava ou aspirava a falar não só de mim, mas de muitas outras pessoas que se encontram numa posição análoga à minha. E, portanto, é um texto que aspira a falar sobre uma condição que não é apenas minha, que é esta condição de ser uma mulher que escreve e, em particular, de ser uma mulher negra que escreve.

O livro é composto por três textos. Os primeiros dois são mais baseados na minha experiência em particular, mas depois há um terceiro texto em que este aspeto mais coletivo é mais explícito, a que se chama a restituição da interioridade. Fala-se em geral, explicita-se de um modo mais objetivo a forma como falar sobre o que é para mim, Djaimilia Pereira de Almeida, ser uma escritora negra é indissociável do aspeto coletivo, da dimensão coletiva da atividade a que me dedico.

Mas essa condição de escritora negra é algo a que a Djaimilia se foi apercebendo ao longo dos tempos, ou foram fatores exteriores, os outros que lhe fizeram perceber isso?

É uma excelente pergunta. Eu, em princípio, recuso essa própria condição. Se isso for visto como uma espécie de etiqueta, ou como um princípio de catalogação do meu trabalho, eu não aceito. Eu não estou confortável com essa catalogação no sentido em que não estou confortável com a ideia de que haja alguma especificidade que me coloca num gueto qualquer enquanto escritor em relação aos outros escritores.

No entanto, tal como digo no livro, ao escrever e ao longo do processo de escrever um livro atrás do outro, fui compreendendo e, sobretudo ao escrever ficção, que a minha identidade, enquanto mulher negra, é indissociável da minha imaginação. Fui compreendendo que as duas coisas não se distinguem e que eu imagino com tudo o que sou. Imagino com a as minhas emoções, com o meu pensamento particular e esses pensamentos e essas emoções são filtradas pela minha experiência do mundo, pela forma como, entre outras coisas.

A minha pele medeia a minha experiência no mundo.

A verdade é que existe uma outra dimensão de que também só me fui apercebendo ao escrever e ao publicar livros. Não é exatamente a mesma coisa, ser-se uma mulher escritora, e ainda menos é, ser-se uma mulher negra, escritora e, portanto, o livro fala um bocadinho daquilo de que me foi percebendo ao longo deste caminho, acerca do que significa essas duas coisas.

Depois há ainda outro aspeto. O livro, de facto, tem uma raiz extremamente pessoal, no sentido em que a origem do livro resulta de um período que eu vivi a após a morte do meu pai. Resulta também numa espécie de balanço, ou de confronto muito sério que tive comigo própria e com a natureza da minha escrita, após esse período de luto. Isto para mim, é importante.

A ideia de que, a certo ponto, a pessoa que eu sou, e isso abarca tudo, ou seja, tudo aquilo que faz com que eu seja quem eu sou, mas também os aspetos relativos à minha identidade racial, à minha localização no mundo, ao género a que pertenço, portanto, tudo aquilo que eu sou. A minha escrita, de repente, são realidades todas no mesmo plano que se intercetam e que causam fricção umas em relação às outras.

Então este livro é uma tentativa de tentar fazer algum sentido e de tentar compreender qual é o meu lugar enquanto pessoa que aqui anda a escrever um livro atrás do outro.

Em que medida é que este livro é importante para o registo mais ficcional, para continuar a escrever?

Para mim, tem importância pessoalmente no sentido em que me ajudou. Escrever este livro, ajudou-me a perceber, a clarificar um pouco melhor porque é que eu faço o que faço, o que é que significa fazer o que eu faço, que género de responsabilidade particular é acarretada por aquilo que eu faço.

Ajuda-me a discernir um pouco melhor a noção do quão privilegiada eu sou por fazer o que faço. É muito recente que uma mulher negra possa levar a vida que eu levo, escrevendo em língua portuguesa. É uma realidade muito, muito recente.

O primeiro texto, que dá título ao livro, começa por dizer que se fosse há 50, 60, ou 70 anos, eu jamais poderia ter a vida que tenho. Portanto, para mim foi importante dar uma forma à consciência desse privilégio. Por outro lado, no que diz respeito à minha escrita de ficção, este livro é importante para mim como a reclamação do espaço de liberdade para aquilo que eu faço.

No fundo, o livro descreve um processo primeiro de entender aquilo que eu estou a fazer. E, em segundo lugar, de reclamar toda a liberdade possível para aquilo que eu estou a fazer e para a forma como eu venho fazendo as coisas. Para as pessoas que se interessam pelos meus livros pode ser que seja também interessante verem articulado um pensamento a respeito de uma liberdade de escrever ficção, como eu venho escrevendo, sendo eu uma mulher negra, e ao mesmo tempo, interpretar esta liberdade e responsabilidade de ser hoje uma mulher negra publicada em português.

Está a viver em Nova Iorque. Que desafio foi este que abraçou e como é olhar Portugal a partir do outro lado do Oceano Atlântico?

É curioso. Estou aqui em Nova Iorque desde o Verão. Foi uma grande mudança na minha vida, uma vez que não estou aqui de passagem. Mudei-me realmente e tenho uma posição permanente, portanto, estou realmente por tempo indeterminado em Nova Iorque. Tem sido de facto interessante.

Todos sabemos que o assunto preferido dos portugueses é Portugal, mas para mim a distância tem sido interessante. Permite ver as coisas de outra forma. Como escritora, tem sido interessante esta coisa de eu escrever na minha língua, estando imersa noutra língua. É uma experiência mais desafiante do que eu estava à espera, porque a certa altura eu não falo português com ninguém.

Só falo português com uma pessoa por dia. Estou completamente imersa noutra língua, em todos os momentos. Dou aulas em inglês. É desafiante, porque a certa altura há uma confusão e, no entanto, venho sentindo que me mudei para uma cidade que é a cidade onde estão as pessoas que têm poder suficiente para distribuírem os lugares na sociedade, e ao mesmo tempo é uma cidade para pessoas que não têm lugar.

É uma cidade que acolhe aqueles que não cabem em lado nenhum. E nesse sentido, eu sinto-me, especialmente em casa em relação a este segundo grupo. É curioso chegar a um sítio e sentir que esse sítio tem um lugar para mim. É um lugar particular que eu nunca tinha encontrado em lado nenhum, e então tem sido uma experiência absolutamente extraordinária. Estou muito feliz de estar aqui.

Está a escrever?

Estou a escrever, sim. Aliás, terminei uma coisa. Cheguei cá ainda a terminar um projeto muito longo que será conhecido no ano que vem, que dura há vários anos. Então, vim cá terminá-lo. Já foi entregue à editora, mas é curioso porque muda-se a língua, muda-se o cenário, os sons mudam, os sonhos que temos durante a noite mudam, e os sonhos são muito importantes para mim, para os meus livros de ficção e, portanto, os sonhos transformam-se, a língua transforma-se, tudo se transforma, e, portanto, eu diria que do ponto de vista da escrita ainda estou numa fase de adaptação.

Estava numa fase de terminar coisas que trazia de Portugal ainda, mas o que é excitante, e foi também por isso que escolhi vir para cá, é não fazer absolutamente nenhuma ideia de quem é que eu vou ser, quem é que eu serei daqui a 5, 10 anos, ou o que é que vou estar a escrever. Quem é que eu serei? Não faço ideia, quer dizer, de repente há um momento da vida em que as portas começam a fechar, e eu sinto que as portas se abriram para uma estrada completamente indefinida, e isso é ao mesmo tempo, muito assustador e muito emocionante.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+