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Entrevista Renascença

Biógrafo de Pessoa: “O Tio Cunha brincava muito com a invenção de várias figuras”

13 mai, 2022 - 22:44 • Maria João Costa

Como nasceram os heterónimos na obra de Fernando Pessoa? A sua origem é agora esclarecida na biografia que Richard Zenith lança pela Quetzal. São mais de mil páginas num projeto que demorou 13 anos a escrever e onde os papéis dispersos de Pessoa foram olhados à lupa.

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Foram 13 longos anos que resultaram numa biografia com mais de mil páginas. O norte-americano Richard Zenith, que há quase 40 anos se dedica à obra de Fernando Pessoa, vai lançar pela Quetzal, no próximo dia 19, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, “Pessoa – Uma Biografia”.

O livro que pensou que escreveria em dois a três, nasceu de um desafio do seu agente literário norte-americano. Em entrevista à Renascença, conta que a biografia revela algumas novidades, uma delas, porventura, pode estar na génese dos heterónimos de Pessoa que, em criança, brincava com o seu Tio Cunha inventando personagens.

Se diz que “é verdade que a melhor fonte para a escrever sobre a vida de Pessoa, são as obras”, também lembra que Pessoa dizia que “o poeta é um fingidor” e que há distorções. Richard Zenith, que pela primeira vez se lançou no género biográfico, ouviu o que Pessoa lhe dizia e o que as notas que deixou sobre si, mostravam de um poeta muito reservado.

Como nasceu a ideia escrever a biografia sobre Fernando Pessoa, o poeta cujo trabalho há muito estuda e há muito o desassossega.

Vem na sequência de todo o meu trabalho sobre Fernando Pessoa. Comecei como tradutor, depois editei obras dele. Interessou-me muito a vida da Pessoa, isto, mais ou menos, desde o ano 2000. Então organizei uma edição que era dos escritos autobiográficos automáticos e de reflexão pessoal, onde reuni os poucos Diários de Pessoa, e outros textos autobiográficos, alguns já publicados e outros inéditos.

A biografia que existia de Fernando Pessoa era a de João Gaspar Simões.

Percebi, nessa altura, que havia coisas da primeira biografia do João Gaspar Simões, que têm muitos méritos, mas tem factos errados, datas erradas. Enfim, é natural, porque passaram tantos anos e descobrimos muitas coisas, outras coisas. Então, foi o meu agente literário em Nova Iorque que me desafiou para fazer uma biografia.

Já antes tinha feito uma fotobiografia com o Joaquim Vieira.

Sim, já tinha feito a fotobiografia e, não diria que era meio caminho andado, mas já não era partir do início. Os textos eram muito curtos. Agora esta biografia que nunca esperava que fosse tão extensa! Pensava que seria metade do tamanho, ou menos, até.

Queria perceber se Fernando Pessoa o ajudou na escrita desta biografia, no sentido em que o que ele deixou escrito sobre a sua vida, serviu como base para a biografia? Foi uma espécie de coautor consigo na elaboração desta biografia?

É verdade que a melhor fonte para a escrever sobre a vida de Pessoa, são as obras de Pessoa e também os apontamentos. Então, o espólio de Pessoa tem imensa informação. Pessoa guardava muitos papéis, imensos, como sabemos. Mesmo de quando era jovem, em Durban. Então uma pesquisa aturada entre os papéis, revelou muitos factos, pequenos factos desconhecidos e depois a própria obra de Pessoa que todos conhecemos, poesia, prosa, há muita autobiografia.

Que tipo de autobiografia?

Autobiografia normalmente, distorcida. O poeta é um fingidor! Podemos pegar num verso do poema e pensar, aqui está Fernando Pessoa, mas pesando tudo, pensando, e considerando toda essa obra descobrimos muito do Fernando Pessoa.

Qual para si o dado mais surpreendente que esta biografia traz para os estudiosos de Fernando Pessoa?

Penso que vão aparecer vários elementos nesta biografia que são novos e talvez surpreendentes.

Por exemplo?

Toda a infância e juventude. Há muitos capítulos sobre essa fase da vida de Pessoa e há muita informação nova sobre as relações com os seus parentes. Isto devido ao acesso que tive a cartas ainda inéditas, e outros materiais. Sabia-se que Pessoa tinha esses alter-egos, ou heterónimos, ou pré-heterónimos, já quando era jovem adolescente. Mas há mais factos sobre isso. Vemos como todo este "drama em gente", como Pessoa lhe chamava ao seu projeto, começou praticamente desde o início, quando ainda era criança.

Os primeiros heterónimos surgem muito cedo? Ainda Pessoa era criança?

Sim. Uma coisa que surge na biografia é o papel importante de um tio. O tal Tio Cunha de Fernando Pessoa. Esse tio era casado com a Tia Maria, uma tia-avó, na verdade. Eles não tinham crianças e, mais ou menos, adotaram Pessoa em criança, eram como uns segundos pais.

Este Tio Cunha que brincava muito com Fernando, incluía a invenção de várias figuras, incluindo o tal capitão Tibô que Pessoa menciona nos seus escritos. A menção surge numa carta do Tio Cunha para Fernando, quando ele estava em Durban.

Que idade é que ele tinha?

Nessa altura tinha tipo oito anos. A sobrinha do Fernando Pessoa, a Manuela Nogueira, que ainda está connosco, com 96 anos e que está muito forte, ajudou-nos. Ela publicou há uns anos duas cartas, acho eu, do Tio Cunha que revelaram essa faceta. E há mais algumas cartas que ela tem com mais informações. Essa é bastante fascinante para mim.

O Richard tem uma vida dedicada ao Fernando Pessoa. Ainda se lembra do primeiro momento, quando tomou contacto com a obra da Pessoa?

O primeiro contacto foi nos Estados Unidos da América, quando eu ainda não tinha terminado a universidade. Tinha mais ou menos 22, 23 anos e foi uma amiga minha que tinha um namorado português que lhe passou umas fotocópias com poemas da Tabacaria de Álvaro de Campos e alguns poemas de Alberto Caeiro. Eu sabia que já espanhol pude ler mais ou menos e fiquei fascinado.

Foi um desassossego? Há quantos anos dura?

Faço as contas...são mais de 40 anos.

É uma paixão?

Sim, é uma paixão. Claro! Fernando Pessoa é apaixonante. Há outros poetas e escritores tão grandes quanto a Pessoa, mas dificilmente há outros tão vastos como Pessoa. Porque, como todos os heterónimos, todos os estilos em que escreve, todos os interesses que tem, Pessoa nunca para. Era permanentemente desassossegado.

É muito curioso, para os portugueses, ver que são os investigadores de origem estrangeira, os que mais têm feito caminho na descoberta de Fernando Pessoa. Como é que vê esse facto?

Bom, também há muitos portugueses. Pessoa é um escritor universal, portanto, acho natural que haja muitos investigadores de outros países que estudam Pessoa. No meu caso particular, ainda há mais razão, porque Pessoa escreveu uma boa parte da sua obra em inglês. Há imensos apontamentos, a maneira de pensar, o tipo de sentido de humor, tudo isso Pessoa tinha imensa influência inglesa.

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