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Ministério Público denuncia muitos crimes por investigar por falta de acesso a metadados

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Ministério Público denuncia muitos crimes por investigar por falta de acesso a metadados

10 mar, 2023 • Marina Pimentel


Em causa estão crimes como pornografia infantil ou tráfico de droga. Especialistas criticam decisão do Tribunal Constitucional que, há um ano, declarou a inconstitucionalidade da norma que permitia às autoridades aceder a informações sobre a localização e identidade de quem efetua comunicações.

Há muitos crimes que ficam por investigar por causa da impossibilidade de os procuradores acederem aos chamados metadados. O alerta é feito pelo diretor do departamento de cibercrime do Ministério Público, Pedro Verdelho.

O Tribunal Constitucional declarou há um ano a inconstitucionalidade da norma que permitia aos investigadores criminais aceder a informações sobre a localização e identidade de quem efetua comunicações. Desde então as operadoras guardam essas informações unicamente para efeitos de faturação e durante apenas seis meses.

O que acontece é que alguns juízes não autorizam aos procuradores o acesso a esses dados. Pedro Verdelho diz que o Ministério Público neste momento ”vive num trapézio”, porque a jurisprudência ainda não criou um rumo certo.

”Se por acaso alguém andava a traficar droga e falava com outra pessoa, nós pedíamos a faturação detalhada à operadora deste senhor para comprovar que eles falavam com frequência. Hoje em dia isso também é fazível mas com um limite muito maior no tempo, seis meses, e segundo alguns tribunais, não podemos sequer fazer isso. Além de que as operadoras não são obrigadas a guardar esses dados. Só os guardam se quiserem”, explica.

Alguns juízes não estão a autorizar os procuradores a aceder aos dados de faturação das operadoras porque entendem que a decisão do Tribunal Constitucional impede a utilização desses dados armazenados e porque a legislação europeia a proíbe também.

Pedro Verdelho explica no entanto que “em mais de 95% dos casos, apenas precisam do endereço de IP”, que identifica o dispositivo da internet usado. “Não precisamos de numa outra informação”, assegura.

O procurador coordenador do combate ao cibercrime confessa que não sabe quantas investigações e quantos processos estão a ser afetados, porque, justifica, “não é possível ao Ministério Público fazer essa essa contabilidade”. No entanto garante que são muitos e cada vez mais os processos em que é necessário obter prova através dos dados das comunicações.

”Sabemos que há muitos processos que foram afetados, processos com vítimas, com arguidos, processos de homicídio, roubo, e sobretudo muita pornografia infantil. Há muitos casos, e sobretudo de pornografia infantil, que ocorrem na internet e sem dados de comunicação não se investigam. Muitos casos em que sabemos quem é o suspeito, identificámo-lo, porventura confessou, mas os dados das comunicações não podem ser utilizados. Isto já aconteceu com casos que estavam em investigação, com casos que nem se puderam investigar, casos que tiveram acusação mas não tiveram julgamento por essa razão e casos que não chegaram a ser acusados”, descreve.

Pedro Verdelho explica que os dados das comunicações são decisivos para muitos crimes. ”Da mesma forma que falo em pornografia infantil, falo em muitos outros, que ocorrem na internet, tráfico de droga, promoção do terrorismo, tráfico de armas… Em muitos destes crimes não é possível investigar sem este tipo de informação. Como diz o Dr. Rui Pereira, e muito bem, é um custo, cada Estado, cada sociedade, tem de saber onde quer chegar quanto à investigação criminal e qual é o custo que está disposto a pagar por isso”, argumenta.

Aceder a dados como medida cautelar

O penalista Rui Pereira também critica o acórdão do Tribunal Constitucional (TC) pela hipervalorização que faz da reserva da vida privada, impedindo o recurso a dados que são cruciais em crimes graves, como o terrorismo. No entanto, quando chamado a comentar o caso da jovem Luena, que esteve desaparecida durante oito meses, sem que os procuradores conseguissem ter autorização do Tribunal para aceder aos dados de localização do seu telemóvel, o antigo juiz do TC afirma que nesse caso os investigadores apenas se podem queixar deles próprios porque o que houve foi uma "má aplicação do Direito".

Rui Pereira diz que bastava aos investigadores terem recorrido a uma medida cautelar de 2007 que nem sequer precisa de autorização prévia do juiz. ”Na reforma que foi feita nessa altura foi introduzida uma nova medida cautelar ou de polícia: a localização de alguém que está numa situação de grande perigo para a vida ou de perigo para a integridade física. Não se trata de um meio de obtenção de prova, mas sim de uma medida cautelar", explica.

O penalista acrescenta que, no caso do desaparecimento de uma criança, o acórdão do TC não se aplica. "Uma autoridade de polícia criminal pode pedir a localização de um telemóvel, depois o juiz só tem de validar essa diligência. Não se trata de investigação. Trata-se de prevenção. Neste caso da jovem Luena esse recurso cautelar só não terá sido usado por má aplicação do Direito, com toda a certeza”, reforça.

processos já julgados que correm o risco de não sobreviver, por causa da incerteza jurídica em torno dos metadados.

É o caso de Tancos. A Relação de Évora decidiu no dia 22 de fevereiro que o processo tem de regressar a Santarém, para que o tribunal que, em janeiro de 2022, julgou o caso em primeira instância expurgue do processo 171 factos cuja prova foi obtida através das comunicações guardadas pelas operadoras, durante um ano, para efeitos de investigação criminal, ao abrigo da lei de os chamados metadados e que três meses depois o TC viria a considerar inconstitucional.

Investigadores "de pantufas"

Luís Cruz Campos, advogado de um dos arguidos que fez o recurso para o Tribunal da Relação de Évora, diz que o problema não se colocava se os investigadores fossem para o terreno, em vez de ficaram em casa de pantufas.

”O recurso aos metadados e às intercepções telefónicas (escutas) parece que é o único meio de investigar. E é isso que de alguma forma está a acontecer no país inteiro. Os investigadores calçam as pantufas, ouvem as intercepções telefónicas e está feita uma investigação. É preciso muito mais, é preciso ir ao terreno. Sempre se investigou em Portugal, a PJ sempre foi um órgão de polícia criminal de muita competência, mas agora tem este problema de não ter investigadores que vão para o terreno“, alerta.

O antigo assessor e juiz do Tribunal Constitucional Rui Pereira admite que a expurga que o Tribunal de Santarém terá de fazer das provas com origem nos metadados poderá fazer cair algumas condenações. Se assim for, no caso de pessoas que foram presas, poderá haver direito a indemnização do Estado. ”Mesmo em relação aos processos em que tenha havido condenação, não tendo sido ressalvado o caso julgado, como eu penso que não é, e havendo o recurso extraordinário de revisão, há condenações que podem ser revertidas, e podem até ser pagas indemnizações, no caso de cumprimento de penas de prisão. Essa é que é a verdade”, admite.

Terá agora de ser o legislador a resolver o problema do acesso aos metadados para efeitos de investigação criminal. Pedro Verdelho diz que, dos 27 estados-membros, só não encontraram ainda uma solução para o problema 10 países, entre os quais está Portugal. O Governo prometeu uma nova lei antes do verão do ano passado, depois adiou para a segunda metade, depois quis estudar a legislação europeia, e depois anunciou que teria de se esperar pela revisão constitucional. Mas a verdade é que nenhum dos partidos que apresentou projetos de revisão constitucional incluiu qualquer norma para resolver a questão criada pela decisão do TC. Parece agora haver um consenso entre as principais forças políticas para não esperar pelo processo de revisão constitucional.

O procurador coordenador do combate ao cibercrime alerta que que as propostas que estão em debate no Parlamento não resolvem o problema porque apenas permitem o acesso aos dados das comunicações no caso de crimes graves. ”Só permitem o acesso a este dados, incluindo os que as operadoras guardam para efeitos de faturação, tratando-se de crimes graves. O que quer dizer que situações do dia a dia, situações que vitimizam todos os dias os portugueses, coisas como por exemplo a difusão de fotografias íntimas no Facebook, vendas enganosas na internet, burlas com apartamentos, com estudantes por exemplo, são às dezenas todos os anos, não vão poder ser investigados”, afirma.

Outra opção errada que consta também de algumas das propostas legislativas, diz ainda Pedro Verdelho, é exigir-se a autorização de um juiz para a investigação criminal poder aceder ao endereço IP, que identifica o dispositivo da internet usado. Uma solução que, diz,” só vai entupir e bloquear os tribunais”.

São declarações ao programa "Em Nome da Lei", emitido aos sábados, ao meio-dia, na Renascença, e sempre disponível nas plataformas de podcast

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