Esquecida pela campanha, Montalegre não esquece quem é a favor do lítio

A prospeção de lítio em Montalegre é um tema tóxico no campo político. E em vésperas de eleições, condiciona a ida às urnas. Durante o período oficial de campanha eleitoral, nenhum partido político passou pelo concelho raiano que guarda a “galinha dos ovos de ouro” da transição energética. A exploração poderá avançar já nesta legislatura.

07 mar, 2024 - 17:20 • Fábio Monteiro , Beatriz Pereira (vídeo)



Esquecido pela campanha, Montalegre não esquece quem é a favor do lítio

Segunda-feira, 4 de março. A voz de Luís Montenegro atravessa a Avenida Nuno Álvares Pereira, em Montalegre. Mas o líder da Aliança Democrática (AD) não está presente. O som vem de um megafone no tejadilho de um Clio branco que circula pela vila, com o rosto do social-democrata estampado nas laterais.

Faltam seis dias para as eleições legislativas, o relógio marca uma da tarde. Precisamente a esta hora, Montenegro está por Chaves, a cerca de quarenta quilómetros de distância (em 2022, o PSD perdeu dois deputados no distrito de Vila Real). Em pouco mais de trinta e cinco minutos poderia chegar a Montalegre.

No entanto, a vila raiana – que tem aproximadamente a mesma área que a ilha da Madeira, mas apenas pouco mais de 10.500 habitantes – não faz parte do roteiro. Nem da AD nem de qualquer outra força política.

Nenhum líder partidário passou ou vai passar pelo concelho de Montalegre durante o período oficial de campanha eleitoral (que começou a 25 de fevereiro e termina na sexta-feira).

Por detrás desta opção, há diferentes racionais. Mas há um que se destaca: quem fizer campanha em Montalegre arrisca-se a ser contaminado pelo lítio. Um pouco por todos os cantos do concelho há faixas com a mensagem: “Não à mina, sim à vida.”

O tema é tóxico – politicamente falando. Ao nível local, mas também nacional. A concessão da mina do Romano, em Montalegre, à empresa Lusorecursos, é um dos processos sob suspeita na “Operação Influencer”, investigação que levou à queda do Governo de António Costa.


José Moura Rodrigues, vereador do PSD em Montalagre, diz que não faz sentido para Montenegro visitar o concelho. Foto: Beatriz Pereira/RR
José Moura Rodrigues, vereador do PSD em Montalagre, diz que não faz sentido para Montenegro visitar o concelho. Foto: Beatriz Pereira/RR

O pragmatismo do homem do Clio

Quem segue ao volante do Clio que faz propaganda pela AD é José Moura Rodrigues, vereador e presidente da concelhia do PSD em Montalegre. O social-democrata estaciona e faz uma pausa para conversar com a Renascença, na sede local do partido.

O espaço do PSD é uma mera sala, que tanto serve de armazém de documentos como gabinete de reuniões. A larga maioria das cadeiras são laranjas. Há três retratos de Francisco Sá Carneiro à vista, nenhum de Luís Montenegro.

José Moura Rodrigues não tenta dourar a realidade. Os distritos do interior só elegem 40 deputados, Vila Real apenas cinco.

Por isso, afirma:

“Penso que é apenas matemática eleitoral. É natural. Não podemos andar a lutar com moinhos de vento. Percebo o Dr. Luís Montenegro. Se quer ganhar as eleições, não passa um dia de campanha em Montalegre.”

A última vez que o líder da AD esteve em Montalegre foi em outubro de 2023, uma visita que ocorreu ainda no âmbito do programa “Sentir Portugal”. O que pretende fazer em relação às reservas nacionais de lítio é uma incógnita. O programa da AD não faz nenhuma menção ao tema.

A posição de José, porém, já está definida: é contra.

O vereador do PSD confessa que, a princípio, ainda teve dúvidas sobre a exploração. A promessa de criação de 300 postos de trabalho pareceu-lhe “uma maravilha", porque "ninguém pode desperdiçar tantos postos de trabalho”. Mas uma reunião na aldeia de Morgade, uma das localidades que poderá ser mais afetada pela exploração, fê-lo mudar de opinião.

“Quando esta questão estava mesmo no auge, pareceu-me ver ali pessoas que não dormiam há alguns dias. Idosos preocupados.”

Respaldado na ciência, assegura, José Moura Rodrigues lembra que o lítio que existe no subsolo de Montalegre “tem baixos teores de concentração” e que, por isso, a exploração “não é viável do ponto de vista económico”.

A única razão para essa ideia ainda estar viva (e a avançar), defende, é porque o Governo de António Costa “montou uma narrativa que lhe interessava do ponto de vista político”.

“Quem realmente percebe destes assuntos diz-nos: nunca vai se extraído um grama de lítio em Montalegre.”

Fátima Fernandes, presidente câmara de Montalegre, está contra a exploração.  Foto: Beatriz Pereira/RR
Fátima Fernandes, presidente câmara de Montalegre, está contra a exploração. Foto: Beatriz Pereira/RR

O outro lado da narrativa

A “narrativa” de Costa quanto ao lítio está agora nas mãos de Pedro Nuno Santos. De fundo, nada mudou.

No programa eleitoral do PS, o lítio aparece como essencial para a transição energética e desenvolvimento económico do país. No debate televisivo com Inês Sousa Real, o novo secretário-geral do PS defendeu abertamente a importância da exploração das reservas nacionais – a maior a nível europeu, oitava a nível mundial.

Faz sentido que o PS veja no lítio uma possível “galinha dos ovos de ouro” para o futuro económico do país, mas depois, em campanha, não visite este local onde a exploração poderá prosseguir? Para Fátima Fernandes, presidente da autarquia, esta questão não se põe. Não há “nada” para visitar, nenhuma mina para “abrir”.

A socialista comanda os destinos de Montalegre, mas não partilha da visão nacional do PS. À Renascença, diz que não é “taxativamente contra as minas”, pois tal seria “irresponsável e de uma imaturidade muito grande”.

Mas, “a bem do território, a bem das pessoas, nós não queremos a exploração nos moldes em que ela se perspetiva, porque os benefícios não superam os problemas que vai trazer”, afirma.

Em novembro do ano passado, após a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) ter dado luz verde de “forma condicionada” à exploração da mina do Romano, a câmara de Montalegre avançou com uma providência cautelar. A Lusorecursos já disse que tenciona iniciar a exploração mineira em 2027. Ou seja, durante a próxima legislatura.

Na opinião da autarca, Pedro Nuno Santos e outros líderes políticos não visitam o seu território por uma questão logística, não porque tentem evitar algum embaraço.

“Os líderes partidários não podem passar todos pelas localidades. Temos 308 concelhos, em período eleitoral seria humanamente impossível visitarem todos os concelhos.”

Tendo em conta o ponto de situação do lítio em Montalegre, a visita de políticos em época eleitoral seria promover “ruído”, afirma mesmo. “Muito sinceramente, penso que seria isso que eles viriam para aqui fazer. Quando há questões [nacionais] muito mais prementes, não me parece sequer que fosse legítimo.”

No sentido inverso, Fátima Fernandes exige uma clarificação dos partidos da oposição quanto ao lítio, “principalmente àqueles que são do arco da governação”. Ou seja, a autarca fala para a AD. A título oficial, PAN, Bloco de Esquerda e Livre são os únicos partidos que já se manifestaram abertamente contra explorações do lítio. (Mariana Mortágua esteve na semana passada na Serra da Argemela.)

Fátima sublinha tudo o que diz com o olhar. E garante que não se sente “condicionada de alguma forma” pelo PS.

“Sou militante do PS, mas além disso sou uma pessoa que pensa, que se informa, e, portanto, tenho direito à minha opinião e a tomar uma posição.”

Acontece que, em vésperas de legislativas, o tema do lítio condiciona o voto e a discussão política dos seus munícipes, em particular nas localidades como Rebordelo e Morgade – as aldeias que irão sofrer mais consequências se a exploração avançar.


Ana Glória, 83 anos, mora em Rebordelo, Montalegre. Foto: Beatriz Pereira/RR
Ana Glória, 83 anos, mora em Rebordelo, Montalegre. Foto: Beatriz Pereira/RR

Sentidos de voto

Faz frio em Rebordelo. É possível ver neve no cume de alguns montes próximos. A aldeia, plantada numa encosta, estende-se ao lado de um curso de água sem nome que vai desaguar ao rio Beça. Na margem oposta, fica a área de prospeção da mina do Romano.

Ana Glória, 83 anos, tem o rosto emoldurado por um cachecol cinzento e fala com a Renascença à porta de casa. A idosa teme o que “aí vem”, uma abstração que não consegue montar na sua cabeça: a “destruição”, as “poeiras” que prometem estragar terrenos e “envenenar” alimentos.

Em tempos, Ana foi eleitora do PSD. Mas agora lamenta-se de os líderes políticos não olharem “à vida das pessoas”, quererem criar “guerra para levar o papel”. A poucos dias das legislativas, não sabe ainda em qual vai votar. “Não sei qual é melhor.” E admite que não sabe que partidos “são ou não contra” a exploração da mina.


António Nogueira tem 40 hectares de terreno em Rebordelo. Nunca foi contactado pela APA. Foto: Beatriz Pereira/RR
António Nogueira tem 40 hectares de terreno em Rebordelo. Nunca foi contactado pela APA. Foto: Beatriz Pereira/RR

Por comparação, António Nogueira está mais esclarecido. O homem de 63 anos é dono de mais de 40 hectares na localidade. Tanto a sua casa como uma exploração pecuária que detém, com mais de 100 cabeças de gado, ficam a menos de 500 metros da área de prospeção.

“O senhor acha que algum político gostaria de viver lá? Eu vendo-lha [a casa]. Logo que me compre os terrenos também. E vou-me embora. Vou depois para outro sítio, que é isso que eles querem. Mas eles querem-me mandar embora sem me dar nada”, afirma.

António teme perder o seu “oásis”, que o canto dos pássaros desapareça, e queixa-se de nunca ter sido ouvido por ninguém. Olha para a paisagem como quem se despede de um amigo, um terreno que “calcorreou” muitas vezes. “Nunca ninguém falou comigo. Nem os indivíduos da APA nem os supostos exploradores da mina.”

Segundo o proprietário agrícola, há um motivo muito simples para nenhum líder partidário pisar Montalegre durante o período de campanha: “O problema está nas cabeças, nos votos. Cada cabeça é um voto. Nós somos muito poucas cabeças, muito poucos votos. Por isso mesmo é que eles não vêm cá. Falam muito do interior, mas depois nas eleições esquecem-se do interior.”

Com eleições à porta, o agricultor, que se vê como “uma pessoa com ideias de esquerda”, assume que o tema do lítio tolda a sua perceção política. Pode até fazê-lo fugir à regra. “Faz-me pensar. Neste momento, a seis dias, sei que tenho uma linhagem política, que num desses partidos irei votar. Não sei em qual deles”, começa por dizer.

Mas depois acrescenta: “Ou se irei efetivamente votar em branco.”


Armando Pinto acredita que tema do lítio é tóxico para políticos. Foto: Beatriz Pereira/RR
Armando Pinto acredita que tema do lítio é tóxico para políticos. Foto: Beatriz Pereira/RR

Quão insignificantes?

A lareira do Café Pinto, em Morgade, crepita. Um gato, aninhado perigosamente junto às brasas, ofega de calor. Só há dois clientes ao balcão.

O espaço pertence a António Pinto, pai de Armando Pinto, representante da Associação Montalegre com Vida. O professor de Educação Física, tornado ativista ambiental por força das circunstâncias, aparece à hora combinada. Veste uma camisola de capuz e calças de fato de treino.

Como muitos dos seus conterrâneos, Armando entende que “em termos de votos” a população de Montalegre é “insignificante”. “Representa pouquíssimo a nível do eleitorado.” Em todo o caso, não esquece que o tema do lítio é “muito controverso".

“Sei que causa muito mau estar aos principais candidatos. E daí eles não quererem mexer no assunto.”

Na opinião do ativista, o tema é “tóxico” e muitos dos políticos já perceberam que “não é a galinha dos ovos de ouro que inicialmente pensavam que era”. “Se calhar muitos deles não querem mexer um bocadinho porque têm medo que se vire contra eles.”

Em Morgade, esta tese tem particular sustento. A aldeia tem um histórico de lutas contra o lítio em momentos de ida às urnas. Houve boicotes e protestos nas eleições legislativas e europeias de 2019, assim como nas presidenciais de 2021. “Foi uma chamada de atenção para o país inteiro”, diz Armando Pinto.

De acordo com o ativista, é, pois, inegável que o lítio influencia o seu sentido de voto e o da comunidade local.

“Condiciona. Sei em que não vou votar. Tendo em conta a questão do lítio. E sei que, para muitas pessoas daqui, também condiciona o voto delas. Se efetivamente não fosse essa questão, se calhar tinha outra opção de voto”, diz, com um sorriso no rosto.

Idosas de Morgade querem vão votar em quem não quiser avançar com a exploração. Foto: Beatriz Pereira/RR
Idosas de Morgade querem vão votar em quem não quiser avançar com a exploração. Foto: Beatriz Pereira/RR

Uma centena de metros adiante do café Pinto, a mesma ideia é passada à Renascença por um grupo de quatro mulheres.

Maria, Teresa e Umbelina vão visitar uma vizinha que regressou a casa recentemente do hospital, e encontraram-se com Preciosa pelo caminho. Encostadas junto a um muro, ao lado da estrada, conversam.

“Para mim, é a maior preocupação. Sei que aquele que quer o lítio... não vou votar nele, não acha? Vou votar naquele que penso que não quer”, diz Maria da Conceição.

Mas Preciosa é cética quanto à honestidade dos políticos. Por isso pergunta:Qual é aquele que pensas que não quer?”

Maria não responde diretamente à amiga. Sabe que não está numa posição de decisão, que pode apenas tomar uma decisão de voto em boa-fé, e depois arcar com as consequências.

“O meu pensamento é este. Neste momento, a gente ouve o que dizem na televisão. Ouço aqueles que estão a meter a mão à custa do lítio. Escolho aquele que penso que não quer. Olha, se não for, paciência.”