Lei continua por cumprir. Nenhum segurança privado faz testes psicológicos desde 2013

25 mai, 2021 - 08:00 • Hélio Carvalho

Questões burocráticas e falta de diálogo conduziram a uma vigilância sem filtros psicológicos, mesmo depois de casos mediáticos e violentos envolvendo seguranças privados. A PSP garante à Renascença que cumpre a lei. Entre janeiro e abril, o Estado assinou 416 contratos com empresas de segurança e vigilância privadas no valor de 105 milhões de euros, mais 20 milhões que no mesmo período de 2020.

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Em oito anos, nenhum segurança privado ou vigilante fez exames psicológicos como manda a lei. A lei da segurança privada, aprovada em 2013, obriga todos os vigilantes e seguranças privados a fazer testes psicológicos para poderem receber a cédula profissional, emitida pela PSP. No entanto, o Fumaça, um órgão de comunicação social independente, revelou numa reportagem de março não ter sido realizado um único teste desde que a lei foi aprovada e depois renovada, em 2019.

A lei nunca foi aplicada por vários bloqueios burocráticos. Segundo o Fumaça, o modelo de teste não foi definido, via despacho da PSP e da Direção-Geral da Saúde (DGS); os critérios de avaliação do teste não foram publicados pelo Ministério da Administração Interna (MAI) e pelo Ministério da Saúde; e a PSP e a Ordem dos Psicólogos ainda não concordaram numa lista de entidades habilitadas a realizar os testes – que só podem fazer depois da publicação do primeiro despacho.

Contactada pela Renascença, a Direção Nacional da PSP diz que “cumpre a exigência legal de avaliação psicológica aos candidatos a seguranças e vigilantes privados desde 2013, uma vez que essa apreciação consta dos atestados médicos emitidos por clínicos da área de Medicina do Trabalho”.

No entanto, a lei da segurança privada prevê que, além de avaliações físicas e mentais por médicos da área de Medicina no Trabalho, os seguranças e vigilantes têm de passar “cumulativamente” por uma avaliação psicológica realizada por uma entidade reconhecida pela Ordem dos Psicólogos.

Sem passar as duas, não se pode exercer a profissão, ainda que a PSP diga à Renascença que “as fichas de aptidão médica permitem substituir os testes psicológicos”. A lei revista em 2019, n.º 46/2019, não refere de todo essa hipótese e a Ordem dos Psicólogos nega que a lei permita essa substituição.

O bastonário da Ordem dos Psicólogos, Francisco Miranda Rodrigues, contou à Renascença em abril que tinham existido evoluções na burocracia por resolver, nomeadamente em torno do despacho conjunto da DGS e da PSP. A Polícia também confirmou que o despacho “está concluído e aguarda apenas publicação”.

"A responsabilidade é de quem tem que pôr em operacionalidade esta legislação e que até agora não o fez"


A DGS, em resposta à Renascença, remeteu o assunto à PSP para "apreciação e assinatura" do despacho.

Até à data de publicação desta reportagem, o despacho não foi publicado nas páginas das diferentes entidades.

Ordem dos Psicólogos insistiu "dezenas" de vezes

No início de maio, a PSP publicou no seu site o Relatório Anual da Segurança Privada (RAS), com dados referentes ao ano de 2020. O balanço sobre o setor não menciona em nenhum ponto a falta de exames psicológicos.

Em entrevista à Renascença, Francisco Miranda Rodrigues fala de uma preocupação constante por parte da Ordem dos Psicólogos por a lei não estar a ser cumprida e pelo atraso "lamentável" na publicação do despacho. Uma preocupação manifestada através das “dezenas de telefonemas, cartas e e-mails, sempre com sentido único”.

“Nós, da nossa parte [Ordem dos Psicólogos], do que nos compete em termos de responsabilidades sobre este processo, não estamos nem nunca estivemos em atraso, nem em falha. Que mais seria possível fazer na nossa parte?”, pergunta retoricamente o bastonário, que refere também que questões tecnológicas foram resolvidas “em poucos dias” com os Serviços Informáticos da PSP.

Questionado também sobre se a Ordem dos Psicólogos encontra razão para uma demora na aplicação de uma lei que foi aprovada há oito anos e foi revista há dois, Miranda Rodrigues não quer “entrar no campo especulativo”.

Mas acrescenta: “parece-nos estranho que numa matéria destas, que importa à segurança dos cidadãos e dos bens, não se tenha dado até hoje mais celeridade à resolução da situação”.

A PSP não refere na sua resposta à Renascença um motivo para o atraso.

Casos mediáticos motivaram alterações à lei. Avaliações psicológicas detetam comportamentos de risco

A lei da segurança privada foi revista em 2019 depois de o Governo propor alterações à lei, na sequência das agressões de três seguranças da PSG na discoteca Urban Beach a dois jovens. Mas a própria PSP admite que estas alterações não mudaram a situação de estagnação relativamente aos testes psicológicos.

A reportagem do Fumaça incidiu especificamente no caso na discoteca Urban Beach, mas também sobre a agressão de um segurança privado da 2045 num autocarro da STCP, na noite de São João do Porto, contra uma cidadã luso-colombiana. Mais recentemente, o envolvimento de seguranças privados na morte de Ihor Homeniuk, o cidadão ucraniano morto no Centro de Instalação Temporária (CIT) do aeroporto de Lisboa, foi discutido durante o julgamento.

"É estranho que numa matéria destas, que importa à segurança dos cidadãos e dos bens, não se tenha dado até hoje mais celeridade à resolução da situação"


Para Francisco Miranda Rodrigues, as avaliações psicológicas não são 100% absolutas, mas "permitem perceber a existência de um risco mais elevado ou menos elevado” de alguns comportamentos que possam “elevar o risco no exercício da profissão, para os próprios e para terceiros”.

“Consegue-se rastrear facilmente se a avaliação está a ser feita e ligar diretamente o exercício da profissão à existência destas avaliações. Isso permitirá um aumento da nossa confiança de que os profissionais desta área poderão estar em condições mínimas para o exercício da sua profissão”, garante o bastonário.

Esses comportamentos podem ir desde a “existência, no limite, de perturbações de personalidade ou outras manifestações mais patológicas, de dificuldades ao nível da gestão emocional, traços relacionados com maior agressividade e impulsividade, comportamento tendencialmente mais antissocial, comportamentos que revelem alguma tendência para consumos de substâncias, a começar pelas bebidas alcoólicas e indo inclusivamente a outro tipo de substâncias psicotrópicas e que se verifique que existe uma dificuldade em ter um exercício das funções sem esse mesmo consumo”.

A juntar a estes fatores psicológicos, tanto o bastonário como a reportagem do Fumaça falam de um clima de elevada instabilidade laboral, com turnos longos, vínculos frágeis e stress no local de trabalho, que podem aumentar o risco de “impactos psicossociais”.

Tudo isso, diz o bastonário da Ordem dos Psicólogos, pode e deve ser avaliado.

Esses fatores são particularmente relevantes numa profissão em que “a pessoa se depara com a necessidade de decidir que comportamento é que deve ter face a outra pessoa com a qual está a interagir e que tem de gerir numa situação de potencial conflito”.

“É uma profissão que tem requisitos muito específicos e que, para segurança das pessoas e dos bens, é bastante importante que certo tipo de situações possam, pelo menos do ponto de vista da probabilidade da ocorrência, ser evitadas”, afirma Francisco Miranda Rodrigues.

Além de noticiar a falta de testes psicológicos realizados, a reportagem do Fumaça também alertou para a grave precariedade do setor e para o mau funcionamento dos dois principais sindicatos da segurança privada. Foram ainda constatadas várias ilegalidades laborais praticadas por empresas de segurança, como a 2045, a Grupo8, a COPS, entre outras. Essas ilegalidades vão desde a prática de turnos laborais maiores do que o permitido pela lei, a práticas de bullying laboral e a acusações de que uma empresa de segurança privada “furou” uma greve de vigilantes.

Governo gastou mais 20 milhões de euros em contratos de segurança privada no primeiro trimestre do ano

O Estado assinou, no primeiro trimestre do ano, 416 contratos com empresas de segurança privada, a grande maioria em contratos de vigilância. Foram mais 14 contratos em relação ao primeiro trimestre do ano.

O valor total contratualizado nos contratos assinados entre o dia 1 de janeiro e 30 de abril de 2021 é de 105.613.395,80 euros.

No mesmo período de 2020, foram assinados 401 contratos, num valor total contratualizado de 84.278.122,62 euros. E durante todo o ano de 2020, foram assinados contratos que chegam aos 200 milhões de euros, pelo que metade desse valor foi atingido no espaço de um trimestre.



Olhando unicamente para os valores, o Estado aumentou o investimento em empresas de segurança e vigilância privada em cerca de 25,3%.

O maior contrato assinado este ano inflaciona notoriamente as contas para o ano de 2021: em abril, a Strong Charon assinou um contrato com a Santa Casa da Misericórdia no valor de mais de 20 milhões de euros, em serviços de vigilância na Santa Casa da Misericórdia em Lisboa que durarão três anos.

No entanto, o valor gasto (ou que ainda será gasto) não conta a história toda.

Nos primeiros quatro meses de 2020, o Estado assinou 154 contratos com um prazo de execução superior a um ano, o que corresponde a cerca de 38,4% dos contratos assinados nesse período. Este ano, esse valor baixou para 147 contratos, cerca de 35% do número total de contratos, mas o valor desses contratos é significativamente maior: 79.466.684,38 euros em contratos, mais 14 milhões que no ano anterior.

Estes dados demonstram que o Estado se comprometeu com vários contratos a longo prazo, que poderão não terminar ou ser renovados tão cedo.

Os contratos assinados este ano são, na sua maioria, contratos com prazos de execução mais curtos. Foram assinados nos primeiros quatro meses deste ano entre o Estado e empresas de segurança privada 268 contratos com um prazo de execução inferior a um ano (365 dias) – em 2020, foram 247.

Empresas “clássicas” atrás de novos cavalos de corrida

Na frente das empresas com mais contratos, há uma que este ano se destaca das restantes mais conhecidas do setor. A Ronsegur, uma das empresas que mais tem crescido, assinou 39 contratos com o Estado desde o início do ano, num valor total contratualizado de mais de 17,3 milhões de euros.

Mas a empresa com mais contratos assinados é a COPS, uma das empresas que mais tem crescido no mercado e que assinou 48 contratos com o Estado, no valor total de 13,5 milhões de euros



As duas empresas ultrapassam assim, em termos de valor contratualizado em contratos com o Governo, as três empresas mais conhecidas e antigas do setor: o Grupo8, a Securitas e a Prestibel.

O Grupo 8, com apenas oito contratos este ano, já chegou aos 8,8 milhões de euros. A Securitas bate a Ronsegur em número de contratos (47), mas está no sexto lugar com 6,9 milhões de euros contratualizados.

Já a Prestibel, a empresa de segurança privada no centro do Caso SEF, assinou 44 contratos desde janeiro, no valor contratualizado de 11,8 milhões de euros.

Nenhuma destas bate a Strong Charon, uma das empresas "clássicas" do setor: a Strong Charon assinou 19 contratos no primeiro trimestre do ano de 2021, mas o tal contrato com a Santa Casa da Misericórdia faz as contas subir para cerca de 23,5 milhões de euros.

Outra das empresas mais recentes a destacar é a Comansegur, que também tem crescido no setor em relação às empresas mais antigas. Este ano, a Comansegur já assinaram mais de 29 contratos, totalizando 4,5 milhões de euros.

Apesar de estas empresas ganharem muitas vezes concursos públicos para vender serviços de segurança e vigilância em locais lucrativos (como centros hospitalares, municípios ou universidades), a Prestibel é, ainda, a preferida do Estado.

Nos primeiros quatro meses de 2020, a Prestibel assinou 66 contratos com o Estado para serviços de vigilância. Desses, dois foram assinados com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, no valor total de 335 mil euros, antes da morte de Ihor Homenyuk nas instalações vigiadas pela empresa.

Entre 1 de abril de 2020 e 30 de abril de 2021, a Prestibel assinou 198 contratos com o Estado (154 em todo o ano de 2020).

Segurança privada ultrapassa segurança pública

Segundo dados desse relatório anual, em 2020, havia 60.233 profissionais habilitados a exercer a profissão (cerca de dois mil a mais em relação a 2019) – desses, mais de 37 mil estão em funções (menos sete mil em relação ao ano anterior).

Quer isto dizer que há quase tantos seguranças privados e vigilantes em funções do que agentes das forças de segurança juntas (em 2019, a PSP tinha 20.719 agentes e a GNR tinha 21.906, segundo dados da Pordata) e mais do que nas forças armadas portuguesas (segundo dados da Direção-Geral da Administração e Emprego Público, divulgados pelo "Jornal de Notícias" na semana passada, há 26.630 efetivos nas Forças Armadas).

Apesar do número de profissionais da área da segurança privada excederem os agentes das forças públicas, o relatório realça que o papel deste setor é de “complementar”, e nunca “substituir”, a manutenção da ordem pública pelas forças do Estado.

Durante o ano de 2020, um setor já caracterizado pela precariedade e elevada instabilidade laboral tornou-se ainda mais instável. Segundo o RAS, “verificaram-se 39.286 movimentações de vínculos laborais, demonstrando assim que os seguranças privados apresentam pouca estabilidade ao nível do vínculo laboral”. A reportagem do Fumaça também alertou para a elevada instabilidade do setor e para os contratos frágeis que os vigilantes têm que aceitar.

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