Estação Sul e Sueste no Terreiro do Paço renascida, aos 90 anos

29 abr, 2021 - 12:40 • Ana Carrilho

No sábado, dia 1 de maio, a antiga Estação Sul e Sueste, no Terreiro do Paço reabre ao público. Agora, dedicada ao lazer. É o novo Terminal de Cruzeiros fluviais no Tejo. O edifício foi remodelado e despojado de elementos adicionais acumulados ao longo de décadas. E voltou à simplicidade projetada por Cottinelli Telmo pela mão da neta, a arquiteta Ana Costa.

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Projecto de reabilitação da Estação Sul e Sueste - Programa Preliminar, vista a partir do Arco da Rua Augusta. Foto: Associação  de Turismo de Lisboa
Projecto de reabilitação da Estação Sul e Sueste - Programa Preliminar, vista a partir do Arco da Rua Augusta. Foto: Associação de Turismo de Lisboa
Vista aérea da estação Sul e Sueste, 1940-59, autoria de António Passaporte. Foto: Associação  de Turismo de Lisboa
Vista aérea da estação Sul e Sueste, 1940-59, autoria de António Passaporte. Foto: Associação de Turismo de Lisboa

A Estação do Sul e Sueste, no Terreiro do Paço, foi inaugurada no dia 28 de maio de 1932, marcando, assim, a celebração da instauração da Ditadura Militar.

A ideia de uma estação para ligar Lisboa ao Barreiro, de onde partiam os comboios para Sul desde meados do século XIX, arrastava-se há décadas. Entre avanços e recuos e a instalação de um barracão em madeira e ferro, - “provisório” durante 80 anos – até à construção de um edifício de cimento e pedra, passou uma eternidade.

O tráfego entre as duas margens era já demasiado para uma estrutura pequena, com problemas de insalubridade, desconfortável para os utentes e sem condições para a atracagem dos barcos. “Um ignóbil pardieiro, que constituía para Lisboa, tanto aos olhos nacionais como aos estrangeiros, uma vergonha”, referia trinta anos depois da inauguração da nova Estação, a Gazeta dos Caminhos de Ferro.

Já então o turismo determinava o avanço das obras e em 1928 a ideia renasceu, na perspetiva de receber muita gente para visitar a cidade, no âmbito da Exposição Ibero-Americana, agendada para 1929, em Sevilha.

Vista Norte da Estação Sul e Sueste, 1976. Foto: Associação  de Turismo de Lisboa
Vista Norte da Estação Sul e Sueste, 1976. Foto: Associação de Turismo de Lisboa
Vista interior da estação Sul e Sueste, anos 90. Foto: Associação  de Turismo de Lisboa
Vista interior da estação Sul e Sueste, anos 90. Foto: Associação de Turismo de Lisboa
Entrada da Estaçao com relógio e escudo nacional. Foto: Ana Carrilho/ RR
Entrada da Estaçao com relógio e escudo nacional. Foto: Ana Carrilho/ RR
O vestibulo da Estação Sul e Sueste remodelada ainda sem as poltronas de Daciano da Costa. Foto: Ana Carrilho/ RR
O vestibulo da Estação Sul e Sueste remodelada ainda sem as poltronas de Daciano da Costa. Foto: Ana Carrilho/ RR
Pontão lateral, junto ao Muro das Namoradeiras. Foto: Ana Carrilho/ RR
Pontão lateral, junto ao Muro das Namoradeiras. Foto: Ana Carrilho/ RR
Vista Sul da Frente Ribeirinha da Estação Sul e Sueste, 1932, da autoria de Eduardo Portugal. Foto: Associação  de Turismo de Lisboa
Vista Sul da Frente Ribeirinha da Estação Sul e Sueste, 1932, da autoria de Eduardo Portugal. Foto: Associação de Turismo de Lisboa

O enorme vestíbulo foi decorado com painéis de azulejos que reproduzem os brasões das principais estações ferroviárias na ligação ao Alentejo e Algarve (Setúbal, Évora, Estremoz, Portalegre, Faro, Lagos, Silves, Portimão) e Lisboa, a encimar a porta de entrada na Estação.

As reações na inauguração, feita pelo presidente Óscar Carmona e boa parte do governo, foram de grande satisfação. Álvaro Sousa Rego, diretor geral dos Caminhos de Ferro referiu mesmo que se tratava do “resgate de uma velha dívida à cidade de Lisboa e às formosíssimas províncias do Alentejo e Algarve”.

A Estação Sul e Sueste manteve-se em funcionamento até 2011, altura em que o tráfego de passageiros entre as duas margens exigiu a construção de um novo edifício, com ligação ao Metropolitano.

A nova estação de interface está ao lado da antiga, que foi encerrada, mas com intenções de ser reativada. Em novembro de 2012 foi classificada como monumento de interesse público. Integra o Plano de Requalificação da Frente Ribeirinha de Lisboa e a remodelação começou no final de 2019, segundo o projeto de Ana Costa, neta de Cottinelli Telmo.

Regresso às origens

“Tinha os desenhos do meu avô e acabei por recuperar muitos dos elementos perdidos”, revelou a arquiteta Ana Costa à Renascença, enquanto iniciávamos uma visita guiada pela Estação Sul e Sueste, que reabre ao público no dia 1 de maio, depois de uma cerimónia oficial.

O chão é o original, mas foi todo o recuperado. Já as pedras das colunas tiveram de ser substituídas por causa do reforço anti-sísmico que foi necessário fazer. Apesar da procura feita na origem, os mármores não são iguais porque as pedreiras, nalguns casos, já nem sequer existem. Por isso, há pilares que ficaram num cinza mais mesclado.

“A ideia de Cottinelli Telmo era fazer uma estação moderna, este é o seu grande edifício modernista”, diz Ana Costa que revela também que o avô tentava fugir um bocadinho às imposições do programa porque queria criar algo com que também tivesse afinidade.


Painéis da Estação Sul e Sueste. Foto: Ana Carrilho/ RR
Painéis da Estação Sul e Sueste. Foto: Ana Carrilho/ RR
Vista interior da estação sul e sueste, 1932.Foto: Associação  de Turismo de Lisboa
Vista interior da estação sul e sueste, 1932.Foto: Associação de Turismo de Lisboa
Vista interior da estação Sul e Sueste, 1976. Foto: Associação  de Turismo de Lisboa
Vista interior da estação Sul e Sueste, 1976. Foto: Associação de Turismo de Lisboa

Não foi a tempo da Exposição porque os problemas de estabilidade do terreno exigiram mais tempo e planeamento, mas desta vez, avançou.

A obra modernista de Cottinelli Telmo

O arquiteto Cottinelli Telmo foi encarregado do projeto, que apresentou à Companhia de Caminhos de Ferro em menos de seis meses.

Foi feito o terrapleno em frente do Ministério das Finanças, caiu a ideia de ligar o Cais do Sodré a Santa Apolónia por comboio, mas esta seria – e é – a única estação ferroviária que sem dar serviço a comboios, fazia a ligação entre as duas margens para dar seguimento ao caminho para Sul a partir do Barreiro.

A Estação Sul e Sueste, em estilo Arte Déco, é o grande edifício modernista do arquiteto Cottinelli Telmo e considerada um “exemplo de abertura ao modernismo internacional”.

Obra emblemática do Estado Novo, o objetivo era mostrar que Portugal tinha capacidade de realizar grandes obras e com materiais nacionais: o cimento, os mármores de Vila Viçosa, os azulejos.

Uma estrutura simples, plana (sem qualquer degrau), com grandes vidros, pilares altos em mármore e chão de desenhos geométricos a preto e branco. Aliás, a geometria está bem patente nas serralharias de ornamentação interiores e exteriores (com círculos, ziguezagues, triângulos recortados), extensiva aos mosaicos das paredes e à caixilharia das bilheteiras.

No meio do enorme vestíbulo ainda em trabalhos de acabamento, a arquiteta chamou-nos a atenção para os painéis com os brasões dos distritos e cidades por onde passava o comboio na Linha do Sul para revelar que, “ao princípio Cottinelli não queria aqueles painéis de azulejos regionalistas. Achava que tudo isto devia ser depurado. Acabou por ter de engolir, mas também conseguiu reduzir a decoração que queriam que a estação tivesse. Por isso é que resistiu ao tempo e foi isso que quisemos trazer de volta”.

Por cima da porta de entrada na Estação está o imponente brasão de Lisboa e em ambos os lados, distribuídos os brasões de Faro, Lagos, Silves, Portimão, Setúbal, Évora, Estremoz e Portalegre. Ao fundo, por cima da porta que dá acesso à zona fluvial, está o relógio, original.

Ao longo de dezenas de anos, a Estação foi adquirindo novos elementos, uns mais funcionais do que outros: desde novas bilheteiras com separações em mármore, à balança vermelha antiga, cabines telefónicas, barracas para tirar fotografias, sucessivas camadas de cartazes de campanha eleitoral ou mais recentemente, bilheteiras automáticas ou caixas de multibanco. Para além da “inacreditável marquise gigante sobre o rio”, que servia de sala de embarque. “Foi preciso limpá-la dessa acumulação de tralha em muitos anos”, diz Ana Costa.

“Não se trata apenas de um restauro sentimentalista, mas é um restauro com uma reinterpretação dos elementos da arquitetura do Cottinelli, sendo muito rigoroso na manutenção da escala e proporção dos elementos”.

Fazer o reforço anti-sísmico foi o maior desafio

Esta foi uma das primeiras grandes estruturas a ser construída em cimento armado. Assente sobre estacas e lodo, com o tempo, ao longo de quase 90 anos (completa a 28 de maio de 2022), foi afundando.

A arquiteta Ana Costa admite que esse foi o maior desafio desta obra de remodelação. “Foi muito complicado, tivemos que ir ao fundo, à base deste edifício - que está todo em cima de estacas – e fazer a cintagem destes pilares de mármore, sem eles “engordarem” e perderem a escala. Foi uma guerra para responder às emergências anti-sísmicas e de reforço estrutural. Estive aqui a bater-me pelo desenho, para não deixar mais 1 ou 2 centímetros (como acontece muito nas obras) porque aqui tem importância”.

Projecto de reabilitação da Estação Sul e Sueste. Foto: Josefa Searle
Projecto de reabilitação da Estação Sul e Sueste. Foto: Josefa Searle
Projecto de reabilitação da Estação Sul e Sueste. Foto: Josefa Searle
Projecto de reabilitação da Estação Sul e Sueste. Foto: Josefa Searle
Vista da cafetaria para o rio e um dos pontões, da Estaçao de Interface ao lado. Foto: Ana Carrilho/ RR
Vista da cafetaria para o rio e um dos pontões, da Estaçao de Interface ao lado. Foto: Ana Carrilho/ RR
Passadiço de acesso ao pontão, para embarcações de cruzeiros no Tejo. Foto: Ana Carrilho/ RR
Passadiço de acesso ao pontão, para embarcações de cruzeiros no Tejo. Foto: Ana Carrilho/ RR
Vista da Fachada Sul da Estação Sul e Sueste, 1932. Foto: Associação de Turismo de Lisboa
Vista da Fachada Sul da Estação Sul e Sueste, 1932. Foto: Associação de Turismo de Lisboa

Ana Costa quis recuperar ainda outros elementos dos desenhos de Cottinelli Telmo. Por exemplo, os “copos” de mármore que, à noite, refletem a luz no teto branco foram retomados para substituir as “panelas” que estavam penduradas no teto. E para iluminar de forma ténue os painéis de azulejos, a arquiteta usou linhas finas de led em cima dos frisos originais.

Gosta de se ver como “arquiteto sombra”. Ou seja,” valorizando os materiais, a escala e a decoração originais, parece que não se fez nada. Para nós (a equipa que lidera), a grande realização desta obra é ter-se feito muita coisa, há aqui muito, muito trabalho. Mas chega-se ao fim e esta era a obra de Cottinelli. Para mim, isso ainda é mais importante”.

Um projeto de família

“Digo sempre que este é um projeto de família. Começou com o Cottinell, continuou com o meu pai (o arquiteto Daciano Costa) e comigo. Comecámos com Interface, do outro lado e a reabilitação deste espaço, era o fim de festa”, conta Ana Costa. No entanto, o pai faleceu em 2005 e já não teve oportunidade de desenvolver o projeto. Acabou por lhe caber a oportunidade, mas no início ninguém sabia que era a neta (do lado materno) de Cottinelli porque profissionalmente usa só o nome herdado do pai.

Assume que travou muitas guerras porque lhe parecia ingrato que depois de um esforço tão grande de reabilitação da sala de bagagens e tendo a função do Metro cumprida, ninguém mais quisesse saber deste edifício histórico.

Por isso, considera que foi uma sorte a Câmara e o Turismo de Lisboa terem decidido dar-lhe o destino de erminal de cruzeiros fluviais no Tejo. “No fundo, é quase original, é outra vez um espaço de passagem, mas agora, mais para o lazer”.

Ainda assim, àqueles que pensam que a estação reabilitada é só para o turismo, faz questão de negar. “Isto é para todos nós porque todos vamos querer fazer a travessia, ir almoçar ou passear ao lado de lá; com a reabilitação da frente ribeirinha, de repente, a relação com a outra margem torna-se mais forte, isto é uma espécie de joia da coroa”.

Daciano da Costa acaba por marcar presença, também, através das poltronas por si criadas e que estão instaladas no vestíbulo, mas com pequenos apontamentos. “Este é um espaço de percurso, não de estadia. A estação é uma grande porta aberta sobre o rio”, diz Ana Costa.

Vista interior da estação Sul e Sueste, 1976.Foto: Associação  de Turismo de Lisboa
Vista interior da estação Sul e Sueste, 1976.Foto: Associação de Turismo de Lisboa
O brasão de Lisboa que em cima a porta de entrada na Estação Sul e Sueste. Foto: Ana Carrilho/ RR
O brasão de Lisboa que em cima a porta de entrada na Estação Sul e Sueste. Foto: Ana Carrilho/ RR

Em ambos os lados estão instaladas as bilheteiras para os operadores turísticos no Tejo e de táxis-barco. E não há outros elementos funcionais, como caixas de multibanco ou máquinas automáticas.

O espaço de lazer começa ainda no interior do edifício. A antiga sala de embarque dos passageiros, toda decorada com azulejos, é uma das três salas da cafetaria. Do lado de fora, o espaço amplo é uma enorme esplanada e dá também acesso aos três cais de onde vão sair os barcos para os passeios no Tejo.

O exterior tem ainda uma porta de ligação à estação de interface e Ana Costa espera que seja de uso para todos, os que atravessam o rio para trabalhar e os que o fazem em lazer. Ou simplesmente, para quem quer passar ali um bom bocado frente ao rio.

Mais do que uma passagem

O lado pedagógico não foi descurado e outra antiga sala de espera - que também liga a estação fluvial à do interface - deu lugar ao Centro Tejo. Nele pode-se conhecer o ecossistema do rio Tejo ou estudar uma maquete com água que se agita ao sabor das marés e em que se veem todas as localidades tocadas pelo rio.

Noutra sala há um conjunto de faróis com filmes sobre os diferentes municípios e os pontos de interesse. Visíveis a três alturas, adaptados a adultos, crianças e pessoas com mobilidade reduzida. E é sempre possível levar uma lembrança da loja.

Do lado de terra, há uma grande praça onde estacionam os táxis e autocarros turísticos.

Além da Estação, também o Muro das Namoradeiras foi reabilitado com um projeto do arquiteto Bruno Soares.

Do outro lado, o espaço do antigo Cais da Marinha até ao Terminal de Cruzeiros, projetado pelo arquiteto Carrilho da Graça, vai ser dedicado à animação. Estão previstos diversos espetáculos e eventos. Até ao fim do ano deverá ter um restaurante mas a ampla esplanada, associada a três dos quatro quiosques instalados (o outro é de informação turística) começa a funcionar já.

É nesta zona que também foram instalados cerca de duas dezenas de estacionamentos para embarcações tradicionais do Tejo que vão fazer passeios no rio.

Carta topográfica de Lisboa 1856, da autoria de Filipe Folque. Foto: Associação  de Turismo de Lisboa
Carta topográfica de Lisboa 1856, da autoria de Filipe Folque. Foto: Associação de Turismo de Lisboa
Carta Topagráfica de Lisboa, 1881, da autoria de Francisco Goullard. Foto: Associação  de Turismo de Lisboa
Carta Topagráfica de Lisboa, 1881, da autoria de Francisco Goullard. Foto: Associação de Turismo de Lisboa
Carta Topográfica de Lisboa, 1904-11, da autoria do engenheiro Silva Pinto. Foto: Associação  de Turismo de Lisboa
Carta Topográfica de Lisboa, 1904-11, da autoria do engenheiro Silva Pinto. Foto: Associação de Turismo de Lisboa
Terreiro do Paço, ortofotomapa, 2012. Foto: Associação  de Turismo de Lisboa
Terreiro do Paço, ortofotomapa, 2012. Foto: Associação de Turismo de Lisboa

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