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​A literatura protege contra o mal, afirma escritor espanhol Javier Cercas

16 nov, 2015 - 22:28 • Maria João Costa

“Se não fosse escritor seria uma pessoa perigosa”, avisa Javier Cercas. “O Impostor” é o seu último livro e acaba de chegar a Portugal.

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Assume que “se não fosse escritor seria uma pessoa perigosa”. Diz que a literatura protege do mal e oferece experiência. Javier Cercas, um dos mais destacados escritores espanhóis da actualidade, acaba de lançar em Portugal “O Impostor”. O livro é sobre um dos escândalos que abalou Espanha e o mundo em 2005. Em causa a figura de Enric Marco, um homem que mentiu ao fazer-se passar por sobrevivente do Holocausto e que durante três anos presidiu à Associação Espanhola de Sobreviventes.

A história do catalão desmascarado em Maio de 2005, depois dar centenas de conferências e receber distinções como uma das vítimas do III Reich que nunca foi, despertou o interesse de Javier Cercas, com quem a Renascença conversou.

Uma vítima do holocausto que nunca o foi

“A mim fascinou-me o caso deste homem que mentiu sobre o crime mais monstruoso da história da Humanidade. O presidente da Associação dos ex-deportados espanhóis nos campos nazis, essa pessoa que presidiu durante muitos anos a essa associação, que se tinha transformado num herói civil em Espanha, afinal descobriu-se que nunca tinha estado num campo de concentração. Isto foi revelado em 2005 e foi um escândalo enorme, mas a mim fascinou-me.”

Porquê escrever sobre uma mentira

“Eu nunca escrevo sobre o que sei. Escrevo sobre o que não sei. Escrevo para iluminar algo que não é claro e que não entendo. Foi por isso que escrevi este livro, para tentar saber o que havia neste homem. Porque é que alguém faz isso? Porque é que todos acreditaram neles? Como é possível que durante anos todos acreditaram nele? E porque é que isso me perturbava. Para perceber isso tive de escrever o livro.”

Um romance é uma pergunta, mas as respostas são sempre ambíguas

“Por que é que este homem fez isto? Por muitas razões, mas há uma que é muito importante. Fez isto para que o quisessem, para que fosse admirado e o aceitassem. A questão é que este homem fez isto violando todas as regras que todos tentamos respeitar, a começar pela regra básica que é dizer a verdade. É uma regra essencial da convivência. Se a rompermos, já não somos humanos. Mas ele foi capaz de a violar.”

O fascínio perverso de Javier Cercas

“O que me interessa neste homem não é o que tem excepcional, mas sim o que tem de normal. Ou seja, o que tem de comum com todos nós. De alguma forma, neste homem terrível e monstruoso estamos todos e isso é o que mais me interessa. Todos temos algo de impostores. Todos somos uma espécie de actores. Todos nos maquilhamos perante um espelho. A todos assusta-nos a verdade e por isso criamos uma ficção. Somo todos um pouco romancistas de nós próprios. A questão é que este homem leva isso a um extremo exageradíssimo que é no fundo, moralmente abjecto.”

Quando a verdade é dura, preferimos a mentira

“Neste livro diz-se uma coisa que é muito importante e que não é só de agora. Quando se trata das coisas duras como a guerra, os campos nazis, o franquismo ou as ditaduras não gostamos das verdades. Preferimos a mentira. As mentiras têm mais êxito do que as verdades. Este homem quando falava contava a versão que todos queriam ouvir que era adocicada, sentimental, digerível, amável, uma versão sem aquilo a que Primo Levy, esse grande escritor italiano do Holocausto chamava as zonas cinzentas ou de sombra. Quero dizer que este homem dava uma versão falsificada da história. Mas sabe o que acontecia? Insisto. Gostamos mais de ouvir a mentira do que a verdade quando se trata de coisas duras.”

Europa é o grande projecto do século XXI que se torna melhor se acolher os refugiados

“A Europa unida é a única utopia razoável que os europeus inventaram e, para mim, é o grande projecto do século XXI, sem dúvida. Agora, uma Europa que não é capaz de acolher um monte de desesperados que aqui chegam, não é uma Europa que me interesse. Uma Europa que recusa refugiados, não me interessa nada porque, entre outras coisas, esta gente pode tornar-nos melhor. A Europa é como um romance que se alimentou de outros géneros e tornou-se mais forte. É essa a Europa que me interessa, uma Europa que é capaz de assimilar o que chega de fora, convertê-lo em algo seu e tornar-se mais forte com isso.”

Oito romances publicados. Javier Cercas acredita que a literatura salva

“Se não fosse escritor seria muito mais perigoso do que sou. Não tenho dúvidas. A Europa deveria pagar-me um salário para escrever, para que não fosse perigoso. Sou muito menos idiota, torna-me a vida mais agradável, tornou-me melhor. Seria muito pior se não escrevesse. Tornou-me a vida mais rica e mais completa. Nesse sentido posso dizer que a literatura me salva moralmente. Sou um pouco antiquado, acho que a literatura é muito útil e é capaz de proteger-nos contra o mal, contra as coisas más que há em nós, porque a literatura oferece-nos experiência.”

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