Presidenciais EUA

Trump contra Biden num primeiro debate caótico. "Isto não vai acabar bem"

30 set, 2020 - 05:23 • Joana Azevedo Viana

No primeiro frente a frente entre o Presidente republicano e o seu rival democrata, houve inúmeras interrupções, alguns insultos e nervos à flor da pele. Trump atacou o filho de Biden, escusou-se a condenar milícias de extrema-direita e deixou um aviso nas entrelinhas. Visivelmente cansado, Biden apontou armas às incongruências de Trump, do combate à pandemia de Covid-19 até aos impostos que (não) pagou, apelando ao americano comum na demanda de "unir o país". Chris Wallace, o moderador, queria ter sido "invisível", mas não conseguiu.

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Trump e Biden no primeiro frente a frente: o essencial do caótico debate
Trump e Biden no primeiro frente a frente: o essencial do caótico debate

Faltavam alguns dias para o primeiro debate pré-presidenciais nos EUA quando o moderador, Chris Wallace, avisou que não iria fazer verificação de factos no frente a frente de Donald Trump e Joe Biden. "O meu trabalho é ser o mais invisível possível", declarou o apresentador da Fox News. Chegada a hora, a promessa foi impossível de cumprir.

Numa arena em Cleveland, Ohio, com apenas 70 pessoas na assistência por causa da pandemia de Covid-19, o jornalista chegou a ver-se obrigado a levantar a voz para falar por cima dos candidatos, pedindo várias vezes ao Presidente Trump que respeitasse as regras do debate.

"Penso que o país ficaria melhor servido se fosse possível que ambos falassem com menos interrupções. Peço-lhe que respeite isso", diria Wallace a certa altura. "Eu e ele", respondeu Trump. "Bom, francamente tem sido o senhor a interromper mais", ripostou o moderador.

Ao final de hora e meia sem intervalos, por entre inúmeras interrupções, mentiras e alguns insultos, o debate terminou com um aviso sinistro sobre a ida às urnas: "Isto não vai acabar bem."

Antes disso, Trump também fugiu ao pedido de Wallace para condenar publicamente milícias de extrema-direita e outros grupos de supremacia branca. Referindo-se a um desses grupos, os Proud Boys, o Presidente dos EUA disse apenas: "Recuem e aguardem."

Lugar vago no Supremo: Trump à procura do "hat-trick"


Para uma parte da base eleitoral conservadora de Trump, a nomeação de Amy Coney Barrett para o Supremo Tribunal tornou-se galvanizadora nestas eleições. E foi por aí que o debate arrancou, com Wallace a perguntar a Trump porque é que deve ser ele a escolher a sucessora de Ruth Bader Ginsburg, a juíza liberal que morreu a 18 de setembro.

"Ganhámos as eleições [em 2016], temos a Casa Branca e o Senado e uma nomeada fenomenal", respondeu o Presidente. "As eleições de 2020 já começaram e o nome para o Supremo Tribunal deve ser escolhido depois de as pessoas escolherem o Presidente", contra-atacou Biden.

Com a morte de Ginsburg, Trump quer alcançar uma maioria conservadora de 6 contra 3 juízes no Supremo Tribunal. Para Biden, o objetivo do Presidente é poder acabar com o Affordable Care Act (ACA), mais conhecido como Obamacare. Além disso, o ex-vice-presidente alertou que, se a juíza Barrett for confirmada, e dada a sua posição sobre questões como o aborto, "os direitos das mulheres vão sofrer mudanças fundamentais".

A vontade de Wallace em permanecer "invisível" provou-se fútil por esta altura. Com Trump a interromper Biden várias vezes, acusando-o de ser "socialista" e dizendo que mais pessoas teriam morrido de Covid-19 nos EUA se Biden fosse Presidente, o moderador não só teve de interromper como acabou a fazer verificação de factos.

Entre trocas de acusações sobre o plano de acesso universal a cuidados de saúde, Wallace empurrou a conversa para o tópico seguinte, pedindo aos candidatos "seriedade" face ao assunto em questão.

Gestão da Covid-19: o caos instalado (em Cleveland e no país)

Em que candidato devem os americanos confiar no que toca à gestão da pandemia? Biden respondeu à pergunta com factos e números, lembrando que os EUA "têm 4% da população mundial mas 20% do total de mortes por Covid-19" e que, como revelado no mês passado, Trump sabia o quão grave era a doença muito antes de deixar de minimizar publicamente a gravidade da pandemia.

"Ele sabia que a doença era perigosa e assumiu que ocultou isso porque não queria assustar as pessoas. Ele é que se assustou. Entrou em pânico ou então pôs-se a olhar para a bolsa de valores", acusou Biden.

A isto, Trump respondeu com uma acusação: se Biden fosse Presidente, e porque "teria demorado mais dois meses a fechar as fronteiras", muito mais gente teria morrido para além das 204 mil pessoas que já morreram. Falando na terceira pessoa, também garantiu que vários oficiais consideram que "o Presidente Trump fez um trabalho fenomenal" a gerir a pandemia e adiantou que "estamos a semanas de distância de uma vacina" e que "há muito menos gente a morrer".

Os factos não corroboram nenhuma das afirmações, mas para Trump a vacina para a Covid-19 é uma questão política. "Falei com a Pfizer, com todas as pessoas com quem é preciso falar, a Johnson & Johnson e eles dizem que podem ter a vacina bastante mais cedo [do que dizem os especialistas], antes de 1 de novembro [véspera das eleições], e os militares podem distribuir 200 mil vacinas por dia." Até esta quarta-feira, nada indicava que isto corresponda à realidade.

Confrontado com o facto de continuar a organizar comícios com dezenas de milhares de pessoas em plena pandemia, Trump respondeu: "As pessoas querem ouvir o que eu tenho a dizer. Tenho 25 e 35 mil pessoas a aparecer em aeroportos e até agora não tivemos problema nenhum; é ao ar livre, temos multidões incríveis. O Joe [Biden] faz círculos com três pessoas."

Olhando diretamente para a câmara, como fez várias vezes ao longo do debate, o candidato democrata ripostou: "Ele não está preocupado convosco e tem sido totalmente irresponsável na forma como tem lidado com o distanciamento social e o uso de máscaras."

Economia em recessão e os impostos. "Pago milhões", diz Trump

O nível do debate começou realmente a descer a partir deste ponto, com o Presidente a dizer que construiu "a maior economia" e que a fechou "quando a praga da China chegou" aos EUA e que, se fosse por Biden, a economia fecharia outra vez e o país ficaria arruinado.

"Ele quer fechar a economia outra vez? Vai destruir este país. Vejam os estados democratas que estão a cumprir confinamentos duros. Eles acham que nos estão a magoar, mas estão a magoar as pessoas. Não é justo, reabram os estados! Vejam o que está a acontecer com os divórcios e as drogas. Este homem vai fechar o país todo e destruir o nosso país. Não precisamos de um Presidente que diz 'Vamos fechar o país'."

Biden respondeu sem demoras, novamente a "olhar" para os indecisos do outro lado das televisões e computadores.

"Os milionários como ele estão a safar-se, mas e vocês? Ele vai ser o primeiro Presidente da história dos EUA com menos postos de trabalho na economia do que quando assumiu o cargo. As pessoas que perderam o trabalho estavam na linha da frente, pessoas que puseram a vida em risco para garantir que todos sobrevivíamos. Não se pode curar a economia enquanto não se resolver a crise de Covid-19."

Wallace interrompeu os candidatos neste ponto para perguntar diretamente a Trump sobre a investigação do "New York Times", que revela que o republicano pagou 750 dólares de IRS por ano, em 2016 e 2017, respetivamente o ano em que foi eleito e o ano em que tomou posse como Presidente.

Wallace teve de repetir a pergunta mais adiante, pedindo-lhe uma resposta direta. O Presidente respondeu que pagou "milhões de dólares em impostos" e, face ao pedido de Biden para divulgar as suas declarações de rendimentos de anos anteriores, disse que o fará "quando estiverem prontas". (Trump foi o único chefe de Estado e candidato à presidência das últimas décadas a não divulgar esta informação.)

Com mais interrupções de parte a parte, o moderador acabou por relembrar as regras do debate e deixou novo recado a Trump. "Agora vou fazer-lhe uma pergunta sobre racismo. Se quiser responder outra coisa qualquer tudo bem, mas tem de respeitar o tempo do outro."

Racismo e violência. Trump pede a milícia que "recue e fique a postos"

A discussão sobre o racismo sistémico nos EUA arrancou com Biden a dar como exemplo do racismo de Trump o facto de haver mais afroamericanos a morrerem de Covid-19.

"Este é um Presidente que usa tudo como um apito para cães, para criar divisões raciais. Um em cada 500 afroamericanos vão morrer de Covid-19 se ele for reeleito. É preciso olhar para o que ele fez e o que ele fez é um desastre para os afroamericanos."

Trump contra-atacou com uma série de acusações que culminaram com um apontar de dedo à "extrema-esquerda" que apoia Biden e que o Presidente responsabiliza pela violência nas ruas no rescaldo de mais mortes de negros desarmados pela polícia.

Mais adiante, Wallace perguntou-lhe porque é que cancelou o programa federal de "treino de sensibilidade racial". Trump respondeu que o programa era "racista" e uma "revolução radical que estava a acontecer no nosso Exército, nas nossas escolas, em todo o lado", valendo "muitos milhares de dólares em ideias más e doentes, ensinadas por pessoas que odeiam o nosso país". O moderador ainda tentou questionar "o que é radical" em ensinar para a diferença, mas não obteve resposta.

Tal como não obteve resposta quando pediu ao Presidente que condenasse, ali e agora, as milícias de extrema-direita que têm estado envolvidas nalguns dos motins e conflitos nas ruas.

Trump começou por responsabilizar a "extrema esquerda" pela violência, mas Wallace não o deixou fugir, repetindo o pedido de condenação aos grupos de supremacia branca.

Em vez disso, o Presidente respondeu: "O que é que lhes quer chamar? Dê-me um nome". Biden sugeriu que condenasse os "Proud Boys", uma organização que se descreve como um clube de "ocidentais chauvinistas" e que a ONG Southern Poverty Law Center classifica de grupo de ódio.

"Proud Boys, recuem e aguardem", foi a resposta de Trump.

Wallace mudou de assunto perguntando aos dois candidatos porque é que os eleitores devem escolhê-lo e não a alternativa. Entre a declaração de interesses de cada um, Biden fez questão de recordar que o atual Presidente é um homem que, entre outras coisas, não se coibiu de chamar "falhados" aos soldados norte-americanos que perdem a vida, como o seu filho Beau perdeu a vida no Iraque.

Trump interrompeu-o para questionar se ele se referia ao seu filho Hunter, que está atualmente a recuperar de um vício em cocaína que o levou a ser mandado embora do Exército. "O meu filho, como muitas pessoas aí em casa", reagiu Biden, a olhar diretamente para a câmara, "tinha um problema com drogas, mas recuperou e eu estou orgulhoso dele".

Credibilidade das eleições

Com Trump a elevar o fantasma de "eleições fradulentas" há várias semanas, Wallace escolheu encerrar o debate com a questão na mente da maioria: o que vai acontecer quando os resultados das eleições começarem a ser anunciados na noite de 3 de novembro?

Biden garantiu que irá respeitar os resultados, quaisquer que sejam, pedindo às pessoas que votem e garantindo que são elas que controlam o futuro.

"Até o diretor da agência de Segurança Nacional diz que não há provas de manipulação dos votos por correspondência. Ele quer assustar as pessoas para acharem que não será legítimo. Apareçam e votem, votem, votem, vocês é que vão definir o que acontece. Ele não pode impedir-vos de determinar o resultado das eleições. Se eu vencer isso será aceite, se eu perder isso será aceite. Vocês têm o controlo para definir o que acontece neste país nos próximos quatro anos: vai mudar ou vamos ter mais quatro anos das mentiras dele?"

Trump, que continua a não se comprometer com uma transferência pacífica do poder caso Biden conquiste a maioria dos votos, voltou a apostar as fichas na "fraude" do voto por correspondência, levando Chris Wallace a lembrar que, nas presidenciais que lhe deram a vitória há quatro anos, 31 milhões de norte-americanos votaram por correio – o equivalente a "mais de um quarto do total de eleitores que votaram", indicou o moderador.

Sem esperar por resposta, Wallace perguntou se Trump pretende recorrer aos juízes do Supremo para analisar os boletins de voto caso seja declarado vencido, ao que o Presidente respondeu que sim.

Por causa da pandemia de Covid-19, muitos norte-americanos já votaram ou vão votar por correspondência nestas presidenciais, num processo que termina a 3 de novembro. Antes de Biden fazer o seu apelo final aos eleitores e lembrar que se "vota por correio desde o final da guerra civil", Trump largou um aviso que os analistas foram rápidos a classificar de presságio: "Isto não vai acabar bem."

Mais três debates pela frente

Estão marcados mais dois debates entre os candidatos presidenciais até ao dia das eleições. O segundo frente a frente entre Biden e Trump acontece a 15 de outubro e o terceiro a 22 do mesmo mês, quando vão faltar menos de duas semanas para as eleições de 3 de novembro.

Na próxima quarta-feira, 7 de outubro, tem lugar o único debate entre os candidatos à vice-presidência, o atual número dois da administração Trump, Mike Pence, e a senadora democrata Kamala Harris.

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  • Ivo Pestana
    30 set, 2020 Funchal 14:56
    Estes dois não acho serem os melhores para os EUA. Não têm carisma. E são idosos, para tanta responsabilidade. Gostava dum tal Al Gore, ou um novo Obama...

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