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Entrevista

Éloi Laurent. "A regra de ouro agora deve ser reinventar a economia, não reiniciá-la"

06 ago, 2020 - 14:29 • Sandra Afonso

Alinhado com a "Economia de Francisco", Éloi Laurent defende que é preciso "mudar a narrativa do crescimento para o bem-estar". À Renascença, o economista francês diz que os resultados nocivos de perseguir o crescimento económico em vez de investir na Saúde e no Ambiente estão à vista nos EUA, onde mais de 150 mil pessoas já morreram de Covid-19. "A triste realidade é que acho que este vírus é, provavelmente, um milhão de vezes mais inteligente que Donald Trump."

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“O futuro já começou”, avisa Éloi Laurent. Em entrevista à Renascença, o economista francês diz que o impacto da Covid-19 nos Estados Unidos era “uma tragédia evitável" e deve servir de "lição para o resto do mundo". A lição? Que "a obsessão pelo crescimento pode realmente matar-nos”.

Professor na Universidade de Stanford, na Califórnia, Éloi Laurent defende que o bem-estar, a resiliência e a sustentabilidade medem melhor a evolução das economias do que o tradicional indicador do PIB (Produto Interno Bruto), porque “a maioria das transações não ocorre no mercado e não tem preço”.

No livro "De Olhos Postos no Amanhã", editado pela Casa das Letras, o economista revela o que se esconde no crescimento económico: o efeito corrosivo das desigualdades, a recessão democrática, o fim do lazer, a globalização da solidão, o fardo que a economia representa para a biosfera.

São premissas em linha com a “Economia de Francisco”, o evento que vai reunir em Assis, em novembro, mais de dois mil jovens, a convite do Papa, para revisitarem a economia e discutirem prioridades num mundo em mudança. O objetivo é repensar o papel de áreas como o ambiente, o lucro, o bem-estar e a agricultura na economia.

À Renascença, Éloi Laurent admite que a atual crise pandémica “está a mudar o mundo, mas também, infelizmente, a 'mudar a mudança' que estava a decorrer em termos de transição ecológica”. Ainda assim, assegura, "ainda vamos muito a tempo de retomar o caminho”.

Em “De Olhos Postos no Amanhã” defende uma economia baseada no bem-estar e na sustentabilidade. Não é esse o início do fim do capitalismo?

O capitalismo existe há cerca de seis séculos e conquistou o mundo inteiro nos últimos 30 anos, por isso seria realmente ousado afirmar que estamos a testemunhar o início do fim do capitalismo. Não estamos sequer no fim do início.

"Seria ousado afirmar que estamos a testemunhar o início do fim do capitalismo. Não estamos sequer no fim do início"

Não afirmo isso no livro porque, na verdade, não sei o que é o "capitalismo" e não conheço ninguém que possa defini-lo adequadamente. Mas sei o que é o crescimento económico, por que é que persegui-lo é prejudicial ao bem-estar e aos ecossistemas humanos e como sair desse crescimento para nosso próprio benefício.

Encontra na atualidade exemplos destes danos, causados pela dependência do crescimento económico?

Veja o que está a acontecer agora nos EUA [no contexto da pandemia de Covid-19]: estados como Flórida e Texas deram prioridade ao crescimento em detrimento da Saúde e regrediram ao ponto em que estávamos na Europa em março, com dezenas de milhares de vidas que se podem perder nas próximas semanas.

A triste realidade é que acho que este vírus é, provavelmente, um milhão de vezes mais inteligente que Donald Trump. Mas foi uma tragédia evitável e deveria ser uma lição para o resto do mundo: a obsessão pelo crescimento pode realmente matar-nos.

Fatores como a poluição, alterações climáticas, esgotamento de recursos naturais, migração em massa e outros impõem a redefinição de prioridades?

Absolutamente. Acho que a crise de Covid-19 torna as coisas ainda mais claras, basta estarmos dispostos a abrir os olhos: as realidades económicas devem ser prioridades de terceira ordem no nosso mundo, a seguir aos ecossistemas e à saúde.

Se destruímos o nosso habitat e nos matamos ou ficamos gravemente doentes no processo, de que serve o crescimento? É mais uma questão de racionalidade do que de ideologia.

Também defende que os indicadores tradicionais, como o PIB, já não são os mais indicados para avaliar as economias. Mas essas não são as ferramentas mais precisas das que já existem?

Esses são os indicadores mais precisos para medir a produção de bens e serviços, que podem ser negociados em mercados com valor monetário e preço. Mas essa é uma parte muito pequena das interações humanas, daquilo que os humanos querem e precisam.

"A crise de Covid-19 torna as coisas ainda mais claras, basta estarmos dispostos a abrir os olhos: as realidades económicas devem ser prioridades de terceira ordem no nosso mundo, a seguir aos ecossistemas e à saúde"

A maioria das transações não ocorre nos mercados e não tem preço. As coisas mais preciosas também não têm preço e, mais importante ainda, não devem ter um preço. Consideremos transações de confiança, que são tão importantes hoje. E, é claro, a biodiversidade, cuja destruição e mercantilização causaram a actual crise pandémica.

No nosso século ambiental, as realidades económicas, no sentido do PIB e do crescimento, estão a tornar-se marginais. É claro que são necessários empregos e salários, mas o crescimento mede os dois muito mal, como provo no livro, através de dados.

Acredita que esta pandemia vai mudar o mundo? Ou já estava num caminho de mudança?

Ela está a mudar o mundo, mas também, infelizmente, a "mudar a mudança" que estava a decorrer em termos de transição ecológica, o que nos traz de volta ao ponto em que as pessoas têm um argumento fácil quando afirmam, falsamente, que o crescimento deve vir primeiro - porque há muita perda de emprego e sofrimento social, devido à recessão económica.

É claro que existe sofrimento e deve ser resolvido, mas não com mais crescimento, que beneficia uma minoria minúscula e prejudica a grande maioria das pessoas, porque é alimentado pela destruição ambiental, com mais tráfego aéreo, mais consumo de combustíveis fósseis, mais emissões de CO2 e agravamento das alterações climáticas.

Ainda assim, esta pode ser uma oportunidade? Qual deve ser a resposta a esta crise?

A regra de ouro, agora, deve ser reinventar a economia, não reiniciá-la. Isso significa que todas as medidas de recuperação devem ser avaliadas, não apenas do ponto de vista do presente, mas também do futuro.

"Estou cheio de esperança: vejo mentes em mudança a uma velocidade sem precedentes"

Ou seja, nem uma tonelada a mais de combustíveis fósseis, que estão a envenenar a nossa saúde e a destruir a nossa casa, para a Biosfera! Estamos longe deste objetivo, com o plano de recuperação europeu recém-alcançado.

No meu livro deixo uma pergunta a todos os líderes europeus: 750 bilhões de euros para quem? Para que futuro?

O que é necessário para uma melhor transição? O que falta?

São necessárias ideias, interesses e instituições.

Devemos mudar a narrativa do crescimento para o bem-estar, devemos formar novas coligações socio-ecológicas de cidadãos para pressionar os políticos e, finalmente, devemos procurar o bem-estar humano sempre que votamos um orçamento em qualquer lugar: comunidade, cidade, Estado-nação, Europa.

Como vê o futuro pós-Covid?

Estou cheio de esperança: vejo mentes em mudança a uma velocidade sem precedentes. O futuro já começou, mas ainda não o vemos.

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