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Entrevista Renascença

Vhils: Vivemos “um ciclo de quase depressão coletiva que me assusta bastante!”

23 jun, 2023 - 18:45 • Maria João Costa

Recebido pelo Papa Francisco esta semana no Vaticano, Vhils é um dos artistas cujo trabalho está exposto na exposição Urban (R)evolution patente na Cordoaria Nacional, em Lisboa. À Renascença, o artista que elege como preocupações questões como o “envelhecimento da população”, ou a sustentabilidade do Estado social defende um papel positivo da arte.

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É o artista que faz explodir das paredes rostos da memória, mas é num tom calmo que fala. Alexandre Farto, o artista de Arte Urbana que assina com o nome Vhils defende, em entrevista à Renascença, que pretende com o seu trabalho ter “um impacto positivo”.

Ele que se confessa assustado com o clima de “depressão coletiva” que estamos a viver depois da pandemia, prefere uma arte que “cria pontos de encontro entre pessoas”. Na semana em que esteve no Vaticano, entre os sete criadores portugueses que foram convidados pelo Papa Francisco, Vhils diz que “a arte tem muitas vezes o potencial de cortar barreiras”.

“A arte tem esse poder de nos relacionar, ou fazer pensar sobre algo diferente”, diz o artista que tem o seu trabalho na exposição Urban (R)evolution na Cordoaria Nacional, em Lisboa, entre os principais nomes artísticos da Arte Urbana. À Renascença, Vhils revela nesta entrevista a sua preocupação com questões da atualidade como a habitação, a sustentabilidade do Estado social ou a educação.

Esta exposição na Cordoaria Nacional para a qual contribuiu junta muitos artistas que o influenciaram a ser aquilo que é hoje?

Nós somos compostos por tudo por tudo aquilo que nos influencia e nos faz seguir o nosso caminho, mas sem dúvida que uma grande parte daquilo que me influenciou artisticamente está presente nesta exposição.

Toda a cultura ligada ao Hip Hop, e às suas várias vertentes, foi sempre algo que esteve muito presente na zona do Seixal, e da Arrentela onde eu cresci. De alguma forma, alguns artistas que estão aqui que estiveram envolvidos com movimentos nos anos 70 em Nova Iorque estão aqui presentes, por isso, fiquei muito contente com o convite.

O Vhils colaborou na construção da exposição.

Houve aqui uma ponte que foi feita com a galeria na qual também tentei ajudar e contribuir, mas essencialmente o trabalho foi maioritariamente de curadoria por parte da Pauline Foessel e o Pedro Alonzo que já trabalham sobre estes temas e esta área há muito tempo.

Todo o processo do excesso de turismo e de gentrificação cria muitas tensões.

Parece um pouco contraditório quando a arte que habitualmente vemos na rua de repente salta para dentro de um espaço de exposição mais convencional. Aqui vemos peças criadas de propósito para a exposição. É a rua a vir para dentro de muros?

De alguma forma dá espaço ao universo de cada artista, sendo que está a ser contextualizado pelo trabalho de mestria por parte da Martha [Cooper] que acompanhou o movimento desde os anos 1970 com o Keith Haring, o Leo Quiñones, Futura, com [Jean-Michel] Basquiat, até aos dias de hoje, em que ela tem viajado pelo mundo durante todo este tempo.

Fotografou também o seu trabalho, como vemos aqui nesta fotografia em Rabo de Peixe, nos Açores?

Sim, fotografou o meu trabalho, o dos Gémeos, do Obey, do [Felipe] Pantone, do Add Fuel, ou seja, é super interessante perceber que a Martha [Cooper] é uma pessoa transversal no movimento e que documentou desde os seus primórdios até aos dias de hoje.

Essa documentação é muito importante para a fixação da imagem de peças que pela sua natureza são efémeras, como por exemplo os Grafitis?

São efémeras. A natureza do trabalho no espaço público ilegal, muitas vezes, é efémera e às vezes também no legal. Nesse sentido, quando trabalhamos nos espaços públicos há uma intenção e, se calhar, uma limitação temporal para ele existir.

Quando se trabalha num espaço interior como aqui, permite-nos fazer uma reflexão mais aprofundada sobre o trabalho de cada um dos artistas, porque cada um tem a sua luta e as suas reflexões, mas também ajuda a contextualizá-los como um movimento.

Apesar de surgir e haver em muitas cidades do mundo, o grafiti, em particular vem de Nova Iorque, mas o movimento da Arte Urbana que surgiu mais no final dos anos 1990, 2000 foi um movimento também com a ajuda do desenvolvimento tecnológico, e surgiu em 50 cidades ao mesmo tempo, ou seja, é o primeiro movimento artístico que surge todo ele ao mesmo tempo.

Isso é muito único na História dos vários movimentos artísticos. E ao trazê-lo aqui para dentro, conseguimos ter um bocadinho essa contextualização e essa reflexão que, a meu ver, está muito bem contextualizada.

Mostra a especificidade de cada um dos artistas, mas também do seu background, da sua cidade e da sua luta. Cada artista tem o seu universo, mas depois conseguimos encontrar uma unicidade.

Acho que, no tempo em que vivemos, no mundo em que está neste ponto de cisão e de protecionismo, de se fechar nele próprio, para mim dá-me esperança perceber que é possível entendermo-nos e também entendermos as nossas lutas que são comuns.

Hoje em dia estamos numa situação, que não é só em Lisboa, mas é uma questão mundial, em que o próprio modelo empurra-nos para uma situação de muitas tensões no espaço urbano.

O seu trabalho nesta exposição é um mural com vários rostos. Que história criou?

É um bocadinho sobre esta reflexão sobre o facto de o mundo estar globalizado a um extremo. As corporações estão globalizadas a um extremo tal, que muitas vezes pensamos que nossa luta local, ou a nossa diversidade local é provocada por outra pessoa que não nós. Isso cria a divisão entre o eu e o outro.

O que tentei fazer no projeto, foi trazer 3 histórias, 3 cidades, uma em Oeiras, outra em Xangai e Nova Iorque. É contar a história de 3 pessoas que documentei nessas cidades e que depois estão confrontadas com uma cidade, em frente. É essa reflexão. Seja em que sítio estejam no mundo, muitas das rotinas, e das lutas pessoais, as rendas, a questão da habitação, da educação, dos transportes, ou seja, apesar de termos background e histórias diferentes, línguas diferentes, temos muitas batalhas do dia-a-dia nos centros urbanos que são muito similares.

O facto de estarmos muito isolados na nossa luta, não nos permite ver que temos muito em comum com a luta do outro lado do mundo. É nesse sentido que tentei aproximar 3 histórias, 3 pontos de geográficos onde trabalhei com alguma consistência, e algum tempo, e trazer esta reflexão e, de alguma forma, pontes entre essas lutas.

Questões como a habitação, que é uma questão muito premente hoje em dia, ou a gentrificação das cidades são matéria-prima artística para si? É necessário os artistas trazerem para rua esses temas?

Há vários artistas que trabalham sobre esse tema. Acho que o Januário, Mais Menos, trabalha uma parte. A Wasted Rita também. Acho que há artistas que trabalham esse tema, mesmo sem estarem a trabalhar sobre esse tema, porque vêm desse contexto de luta e de sobrevivência no contexto urbano.

Sem dúvida que é um desafio. Acho que é impressionante quando vemos documentários em que uma das críticas que havia à União Soviética era, que as pessoas eram forçadas a viver umas com as outras, de famílias diferentes e hoje em dia estamos numa situação, que não é só em Lisboa, mas é uma questão mundial, em que o próprio modelo empurra-nos para uma situação de muitas tensões no espaço urbano.

Depois todo o processo do excesso de turismo e de gentrificação que cria muitas tensões. Como é óbvio, há sempre dois lados da moeda. Há várias questões que se podem levantar. A situação que se atravessava há 10 ou há 20 anos em Lisboa, em particular não era a melhor.

Mas, se calhar o modelo e o tempo para refletir sobre esse modelo de como é que se gere essas necessidades básicas que à partir o Estado deve assegurar à população, eu acho que ainda estamos à procura disso.

O trabalho fala sobre isso. Muitos do trabalho que eu faço, tenho consciência que pode ter o impacto adverso, também de puxar demasiado a atenção para sítios e isso é uma questão que muitas vezes também entro em conflito pessoal. Tenho de ter alguma consciência sobre isso!

Mas, muito trabalho que fui fazendo tem uma relação próxima com a comunidade e tenta trazer a história e a atenção para essas tensões que existem nesses locais, como muitas vezes também tentar trazer as histórias que já estão esquecidas dessas cidades e desses muros.

Ao cravarmos a parede estamos a levar às entranhas esses edifícios, e o que esteve presente naquele local há 50 anos atrás. Ou seja, eu tento de alguma forma descascar a superfície dessas paredes e trazer histórias que são relevantes e que acho importante nos relembrarmos. É um cliché o que vou dizer, mas quem esquece a História está condenado a repeti-la, e acho que hoje em dia, cada vez mais.

Estamos numa situação em que há um grande descontentamento

Estamos hoje a viver isso?

Sinto que estamos numa situação que é visível a todos. Estamos numa situação em que há um grande descontentamento. Não tentando criticar, mas acho que da parte do sensacionalismo muitas vezes acontece o exacerbar das redes sociais e dos meios de comunicação que estão sempre a competir pela atenção. Quanto mais somos estimulados, mais temos que chocar para chamar a atenção e tudo isso cria um ciclo de quase depressão coletiva que me assusta bastante!

Ainda para mais, com todas as situações da pandemia, acho que estamos num momento em que as coisas estão em mudança. Há muitas questões que se estão a levantar, mesmo pelo envelhecimento da população, as novas gerações, como é que vão ter um Estado Social? Como é que ele vai ser sustentável? Como é que não vai? Ou seja, há muitas questões que estão a surgir que muitas vezes refletem-se no trabalho que tento fazer.

Mesmo que não seja óbvio, e não é essa a minha intenção, mas pelo menos que o meu trabalho tenha um impacto positivo nos contextos onde trabalho.

Prefere esse lado do impacto positivo? Tenta ajudar a contrariar essa ideia de depressão generalizada?

Sim! Acho que a arte tem muitas vezes esse potencial de cortar entre barreiras de classes e de criar pontos de encontro entre pessoas. Criando pontes de reflexão. Quando se crava o rosto de alguém que é invisível na cidade e, de repente, as pessoas olham e falam e perguntam, humaniza o espaço público.

A arte tem esse poder de nos relacionar ou fazer pensar sobre algo diferente. Acho que, principalmente, nestes momentos em que estamos nesta procura, ou nestas questões todas que se estão a levantar, é cada vez mais importante isso acontecer.

Tendo vindo da margem sul do Tejo, como é que olha, em 2023, para o seu espaço de origem em termos artísticos? O que hoje a realidade social dessa geografia? Continua a ter a mesma matéria para criar?

Continua! Mas não acredito na romantização dessas tensões. A margem sul tem uma história muito rica e teve claro, um declínio na parte das indústrias que lá existiam. Os meus pais vieram para a margem sul do Alentejo profundo, migraram. Foi aquela geração pós 25 de Abril que lhes permitiu ter acesso à cidade.

Tenho um olhar crítico em relação a todas essas tensões que acontecem no betão e todas essas questões, mas ao mesmo tempo também permitiu que houvesse uma escada social para os meus pais, como para mim ao ser exposto a todo o mundo que hoje me permite ser artista que de outra maneira não teria.

Acho que muitas vezes, neste caminho da romantização da periferia e dos subúrbios, que têm muitas tensões e muitos problemas, se esquece que há muitas conquistas que também foram feitas pelo coletivo, pelo país, pela sociedade, mas também pelo Estado.

Muitas vezes tenta-se diminuir o papel do Estado. Quando falo que por ano são feitas 700 mil operações pelo Serviço Nacional de Saúde, e a bem, também se falam dos erros que acontecem, mas isso representa 0.1%; mas a perceção que nós temos, por alto, do público é que tudo corre mal.

É esta ambivalência muitas vezes de desequilíbrio das reflexões que queria, a meu ver, este desalento que muitas vezes me assusta.

Voltando à questão, a margem Sul foi para mim a minha base de trabalho, é um sítio muito particular, muito especial, mas que também tem as suas tensões, como qualquer outro sítio e as suas dificuldades, mas que ainda é matéria.

A minha família vive toda lá. Ao mesmo tempo houve espaço, para que novas vertentes se começassem a criar. O Hip Hop foi uma parte muito importante da minha educação. A minha relação com a escola não era melhor (risos), mas de alguma forma deu-me uma escola, e um caminho. Criou um sentido comunidade de espírito e de entreajuda que vem de trabalhar na periferia.

Não trabalha sozinho. Muitas das suas criações implicam uma equipa, mas há um lado criativo que é sempre um ato isolado? Como é esse laboratório de criação?

Depende muito dos projetos. Eu desde cedo percebi que tenho ideias e tenho vontade de fazer coisas e de ter algum impacto. Muitas vezes ser só um é uma limitação. Chegar a um projeto em que fazemos uma parede, fazermos uma entrevista a uma pessoa, temos um impacto limitado.

Se conseguimos ter uma equipa que trabalha arduamente e conseguimos fazer sete intervenções, de repente, o trabalho começa a ganhar uma escala que consegue ter um impacto muito mais positivo, não só para a comunidade, como para as pessoas com que trabalhamos, como para nós enquanto equipa.

Há uma parte que é muito de pensamento e de reflexão individual, mas depois também há um trabalho de equipa que é muito forte no atelier. Depois, a galeria, o festival, todas as outras disciplinas é um trabalho de criar espaço, oportunidades e visibilidade para esta nova geração de artistas, tanto nacionais, como internacionais, no qual tento sistematicamente contribuir para aquele movimento que também me deu muito

O lado legal e ilegal do trabalho de intervenção na rua continua a motivá-lo?

O bom de poder trabalhar ilegalmente é que não precisamos de usar o mesmo nome com que trabalhamos legalmente. Isso não quer dizer nada!

Para mim o que é super interessante e esta exposição em específico, que é a particularidade de Lisboa e de Portugal na sua relação com o espaço público.

Apesar de acharmos que o grafiti é uma coisa que vem de fora e que surgiu meramente nos anos 1990, com o movimento ligado ao Hip-Hop, há toda uma raiz e um trabalho que foi feito desde os moralistas dos anos 1970, ao Abel Manta, ou seja, há todo um historial de intervenção no espaço público, de riqueza visual no espaço público, que é muito nosso.

Quando isso se encontra, todos estes universos que surgiram de reação e de revolta em relação às condições das cidades onde surgiam, para mim o grafiti foi uma coisa muito natural, porque eu lembro que ser criança e ver esses morais já queimado de sol e completamente esquecidos.

O meu pai tinha uma relação com jornais de parede e com a UDP trotskista. Cresci muito nesse ambiente que depois se encontrou com a cultura Hip-Hop, que depois se encontrou o grafiti e depois com a Arte Urbana.

Para mim foi muito natural este percurso e deixa-me muito contente conseguir ver esta exposição onde se conseguem encontrar aqui essas pontes de contatos e conseguimos criar aqui uma narrativa e uma história que contextualiza, não só o movimento, mas Lisboa neste movimento.

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