Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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Resistiremos

03 abr, 2020 • Opinião de Graça Franco


“E nós os velhos, se for preciso, ao chegar ao hospital, oferecemos o nosso ventilador ao homem que tem mulher e filhos.” Di-lo com a emoção, e a certeza, de quem ama a vida e sabe o que lhe pode acontecer. Eanes cumpre. Sempre cumpriu.

Ouço o hino que os mais conhecidos artistas espanhóis gravaram para angariar fundos para a Caritas contra a pandemia. A canção, adoptada como hino oficial do isolamento, lançada pela Cadena Cope, e cantada às janelas. Vou lembrando o refrão: “Resistirei para continuar a viver/vou suportar os golpes e jamais me renderei; e mesmo que os meus sonhos se desfaçam em pedaços/resistirei, resistirei."

Mistura-se com ele a voz grave do general: “E nós os velhos, se for preciso, ao chegar ao hospital, oferecemos o nosso ventilador ao homem que tem mulher e filhos. ”Di-lo com a emoção, e a certeza, de quem ama a vida e sabe o que lhe pode acontecer. Eanes cumpre. Sempre cumpriu.

Ouvi-lo sabendo que tem uma mulher (que adora e sempre o acompanhou durante a batalha) e filhos e netos e a sua marca foi sempre “resistir” causa uma comoção profunda. Ele é apenas o homem “velho” (o “nós”de quem fala). O que o distingue é a sabedoria de considerar que nesse gesto, com os seus 85 anos, dará por finda a sua missão. Essa que ele sempre soube que podia acabar a dar a própria vida.

Comove-se. Comove-nos. Porque o diz com coragem de quem sabe o que é o medo. Não há heróis sem medo. Esses são loucos. O general não é louco como alguns jovens. É sábio como os velhos.

É esta a imagem que sempre tive dele. De um soldado que não desiste e resiste. Até ao mais básico dos instintos, o da sobrevivência. Não se perde com a idade. Lutar por si, para servir os outros.

Sinto orgulho num país que tem soldados destes. Que moldam generais assim. Tenho, por ele, a admiração e gratidão profunda de quem cresceu a ouvi-lo, aqui e ali, nos piores momentos da nossa vida colectiva. Um general que, quando muitos se ficavam pelo “não sei por onde vou…”, soube dizer a tempo, como o poeta, “sei que não vou por aí”. Todos lhe estamos gratos por essa certeza. Poupou-nos a um banho de sangue e travou uma segunda ditadura.

Espero ouvir a Eanes ainda muitas outras frases. Muitas outras chamadas de atenção igualmente importantes. Espero que aos 90 e muitos, como Adriano Moreira, ainda tenha a mesma lucidez para nos dizer que as crises se ultrapassam e que a cada uma delas há que dizer “resistirei!”, mesmo quando “os nossos sonhos nos parecem feitos em pedaços”, como cantam às janelas os espanhois. Sabendo que é a fibra da resistência que os nossos filhos aprenderão connosco. Isso e a capacidade de, um dia, se for preciso, verem que somos capazes de dar a nossa vida com passado pelo futuro da deles.

Mas se Eanes, por desgraça, nunca nos viesse a dizer mais nada, já teria dito o mais importante. Nós, mesmo os de meia-idade, sabemos que no meio da guerra é preciso pensar nos camaradas de armas e, se for preciso, chegados ao hospital, também nós devemos oferecer o nosso ventilador à mulher ao nosso lado que tantas vezes nem ajuda tem de um marido para criar os filhos pequenos. Os nossos, mesmo adolescentes, já sabem pensar e já terão herdado os valores essenciais.

A maior prova de amor é afinal a de dar a vida pelos amigos . Foi isso que fez, por nós, um Nazareno desconhecido de quem estamos, por estes dias, a recordar a morte. E fê-lo por nós (amigos e inimigos) quando nos viu arrastando-nos, num mundo sem sentido e sem fim, meios-mortos . É isso que celebramos na Páscoa. Lembram-se?

Comentários
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  • mewtwoand
    04 abr, 2020 21:27
    A velhice é um aborrecimento triste. Por vezes fica-se com as certezas de uma senilidade que não gostaríamos de ver nem ouvir.
  • maria luz
    04 abr, 2020 lisboa 00:49
    ....Eanes é um dos pouquíssimos portugueses que ainda põe a honra acima de outros valores!!