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Entrevista

​Jonathan Coe trocou o “terrível outono” britânico por Cascais e escreveu um livro

27 dez, 2019 - 08:55 • Maria João Costa

Em entrevista à Renascença, o autor de “O Coração de Inglaterra” fala sobre o Brexit, o pano de fundo do seu livro, e sobre a nova obra que está a escrever na residência literária em Portugal.

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Nem todos os ingleses votaram a favor do Brexit por razões xenófobas ou nostálgicas, diz Jonathan Coe. O escritor britânico que esteve dois meses em Cascais, numa residência literária, escreveu um romance passado na Inglaterra profunda, afetada pela política do Brexit.

“O Coração de Inglaterra” tem levado o autor, que votou contra a saída de Inglaterra da União Europeia, a perceber o quanto a Europa não quer ficar sem Inglaterra. Em entrevista à Renascença, no Festival Tinto no Branco, em Viseu, Jonathan Coe fala da experiência em Cascais. Veio com uma folhas escritas para a residência literária. Deitou fora tudo e já está a escrever o novo livro nesta estadia portuguesa. Entre passeios e conversas com portugueses, Coe desfrutou do bom outono português e voltou a andar de bicicleta.

O seu novo livro em português chama-se “O Coração de Inglaterra”. O título original é diferente, chama-se “Middle England”. Tem um significado distinto. Ficou confortável com o título português?

Os títulos são difíceis de traduzir. É algo que aprendi ao longo dos tempos. Um título que parece muito direto e cativante na tua língua, pode ser impossível de traduzir para outra língua. Os italianos mantiveram o título inglês "Middle England", os holandeses chamaram-se "Pequena Inglaterra" - o que é bastante diferente. Os franceses, os espanhóis e os portugueses chamaram-lhe "O Coração de Inglaterra". Eu gosto deste título, embora não signifique o mesmo, porque “Middle England” não se refere apenas a uma zona geográfica, mas também a certas atitudes, um pouco conservadoras, provincianas, de classe média. “O Coração de Inglaterra” é um título mais emocional, mas também tem sentido duplo, pode referir-se a zona geográfica central onde se passa o livro, ou pode referir-se ao estado emocional do país. É um sentido diferente, mas igualmente bom. O que gosto ao chamar-se "O Coração de Inglaterra" é que resume uma viagem à história emocional de Inglaterra nos últimos oito anos e foi sobre isso a que me propus escrever.

Em “O Coração de Inglaterra” cruzam-se várias histórias muito pessoais, de vidas afetadas pelo Brexit. Há uma personagem, o Benjamin, que já é seu familiar. Vem de outros livros seus.

Há quase 20 anos escrevi um livro chamado “O Rotters Club”, que contava a história de Inglaterra nos anos 70 através das histórias de várias famílias, em Birmingham, naquela altura. Dei especialmente o olhar dos adolescentes. Normalmente, quando acabo um livro e ponho um ponto final, os personagens evaporam-se quase imediatamente da minha imaginação. Fico sem interesse em voltar a escrever sobre eles ou forma do o fazer. Mas como estas famílias e em particular o Benjamin e a sua família eram-me tão próximos, nunca me saíram da cabeça.

Escrevi um segundo livro com eles, chamado "O Círculo Fechado". Pensei que era isso, tinha acabado com eles, mas 10 anos depois de acabar esse livro, comecei a pensar sobre eles outra vez e que gostava de voltar a escrever sobre eles. Claro que nos dias de hoje teria de ser sobre o Brexit, inevitavelmente. Não foi um tema que escolhesse, mas o Brexit aconteceu enquanto estava a escrever e não tive escolha, se não falar sobre ele!

E o que pensa sobre o Brexit?

Eu votei para permanecer na União Europeia e gostava que Inglaterra permanecesse na União Europeia, mas isso parece cada vez mais inverosímil. Mas não queria que este fosse um livro sobre os que querem ficar, não queria que fosse um livro de propaganda.

Além disso, para mim, como escritor, o que seria interessante era tentar colocar a visão de personagens que pensam exatamente o contrário. Não é um livro que dá uma opinião, mas sim um livro que reflete uma diversidade de opiniões que há em Inglaterra e que olha para as origens do Brexit da forma mais complexa possível.

Sabe, 17,4 milhões de pessoas votaram para sair da União Europeia e nem todas votaram pela mesma razão. Não são todos xenófobos, nostálgicos ou construtores de impérios. Votaram por várias razões, algumas delas são muito irracionais e não têm a ver com a União europeia. Foi isso que eu quis expor, não o meu ponto de vista, mas a complexidade da questão.

Acha que deveria haver um novo referendo?

Aquilo que nos atinge no debate sobre o Brexit em Inglaterra é que poucas pessoas mudaram de ideias desde 2016. Claro que o Brexit ainda não aconteceu, mas os efeitos económicos já estão a ser adversos. Quando acontecem de forma gradual, as pessoas tendem a não notar. A libra já perdeu um quarto do seu valor desde 2016. Ninguém fala ou pensa nisso, apenas aceitamos as coisas como são. É uma loucura.

Acho que um novo referendo poderia ter um resultado muito próximo novamente. Não sou um especialista, mas suspeito que 52% quereria ficar e 48% sair. Ou seja, teríamos a mesma margem, mas desta vez ao contrário.

No entanto, acho que não resolveria nada, porque iríamos ficar, outra vez, a discutir sobre a validade e autoridade do segundo resultado. Não há uma boa solução para a situação em que nos metemos. Mas, talvez, um segundo referendo seja a melhor das piores soluções. No curto prazo não estou nada otimista quanto à situação britânica.

Como é que perspetiva a União Europeia sem Inglaterra?

De um ponto de vista, acho que a União Europeia a 27 vai ficar muito contente por ver os ingleses a saírem por uns tempos, para que nós possamos resolver os nossos desentendimentos internos e depois regressarmos dentro de uma ou duas décadas, como um Estado-membro mais entusiasmado.

Mas também fico muito espantado, quando ando por vários países a apresentar o meu livro e a conhecer leitores, porque vejo que os outros países europeus estão tristes com a saída dos britânicos.

Nós não soubemos apreciar isto, mas éramos vistos como uma presença e influência importante, estáveis, racionais e pragmáticos. Contudo, afinal não éramos tão estáveis, racionais e pragmáticos como todos pensavam que éramos.

O sentimento com que fico, ao contactar com outros europeus, é que sentem que a Europa vai ficar mais fraca e pior sem a presença britânica.

Sente que é um escritor comprometido com o seu tempo? Os seus livros tocam muitas questões políticas atuais.

Toda a minha família e as pessoas que me conheceram na escola acham bizarro que eu tenha desenvolvido esta reputação como escritor político, porque não tinha qualquer interesse na política quando era criança. Tal como a minha personagem, o Benjamim do livro "O Rotters Club" e de "O Coração de Inglaterra", eu era uma pessoa sonhadora, com a cabeça nas nuvens, mais interessado em música, filmes e livros do que em política. Mas como muitos escritores da minha geração, fui muito incentivado e politizado pelos anos 80 com os anos da senhora Thatcher. Antes disso, publiquei três romances que não tiveram grande sucesso.

Depois percebi que havia alguma coisa nesta mistura entre as histórias políticas e pessoais que resultava para mim como escritor. Dava aos meus livros uma certa energia e dimensão que eles não tinham antes. Eu não sou mais interessado ou comprometido com a política do que os outros.

Eu leio jornais, vejo as notícias na televisão, falo sobre a política com os meus amigos, mas não sou maluco ou obcecado com a política. Até gostava de escrever sobre outra coisa, mas acho que desde os anos 80 que tenho sido uma pessoa e um escritor muito consciente de como a política se infiltra sempre na nossa vida quotidiana e isso tem sido um dos meus grandes temas como escritor.

Como é que foi esta experiência da residência literária em Cascais, a convite da fundação D. Luís I?

O convite surgiu na altura perfeita. Estava a começar um livro, tinha escrito três páginas antes de aqui chegar. A primeira coisa que fiz mal cheguei a Cascais foi lê-las e deitá-las fora, rasgá-las e começar tudo de novo.

Foi um grande privilégio, porque não só vivi em Portugal durante dois meses, familiarizei-me mais com a cultura e o país, mas também fui deixado à vontade para escrever e pensar. Tive muito silêncio e tempo para a contemplação. Estou já a escrever um conto que não é nada político, que acontece no passado, e escrevi metade enquanto aqui estive, por isso, excedi todas as minhas expetativas.

Já escreveu música, tem mesmo um disco seu numa plataforma digital. Escreve normalmente a ouvir música?

Deram-me um escritório muito simpático perto do hotel onde fiquei. Chegava lá todas as manhãs pelas 9h30 e sentava-me à secretária. Às vezes, quando fazes isso já trazes as palavras na tua cabeça. Talvez tenhas pensado nelas na noite anterior e estás preparado para escrever, e avanças. Quando isso acontece nem ouço músico. Mas se não sei o que vou escrever e sei que vou ter de estar sentado por duas, três ou quatro horas a pensar na próxima cena ou no capítulo seguinte, então ponho música para me dar o ambiente para escrever o que irei escrever.

Que ideia leva de Portugal?

O tempo é muito agradável, em comparação com o terrível outono de Inglaterra. Adorei a paisagem da costa de Cascais, ir até à praia do Guincho e à Duna da Crismina. Voltei a andar de bicicleta, coisa que não fazia há anos! Alugava uma bicicleta, sempre que podia, e isso foi ótimo. Conheci melhor os portugueses, as afinidades que têm com os britânicos que acho que são muito profundas. Tive o privilégio de conhecer, maioritariamente, escritores, críticos, editores, e lidar com pessoas interessantes. Eles contaram-me muito, sabem muito sobre a sua cultura e história e partilham isso contigo. Também li muitos livros sobre Portugal, mas tive sobretudo conversas muito interessantes.

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