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Livro

Filipe Avillez: “Sinto que em Portugal está a crescer o interesse pela pureza do futebol"

17 out, 2019 - 14:30 • Carlos Calaveiras

Jornalista escreveu o livro “Rumo ao Jamor”, onde acompanha várias equipas até ao estádio nacional.

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Filipe Avillez, jornalista da Renascença, escreveu um livro sobre a Taça de Portugal. Acompanhou uma equipa por eliminatória, começando por uma que está sediada a 1.600 quilómetros do Jamor, e terminando no dia da festa, no Estádio Nacional.

O livro “Rumo ao Jamor” é apresentado esta quarta-feira na sede do Casa Pia Atlético Clube, precisamente uma das formações visitadas durante o percurso até à final.

Há várias competições em Portugal. Porquê um livro sobre a Taça de Portugal?

A Taça é especial. Todos os adeptos sentem isso. Claro que o campeonato é, para quem joga na Primeira Liga, o principal objetivo. Mas, na realidade, sabe-se que essa disputa está reduzida a três clubes, ou mesmo dois.

Na Taça, para além de haver a possibilidade de haver clubes de ligas mais baixas a jogar contra os de topo, existe sempre uma maior dúvida em relação ao vencedor. Nos últimos 20 anos, só um clube para além dos três grandes ganhou a liga. Já com a Taça, tivemos vários casos de clubes mais modestos a ganhar. Isso tudo contribui para o romantismo da prova e os adeptos sentem-no. Todos sonham com o Jamor e a verdade é que a história mostra que para quase todos esse é um sonho possível, mesmo que os grandes acabem por ganhar a maior parte das vezes, como aconteceu na época que eu capto no livro.

Foi também para fugir das polémicas dos “grandes” e tentar recuperar o futebol mais “puro”?

Foi, sim. Sinto que em Portugal está a crescer o interesse pela pureza do futebol. É muito fácil dizer que se é contra o futebol moderno, mas quem só vai ao Estádio da Luz, do Dragão ou de Alvalade o ano inteiro nunca vai sentir outra coisa que não o futebol moderno, onde é tratado como cliente. A Taça, sobretudo quando os clubes mais pequenos recebem os grandes no seu estádio, e não num emprestado, permite isso. Mas em lado nenhum se sente tanto como num jogo que é mesmo entre dois clubes mais pequenos. Durante este projeto tive a sorte de ir ver muitos jogos desses, jogos em que a qualidade do futebol era o menos importante, o que interessava era o ambiente nas bancadas, a festa e a diversão.

O livro chama-se “Rumo ao Jamor”. Qual é a ideia base?

Existe um estilo de livro bastante popular em Inglaterra que é o “Road to Wembley”. Julgo que em Portugal é a primeira vez que se faz algo do género.

Comecei por localizar o clube participante na Taça geograficamente mais distante do Jamor. Eram dois, o Graciosa Futebol Clube e o Marítimo da Graciosa, que são vizinhos e rivais de Santa Cruz da Graciosa, nos Açores. O GFC jogava no continente, contra o Casa Pia e o Marítimo jogava nos Açores, por isso fui ver os primeiros ao Pina Manique. A partir daí segui um clube diferente em cada eliminatória, até ao Jamor. Optei por seguir clubes mais pequenos, pelo menos até às meias-finais, altura em que isso se tornou impossível.

Termino com a final, no Jamor mesmo. Aí, o foco não é um clube, mas sim o fenómeno do Jamor e da festa da final da Taça.

Resumindo, trata-se da caminhada até ao Jamor, a começar pela primeira eliminatória da Taça, que muitas vezes passa despercebida porque os “grandes” ainda não estão presentes.

A viagem começa a 1.600 kms do Estádio Nacional com um clube dos Açores e, a partir daí, escolhes um clube por eliminatória. É isso?

Exatamente. A escolha do Graciosa obedeceu a esse critério. A partir daí, a minha regra era seguir sempre o vencedor, ou o adversário do vencedor, seguindo uma linha até ao Jamor. Mas tinha para mim muito claro que o livro não deveria ficar refém desse princípio e se fosse preciso quebrar a regra para ir ver outro clube mais interessante, assim faria.

Como o Casa Pia derrotou o Graciosa, foquei o Casa Pia na segunda eliminatória. Trata-se de um clube único, por não ser associado a uma localidade e sim a uma instituição. Dá-se ainda a curiosidade de os adeptos do Casa Pia, que são na esmagadora maioria ex-alunos, sentirem que são os verdadeiros guardiães da identidade da instituição, porque dizem que desde que acabou o internato a Casa Pia perdeu a mística.

Como o Casa Pia venceu outra vez, no jogo seguinte acompanhei o seu próximo adversário, o Angrense, um dos principais clubes dos Açores, que tem também uma história muito curiosa.

O Casa Pia voltou a vencer e saiu-lhe o Paços de Ferreira, fora. Aí decidi quebrar a regra, porque já conhecia Paços de Ferreira e queria ir a um estádio diferente. Nessa quarta eliminatória a sensação era o Vale Formoso, das Furnas, em São Miguel, que era o clube de divisão mais baixa ainda em prova. O caminho do Vale Formoso tinha sido incrível. Derrotado na primeira eliminatória, foi repescado e depois perdeu com o Leiria por 3-0, mas o Leiria acabou por ser eliminado na secretaria. Os açorianos venceram a terceira eliminatória num jogo épico em casa, debaixo de chuva, no prolongamento e depois saiu-lhes uma viagem a Tondela. Por um lado não queria acompanhar uma terceira equipa dos Açores em quatro eliminatórias, mas também não queria faltar àquele jogo, por isso foquei o Tondela.

Na quinta-eliminatória ,optei pelo Leixões, próximo adversário do Tondela, que é um clube “enorme” entre os pequenos e com uma massa associativa fantástica. Foi um privilégio estar no Estádio do Mar e ouvir os adeptos mais antigos a falar da única vitória do clube na final da Taça, que foi contra o FC Porto, em pleno Estádio das Antas.

Como queria muito poder contar também a fantástica aventura que foi a vitória do Desportivo das Aves na época anterior, e o Aves ainda estava em prova, fui lá na sexta eliminatória para o jogo com o Braga. Nesse capítulo, vou intercalando a história desse jogo e das conversas que tive com os adeptos com a história da Taça que eles ganharam, contada pelos próprios.

Nas meias-finais não havia como fugir ao dérbi Benfica-Sporting e, depois, foi a final, no Jamor, que é sempre um dos momentos altos do ano.

Passaste por clubes históricos e típicos. Outros, completamente desconhecidos para o público em geral. Alguma(s) história(s) particular que mais te tenha marcado?

Muitas. Desconhecia, por exemplo, a importância do Casa Pia na história do futebol em Portugal. Não tanto do clube, mas sobretudo dos casapianos. Sabemos que os fundadores do Benfica eram na maioria casapianos, mas a influência vai muito para além disso.

A vitória do Leixões em 61, contra o Porto, e toda a dificuldade que é viver à sombra desse clube, marcou-me bastante também.

O que mais me marcou no Aves e no Tondela foram os adeptos. É raro conhecer adeptos de clubes pequenos que não sofram de biclubite. Muitos apoiam o clube da terra, mas também um dos grandes. Eu tive o privilégio de conviver com adeptos que são 100% do seu clube da terra e que o vivem com a mesma paixão com que muitos vivem os grandes. Curiosamente, muitos deles disseram-me que por mais que gostem de estar na Primeira Liga, sentem saudades do futebol mais popular das ligas mais baixas. Isso é algo que nos devia fazer pensar.

Sendo Taça, os adeptos levam a coisa mais pela “desportiva”? É diferente ver um jogo de Taça ou de campeonato?

É muito diferente porque na Taça é tudo ou nada. À exceção da meia-final, jogada a duas mãos, tudo se decide naqueles 90 ou 120 minutos. Para muitos dos clubes, simplesmente passar de eliminatória é já uma festa e abre a perspetiva de ir visitar um estádio novo, um clube diferente. Foi fantástico falar com membros da claque do Aves e saber como se foram apercebendo, pouco a pouco, de que tinham mesmo fortes possibilidades de ir ao Jamor em 2018.

Por outro lado, apesar de ser “mata-mata” também há um ambiente muito mais amigável na maior parte dos jogos. Isso foi especialmente notório nos jogos com os clubes açorianos que vi. Para o Graciosa, foi a terceira participação na Taça em toda a sua história, fizeram do Pina Manique a sua casa e, sabendo que a tarefa em campo era quase impossível, apostaram em vencer nas bancadas, com grande sucesso. Isto acontece em dezenas de campos em cada eliminatória e é o que torna a Taça tão especial.

Enquanto acompanhaste os jogos, conseguiste olhar para o lado desportivo? Ou seja, venceu quem mereceu nos jogos que viste?

Talvez o único caso em que isso não aconteceu foi o Leixões-Tondela. O Tondela dominou a maior parte do jogo e, de um ponto de vista lógico,mereceria ganhar. Aí, a força extra de que o Leixões precisava veio de fora do campo, das bancadas. Desse ponto de vista, dos adeptos, o Leixões mereceu ganhar.

Depois, houve a final, em que o Porto dominou o jogo quase todo e massacrou nas estatísticas, mas quem levantou a Taça no final foi o Sporting.

Nas meias-finais aconteceu um Benfica-Sporting- Foi mais difícil por serem dois grandes? Por, eventualmente, ter sido difícil encontrar um ângulo diferente?

Foi, sem dúvida, preciso escolher outro ângulo, porque só ir aos jogos e falar com adeptos e referir a história dos clubes não iria chegar, já foi feito milhares de vezes. A minha primeira ideia foi fazer o dérbi no feminino, isto é, falar só com adeptas de ambos os clubes. Mas, quando comecei a falar com adeptas, percebi que não vivem o futebol de forma muito diferente dos homens. As que lá estão sofrem tanto como eles e, por isso, não me ia dar aquela visão diferente do que queria.

Então, acabei por focar outro ângulo que é menos explorado, mas que para mim é fascinante. Falei de famílias divididas. Um casal em que ela é ferrenha do Benfica e ele do Sporting, como lidam com os dias de jogo e como lidam com a educação clubística dos filhos; um sportinguista que é filho de benfiquistas e o único entre dezenas de primos direitos que são todos do Benfica e o lado contrário, um benfiquista que é de uma família tradicionalmente muito ligada ao Sporting e que sofreu para se poder afirmar entre primos que chegavam a dizer-lhe que se o avô fosse vivo não gostaria dele. Finalmente, olho para um rapaz fanático do Sporting que fez anos no dia do jogo em Alvalade e foi ver o seu primeiro dérbi, e do seu padrinho, ferrenho benfiquista, que foi também ao jogo, mas estava na bancada contrária.

Pelo meio, tive a sorte de ser marcado o jogo de futebol feminino de angariação de fundos para Moçambique, no Restelo, e pude ir também. Foi uma experiência muito peculiar para quem, como eu, está muito habituado a dérbis entre o Benfica e o Sporting e isso também está no livro.

Já não é o teu primeiro livro. Próximas aventuras/livros desportivos?

Não é o meu primeiro livro, não. O primeiro que publiquei foi um livro juvenil sobre a história do Benfica, chamado “As Aventuras de Cosminho”. Depois, virei-me para outro dos meus grandes interesses, a religião, com um livro de entrevistas a freiras chamado “Que fazes aí fechada”. Finalmente, escrevi, juntamente com o meu pai, uma biografia do meu bisavô, um pioneiro da aviação: “Armando Torre do Valle - Um herói do ar em Moçambique”.

Não me faltam ideias para novos livros, incluindo sobre futebol, mas o problema em Portugal é que temos um mercado muito difícil. A maioria dos livros que se publicam sobre futebol em Portugal são biografias, livros exclusivamente sobre um clube, ou então polémicas. Livros sobre a cultura futebolística e a vivência dos adeptos são muito raros. A dúvida é saber se temos mercado para isso ou se apenas os fazemos por carolice. Se este livro correr bem, pode ser que abra caminho a outros, meus ou de outros autores, isso seria excelente.

Entretanto, o próximo projeto é a publicação do “Rumo ao Jamor” em língua inglesa. Já tenho editora assegurada - curiosamente fechei esse acordo antes de garantir uma portuguesa - e deve ser publicado em março de 2020.


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