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RTP mantém horário e público-alvo de série feminista, contra a recomendação do provedor

26 jun, 2020 - 21:48 • Filipe d'Avillez

Teresa Paixão, diretora da RTP 2, diz que é obrigação da televisão pública “legitimar todas as formas de vida”. Uma psicóloga educacional considera o programa desajustado ao horário e ao público-alvo a que se dirige.

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A série feminista “Destemidas”, da RTP 2, vai continuar a ser emitida no mesmo horário e para o mesmo público-alvo, contrariando a recomendação do provedor do telespetador.

Nos últimos dias a série, de origem francesa, tem causado polémica em Portugal com milhares de famílias a reclamar que fosse tirada do ar. Em causa está, em particular, o episódio 19 do desenho animado que conta a história de vida de Thérèse Clerc. O episódio mostra Thérèse a ser educada numa família católica conservadora e a casar-se com um homem igualmente conservador, com quem tem quatro filhos. Depois de descobrir os escritos de Karl Marx, contudo, Clerc “liberta-se”. Abandona o marido, levando os filhos com ela e passa a viver numa relação homossexual, abrindo uma casa onde acolhe mulheres que queiram abortar. O episódio continua com uma mulher a sussurrar-lhe ao ouvido que quer fazer um aborto, mas Thérèse diz-lhe que não deve falar em segredo, mas gritar esse facto ao mundo, sem vergonha.

O Provedor do Telespetador, Jorge Wemans, confirma que recebeu muitas queixas às quais respondeu dizendo que “a RTP não pode, nem deve, esconder ao seu público adolescente estas realidades. Assim como deve (de acordo com a Lei e as melhores práticas) tratar as questões sensíveis da educação sexual e do aborto, da inquietação religiosa e da história das religiões, do amor e da amizade e outras que não são temas exclusivos das famílias”.

Contudo, escreve Wemans, o canal “não pode nem deve fazê-lo do modo como surgem tratadas no referido episódio.”

Por essa razão, o provedor recomendou à RTP que o episódio fosse retirado do ar e do site do programa ZigZag e que a restante série fosse passada para um horário mais adequado a um público adolescente. À Renascença, Wemans especifica que essa idade é, no seu entender, entre os 12 e os 14 anos. Nos últimos dias o episódio deixou, de facto, de constar do site e não voltou a ser transmitido.

Entretanto Teresa Paixão, diretora da RTP, escreveu um post em que explicou que o episódio 19 não foi retirado em definitivo, mas apenas para se voltar trabalhar a dobragem, especificamente na parte sobre o aborto, e que depois voltará. O resto da série continuará a ser emitido à mesma hora, cerca das 11h30, e com o mesmo público-alvo de antes, que é para pré-adolescentes, entre os 10 e os 13 anos.

Questionada pela Renascença, Teresa Paixão não considera que esteja a ignorar as recomendações do provedor, resguardando-se no facto de este ter escrito que a sua recomendação diz respeito a "futura repetição do programa", e não à atual emissão da série.

“Estou em linha com a sugestão e aceitei a recomendação, mas isso não quer dizer acatar. Acatar é uma coisa diferente. Concordei que havia alguns momentos em que a linguagem podia não ser adequada e que não havia o enquadramento adequado para o público-alvo. Portanto entendi que o provedor tinha razão nessa matéria. O episódio foi retirado e vamos refazê-lo, mas não o retiraremos para sempre, para nunca mais ninguém ver, isso não. Vamos refazer a explicação da parte do aborto.”

Em conversa com a Renascença Jorge Wemans recusou comentar se achava possível a mera alteração da linguagem sobre o aborto tornar o programa aceitável para um público adolescente – sendo que já tinha afirmado que toda a série era inadequada para pré-adolescentes – preferindo decidir apenas depois de ver a versão final. O provedor disse ainda que espera que, dadas as circunstâncias, seja convidado a dar a sua opinião sobre o episódio antes de ser reposto no ar. Teresa Paixão, porém, não aceita.

“Não vamos submetê-lo à apreciação do provedor porque o provedor existe para responder ao que é exibido e não para avaliar as coisas antes de serem exibidas”, diz. Quanto ao público-alvo, esclarece ainda que a RTP já o ajustou em relação ao resto da Europa, em que a série é dirigida a crianças entre os 8 e os 12 anos e que não pretendem acolher a sugestão do provedor de alterar para os 12-14, mudando o respetivo horário.

Obrigação de legitimar todas as formas de vida

A diretora rejeita ainda liminarmente a ideia de que a série – que contém outro episódio que celebra George Jorgensen, um homem americano que foi o primeiro a fazer uma operação de “mudança de sexo”, passando a ser conhecido como Christine – tenha uma vertente ideológica que a torne inadequada à programação infantil de uma televisão pública.

“É uma série que justamente deve estar na televisão pública porque a televisão pública é a televisão que tem a obrigação de diversidade e de legitimar todas as formas de vida e todos os tipos de famílias”, diz.

“Todos os meninos têm de ver representados na televisão pública todas as famílias, porque a televisão pública é dessas famílias todas. Não é apenas da família mais convencional. Acho que não há ideologia nenhuma em mostrar os vários tipos de famílias que existem em qualquer país”, explica ainda.

A exceção, acredita, é o tema do aborto. “É um tema que compreendo que para uma criança pequena é relativamente difícil de perceber. É muito mais fácil perceber que tem os pais divorciados, ou tem dois pais ou duas mães, do que perceber a questão do aborto, que não tem nada a ver com a família. É outra coisa. Portanto compreendo, e foi por isso que fui ao encontro da recomendação do Jorge Wemans, no sentido de tentar fazer um pequeno enquadramento sobre essa questão, apenas”, conclui.

Curiosamente, porém, a autora original do livro de banda desenhada que levou à produção da série insiste que a questão do aborto é central para a história de Thérèse Clerc e recusou retirar essa história em particular de edições do livro que foram publicadas em países como a Polónia, quando isso lhe foi solicitado.

Numa entrevista em que foi questionada sobre o assunto, Pénélope Bagieu respondeu que aceitaria fazer algumas alterações, por questões culturais, mas que “não aceitaria eliminar a história de Thérèse Clerc simplesmente porque ela fazia abortos e o país em questão tem um movimento anti-aborto. Especialmente agora, as pessoas precisam de saber a realidade do aborto ilegal”, afirma.

A ideia da RTP, explica Teresa Paixão, é manter o episódio na sua versão original no player da RTP, e a versão “suavizada” no espaço da ZigZag. Neste momento, contudo, por razões técnicas, a série encontra-se apenas no player da RTP e não no ZigZag.

Não adequado para crianças, diz psicóloga

Opinião diferente da diretora da RTP 2 tem a psicóloga educacional e clínica Rita Faria Blanc. Sem querer comentar se o programa é ideológico ou não, a psicóloga considera que o conteúdo não é adequado para crianças de 10 anos e diz que isto deve servir de alerta para as famílias terem mais atenção ao que os filhos vêem na televisão.

“O acesso que as crianças têm aos conteúdos televisivos é um tema muito importante e para o qual penso que muitas famílias acabam por não estar suficientemente alerta”, diz.

“Quando uma criança acede a uma informação (que pode ser uma cena num filme, mas também uma conversa entre os pais) com a qual não está ainda preparada para lidar, porque simplesmente não tem maturidade para compreender o que vê ou ouve, essa criança vai imaginar uma situação muitas vezes assustadora para si, que vai guardar no seu mundo interior, de forma desorganizada e distorcida”, considera Rita Faria Blanc.

“Deparo-me diariamente no consultório com situações de crianças que viram uma telenovela com os avós, ou um filme de terror com os primos mais velhos, ou mesmo as notícias com os pais e que, por não terem capacidade para compreender as informações que lhes são mostradas (seja um grupo de encapuçados com armas em punho ou uma cena de sexo), começam a mostrar evidentes sinais de desconforto, como tiques, dores de barriga ou medo de dormir sozinhos”.

Temas como os apresentados nos episódios em questão, explica, não devem ser impostos às crianças sem que estas tenham antes mostrado interesse em saber mais sobre elas. “Analisando a série ‘Destemidas’, independentemente da ideologia de cada família, falar de temas como o aborto ou a mudança de sexo a uma criança que não mostrou curiosidade sobre estes mesmos temas, não é adequado ou aconselhado. São tudo temas muito importantes, mas delicados, com diversas opiniões e perspetivas, mas que não devem ser introduzidos ou impostos às crianças antes destas mostrarem dúvidas ou curiosidade sobre os mesmos.”

Em linha com o provedor do telespetador, a psicóloga educacional considera o público-alvo e o horário desajustados. “Parece-me pouco prudente que os conteúdos sejam aconselhados a crianças de 10 anos e passem num horário em que muitas vezes crianças mais novas estão sozinhas a ver televisão, como a um sábado de manhã. O vocabulário utilizado na série não é adequado para crianças e as imagens intensas, rápidas e confusas não lhes dão tempo para processar e compreender a informação mostrada. As expressões faciais das personagens são, na minha opinião, desajustadas”.

Rita Faria Blanc, que é também mãe de três filhos pequenos, conclui dizendo que “existem acontecimentos diários e das nossas vidas, em relação aos quais não podemos nem devemos de certa forma proteger os nossos filhos. Contudo, a forma como se explica e enquadra um tema delicado, a contenção e orientação transmitidas pelos pais no momento, fará uma grande diferença na forma como a criança vai integrar e compreender a informação que lhe é transmitida”.

A série “Destemidas” é baseada nos dois volumes do livro “Les Culottées”, de Pénélope Bagieu e a sua versão animada foi produzida para a televisão pública francesa.


[Notícia corrigida às 12h45 de 29-6-2020. Na primeira versão desta reportagem Teresa Paixão surgia identificada como diretora de programação infantil da RTP, quando de facto é diretora do próprio canal. Pelo lapso, as nossas desculpas]

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  • Henrique Folque
    28 jun, 2020 Lisboa 17:17
    Espanta-me muito que a responsável da RTP para a programação Infantil, continue a defender a publicação das ideias deste programa tendo como público alvo as crianças e não perceba que a disseminação deste tipo de conteúdos, que exigem uma maturidade, não expectável nas crianças que de forma inocente assistem a este programa ( dito pra todas as idades), e que sem o devido acompanhamento e supervisão dos pais e encarregados de educação viola o direito dos mesmos a educar os seus filhos da forma que achar mais conveniente e própria, consoante a idade e maturidade dos seus filhos, coisas que a responsável da RTP não pode se arvorar em pressupor nem a generalizar. Pergunto afinal para que é que serve a classificação etária dos programas se os responsáveis da RTP permitem transmitir estas ideias a crianças, que pior do que transmitir cenas de sexo, ou de violência seja física, moral ou mental, que são critérios para que muitos programas sejam classificados para maiores de 16 anos, vêm deturpar e distorcer e ridicularizar os valores aceites pela grande maioria dos Portugueses. Pergunto-me ainda porque numa série que visa homenagear mulheres que se destacaram na sociedade seja pela sua luta ou pelo exemplo das suas vidas, em mais de vinte episódios, não há nenhuma menção a grandes mulheres como uma Madre Teresa de Calcutá e tantas outras santas mulheres que dedicaram a sua vida pela sua fé, em prol dos mais frágeis da nossa sociedade, fazendo o bem, muitas vezes nas mais difíceis condições e não raro com o sacrifício das próprias vidas.
  • FERNANDO JOSÉ RAMADA
    27 jun, 2020 PONTA DELGADA 18:38
    Esta senhora da RTP tem que ser dispensada, pois não respeita a ordem de um superior. A minha filha de 10 anos viu o episódio em causa e ficou chocada. Espero bem que seja retirado desse horário. Nós confiamos no serviço público por alguma razão!
  • Arinda Rodrigues
    27 jun, 2020 17:16
    Parece impossível, num tempo destes, haver quem se escandalize que, numa sociedade secular, onde as mulheres se emanciparam, o divórcio e o aborto são legais (mas não obrigatórios) e o casamento de homosexuais é possível, ainda haja quem tente impor a sua mentalidade a todos os outros. Fazem exatamente a mesma figura que os que pintaram a estátua do Padre António Vieira. A história não se julga, conta-se e aprende-se com ela. Thérèse Clerc contribuiu para mudar alguns aspetos da vida francesa, a maioria deles para melhor. Porque não há-se ser reconhecida? As crianças precisam de ter acesso a informação, caberá aos pais ajudá-las a fazer a sua interpretação. Acho que os mais papistas do que o papa devriam aprender o amor e a compreensão de Jesus Cristo e até do Santo Padre.
  • Mario Barata
    27 jun, 2020 15:29
    Será que há tanta gente pudica/ignorante neste país ??? qualquer adolescente deve ser informado e bem informado de tudo para não ser apanhado de surpresa na sua vida futura e que pode ter sérias consequências no seu comportamento quando descobre algumas verdade lhe foram omitidas por ignorantes mais cedo ... a informação/formação é um direito do ser humano sempre em qualquer idade ...
  • MUNDO CEGO = M. CÃO
    27 jun, 2020 Cabaré 10:17
    Uma feminista é um ser humano de comportamento de tal modo desregrado, que vive de, e para a obscenidade, de tal modo que que a sua obscenidade é obscena por si mesmo. Da mesma forma que os homens efeminados portam-se sexualmente como fêmeas no cio.

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