12 fev, 2017 - 11:23 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Ao fim de três semanas como Presidente, Donald Trump deu o primeiro sinal de sensatez ao admitir que poderá recuar na questão da ordem executiva anti-imigração, evitando prosseguir uma guerra judicial que provavelmente perderia.
Fê-lo numa altura em que na Casa Branca se acumulam os casos insólitos, que vão da negação da realidade à invenção de acontecimentos, passando pela promoção descarada de negócios da família Trump.
Comecemos pelo sinal de sensatez. Depois da decisão unânime do tribunal de São Francisco contra a ordem executiva que suspendia a entrada no país de nacionais de sete países muçulmanos, Trump admitiu na sexta-feira que poderia avançar com outro decreto em vez de recorrer para o Supremo Tribunal.
Um decreto que deixe cair os pontos mais polémicos apontados pelos juízes e permita avançar com medidas mais restritivas no controlo da imigração, o objectivo principal do presidente e uma das suas promessas eleitorais.
Depois de uma primeira reacção sanguínea ao acórdão de São Francisco, garantindo que ia recorrer para o Supremo, Trump e a sua equipa terão reflectido melhor sobre o assunto e aberto a porta a uma solução mais expedita.
O Departamento de Justiça e a Casa Branca estudam agora várias hipóteses e no início da semana será anunciada uma decisão. Mas o Presidente reiterou que o recurso para o Supremo se mantém em cima da mesa. Veremos, pois, se sai finalmente da Casa Branca um sinal de humildade ou, pelo contrário, se insiste num caminho de arrogância e autoritarismo.
Mas a arrogância até será o menor dos males perante a multiplicação de situações que fazem as delícias dos humoristas televisivos.
Bill Maher, o famoso “entertainer” da HBO e um dos mais corrosivos críticos do conservadorismo americano, admitia na sexta-feira que Trump tem sido uma “mina de ouro” para a sua profissão, mas que estava na altura de reflectir em “como não falar de Trump”. Um objectivo inalcançável para quem se propõe seguir e comentar a actualidade, porque todos os dias há abundantes motivos para a sátira.
“Pós-verdade”
Desde o primeiro dia, quando Trump e o seu porta-voz acusaram os “media” de desvalorizarem a multidão na tomada de posse, que os casos se sucedem. Mas houve três momentos marcantes.
O primeiro foi a negação da evidência de duas fotografias que mostravam como a multidão da tomada de posse de Obama em 2009 “esmagava” a da posse de Trump. Foi aquilo a que Kellyanne Conway, uma das principais assessoras do Presidente, chamou “factos alternativos”.
O segundo foi quando o porta-voz, Sean Spicer, afirmou que o termo proibição/rejeição (“ban”, em inglês) não se aplicava à ordem executiva, quando o próprio Presidente sempre usou esse termo para caracterizar a sua medida.
O terceiro foi quando Conway inventou um massacre em Bowling Green, no Kentucky, alegadamente cometido por dois iraquianos, para justificar a medida anti-imigração. O dito massacre nunca existiu e, se tivesse existido, teria sido exaustivamente noticiado pelos “media”, ao contrário do que pretendia Conway.
Estava definido um padrão de comportamento numa Casa Branca a viver em plena “pós-verdade”. Três negações da realidade que não andam longe da esquizofrenia.
Mas, esta semana, houve outra situação semelhante. Neil Gorsuch, o juiz que Trump apontou para o Supremo Tribunal, num encontro com alguns senadores comentou as críticas do Presidente aos juízes em geral. Classificou-as como “desmoralizadoras” e “desencorajadoras”.
Quando um senador democrata, com autorização do próprio Gorsuch, divulgou as suas palavras, Trump e o seu porta-voz tentaram fazer crer que elas não correspondiam à verdade. Que Gorsuch tinha feito uma apreciação genérica à situação da justiça e não se referira especificamente aos ataques do presidente aos juízes.
Mas outros presentes no encontro, incluindo republicanos, vieram a público confirmar a veracidade das declarações, enquanto um porta-voz do próprio Gorsuch as reiterava também, deixando de novo a Casa Branca em estado de negação.
Conselheiro de Segurança mentiu
Mais embaraçosa foi a situação criada pelo conselheiro de Segurança Nacional. O general Michael Flynn conversou com o embaixador russo em Washington em finais de Dezembro, no dia em que Obama anunciou sanções a Moscovo por causa da interferência na campanha eleitoral americana.
Interrogado várias vezes sobre se nesse contacto tinha falado das sanções, Flynn sempre o negou. Mas agora o “Washington Post” revelou que nove funcionários que tiveram acesso à transcrição da conversa garantiram que Flynn tinha falado sobre as sanções com o embaixador.
Confirmou-se assim uma suspeita que sempre pairou sobre a conversa, sobretudo porque Moscovo não reagiu às sanções de Obama e também porque Trump elogiou essa ausência de reacção, chamando-lhe jogada inteligente.
Flynn terá sugerido ao embaixador russo que quando Trump entrasse em funções poderia rever o processo das sanções. E terá aconselhado Moscovo a não reagir excessivamente.
As sanções de Obama incluíram a expulsão de 35 russos suspeitos de espionagem, mas o Kremlin, ao contrário do que é habitual, não retaliou.
A sistemática negação de Flynn sobre o conteúdo da conversa deixou o vice-presidente, Mike Pence, também numa situação embaraçosa. Numa entrevista televisiva, Pence garantiu que a questão das sanções não tinha sido abordada com base nas garantias que lhe tinham sido dadas pelo conselheiro de Segurança Nacional.
Mas agora, perante a assertividade da notícia do “Post”, Michael Flynn recuou na sua negação. Um porta-voz do general veio dizer que ele “não tinha memória de ter discutido as sanções, mas não tinha a certeza que o assunto não tivesse sido abordado”.
Flynn e o embaixador russo são velhos conhecidos. Em 2013, o diplomata preparou uma visita do general americano a Moscovo e em 2015 este apareceu num banquete oficial junto de Vladimir Putin.
Além de se ter tornado comentador do Russia Today (o canal televisivo em inglês financiado pelo Kremlin) Flynn foi pago pelo discurso que proferiu no banquete. Ser comentador no canal de propaganda do Kremlin também não o incomodava e chegou mesmo a dizer que não via grande diferença entre o Russia Today e os canais de notícias americanos, incluindo a CNN.
Além de ter sido agora apanhado a mentir, a sua atitude configura uma violação da ética. Um membro da equipa de transição presidencial não deve interferir com decisões da administração ainda em funções, numa espécie de diplomacia paralela que mina a política externa do Presidente em exercício.
Defesa dos negócios
É, porém, improvável que o Presidente tome qualquer atitude em relação a Flynn. Desconhecem-se quaisquer padrões éticos nesta Casa Branca e Donald Trump tem sido o primeiro a dar o (mau) exemplo.
Esta semana, esquecendo que é o Presidente dos Estados Unidos da América, tomou as dores da filha e publicou um “post” no Twitter contra uma cadeia de lojas que retirou os produtos de Ivanka do catálogo de vendas.
“A minha filha Ivanka tem sido tratada tão injustamente pela Nordstrom. Ela é tão boa pessoa – sempre a pressionar-me para fazer o que está certo. Terrível”, escreveu.
Não foi a primeira vez que Trump atacou empresas, mas é a primeira vez que o faz em nome dos negócios da família. Certamente surpreendida, a Nordstrom fez um comunicado a explicar que a sua decisão se deveu a uma baixa das vendas dos produtos de Ivanka e não a qualquer outro motivo.
Mas o porta-voz da Casa Branca assegurou que a decisão da loja foi um “ataque directo” a Ivanka e que o Presidente “tem todo o direito como pai” de defender a filha – o mesmo Presidente que garantiu, uns dias antes de tomar posse, que estaria totalmente afastado dos negócios da família enquanto permanecesse em funções.
Um coro de protestos dos democratas, e não só, fez-se ouvir ruidosamente, reclamando que o assunto seja analisado pelo comité de ética do Congresso para avaliar o conflito de interesses em presença.
Ignorando tal “pormenor”, a já célebre assessora de Trump, Kellyanne Conway, fez no dia seguinte publicidade descarada aos produtos de Ivanka. Numa entrevista à Fox News a partir da própria Casa Branca, Conway incitou os espectadores: “É uma linha maravilhosa. Tenho algumas peças. Vou fazer publicidade grátis aqui. Vão comprá-la já”.
A lei proíbe qualquer funcionário público de utilizar a sua posição para “apoiar qualquer produto, serviço ou empresa, ou para o lucro privado de amigos, familiares ou pessoas com quem estejam associados”. Por isso, várias organizações jurídicas disseram que Conway tinha violado a lei e não só a ética. Os democratas reclamam acção por parte do comité de ética.
Interrogado sobre a questão, o porta-voz de Trump limitou-se a dizer que Conway tinha sido “aconselhada” sobre o assunto. Um “aconselhamento” que se interpreta como tendo sido uma admoestação interna e tudo ficará por aí. Pelo menos na Casa Branca.
Uma Casa Branca que vai criando realidades alternativas sempre que lhe convém, mas que quando toca a negócios não brinca em serviço. Aqui não há factos alternativos. É mesmo a realidade nua e crua.