Crónicas da América
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​As semanas “horribilis” de Donald Trump

09 ago, 2016 - 20:52 • José Alberto Lemos, correspondente nos EUA

Candidato republicano perde apoios e desce nas sondagens.

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Imagine o leitor, por momentos, que é conselheiro de um candidato presidencial. E que no congresso do candidato rival surgem os pais de um militar morto num ataque suicida no Iraque que é considerado um herói e foi condecorado postumamente.

São muçulmanos e orgulham-se de ser muçulmanos americanos, cujo filho deu a vida a defender a pátria na luta contra o terrorismo. Criticam o “seu” candidato por querer impedir os muçulmanos de entrar no país e por muitas outras tiradas xenófobas que foi fazendo durante a campanha e a certa altura perguntam se ele alguma vez leu a Constituição, puxando de um exemplar de bolso e oferecendo-o simbolicamente ao “seu” candidato.

Esses pais protagonizaram o momento mais forte do congresso. O país ficou emocionado ao ver e sentir a sua dor e, aos olhos da generalidade dos cidadãos, eles também são heróis nacionais. A onda de solidariedade e respeito por eles propagou-se rapidamente ao ponto de ser a sua imagem, e não a da candidata a presidente, que mais surgiu nos media como símbolo do congresso.

É aqui que entra o leitor-conselheiro. No dia seguinte, nos dias seguintes, perante a força daquele gesto de uma família de heróis nacionais, que conselho daria ao “seu” candidato? Certamente, que não tocasse no assunto, dada a sua delicadeza político-emocional, deixasse passar as ondas de choque e se concentrasse nos inúmeros assuntos do congresso rival em que é possível esgrimir argumentos plausíveis para confrontar os adversários.

Isto partindo princípio que o leitor é uma pessoa sensata, naturalmente. E que, nessa medida, compreende de imediato que criticar aqueles pais que foram ao congresso rival é mais ou menos como, em pleno Terreiro do Paço, entre 50 mil pessoas enlouquecidas a festejar a vitória no Euro 2016, começar a gritar que a Selecção Nacional foi a pior equipa do campeonato.

Por estranho que lhe possa parecer foi isso que fez o “seu” candidato. Ignorando os conselhos de qualquer pessoa sensata, desatou a criticar talvez os únicos oradores do congresso rival que não podia criticar. E o resultado está à vista: aquilo que poderia não ter passado de um episódio forte de cinco minutos que o tempo desvaneceria da memória dos eleitores transformou-se na questão política que maior desgaste causou ao candidato.

Donald Trump (who else?) começou por dizer que o pai do militar morto o tinha atacado “perversamente” sem sequer o conhecer e “estranhou” que a mãe tivesse ficado calada ao lado do marido no palco da convenção democrática, porque “provavelmente não estava autorizada” a falar. A insinuação era óbvia: como mulher de um muçulmano não tinha direito a usar da palavra.

Esta primeira reacção desencadeou um coro de protestos em todo o país, transformando o casal Khan nos personagens mais escutados pelos media. A senhora, Ghazala Khan, explicou em algumas televisões de viva voz, e num artigo que assinou no “Washington Post”, que o marido lhe tinha perguntado se ela queria usar da palavra na convenção, mas ela declinou porque a sua dor pela morte do filho está ainda muito viva e sempre que vê uma foto dele não contém as lágrimas. No palco, por trás dos pais, estava uma imagem de Humayun Khan que a mãe evitou olhar, e quando saiu de cena com o marido perdeu o controlo emocional e físico e teve de ser apoiada. Acrescentou que ainda hoje, doze anos sobre a morte do filho, não consegue entrar no seu quarto.

O pai, Khizr Khan, um advogado formado em Harvard, acusou Trump de ter tido uma reacção “típica de uma pessoa sem alma”, “sem empatia” com os cidadãos, “incapaz de governar este grande país”. E apelou aos republicanos para que “reconsiderem” e “repudiem” o candidato. “Digo-lhes que isto é um dever moral. A história os julgará. Será um peso na consciência para o resto das vidas deles. (…) Não se pode confiar a liderança a uma pessoa que não tem empatia com o povo que quer liderar. O voto é um acto de confiança e não pode ser posto nas mãos erradas”, alertou.

Por que vale a pena relembrar este episódio mais de uma semana depois de ter ocorrido? Essencialmente por duas razões. Primeiro, porque, mais do que qualquer outro, ele revelou a milhões de americanos o carácter de Donald Trump. Graças ao gigantesco impacto mediático que teve, ele expôs um candidato que não hesita em atacar seja quem for de forma cruel, indiferente ao sofrimento, mostrando uma ausência de sensibilidade e de sensatez que levou muita gente a questionar-se sobre a aptidão do multimilionário para o cargo presidencial.

Insultos, desrespeito, agressividade é algo a que Trump já habituou toda a gente, mas tais características aplicadas a uma família que perdeu um filho na guerra ultrapassam o tolerável num país que nutre um respeito reverencial pelos seus heróis.

Segundo, porque desde então a campanha de Trump entrou num plano inclinado que ainda não conseguiu inverter. Tudo correu mal e as sondagens começam a reflectir o juízo negativo dos eleitores.

Antes de mais porque o comportamento de Trump desencadeou uma onda de solidariedade em relação à família Khan entre os republicanos. O próprio candidato a vice-presidente, Mike Pence, demarcou-se de Trump ao proclamar a sua admiração pelo capitão morto e pela família. O líder do Senado, Mitch McConnell, e o da Câmara de Representantes, Paul Ryan, chamaram a Humayun Khan um herói nacional. E o mesmo fez o senador John McCain, ao dizer que os comentários de Trump “não representam a opinião do Partido Republicano, dos seus quadros ou dos seus candidatos”.

Este é o ponto mais sensível da polémica. Porque se não representam o partido porque é que homens como McCain, Ryan ou McConnell, entre outros, não retiraram o seu apoio a Trump? Essa é a interrogação que mais se tem ouvido desde a convenção democrática. O próprio presidente Obama a verbalizou uns dias depois: “A pergunta que me faço, e que eles se deviam fazer é esta: se repetidamente têm de vir a público denunciar o que o candidato republicano disse, porque é inaceitável, então por que continuam a apoiá-lo?”.

“Esta não é uma situação episódica: todos os dias, todas as semanas, têm de se distanciar das declarações que ele faz. Tem de chegar um momento em que percebam que esta pessoa não pode ser presidente dos EUA, mesmo que pertença ao seu partido”, acrescentou.

E é isso que tem acontecido cada vez com maior frequência nas duas últimas semanas. Se pessoas com cargos institucionais como Ryan, McConnell, ou a lutar pela reeleição como McCain, mantêm o seu apoio embaraçado a Trump – que se recusou a apoiar a recandidatura de Ryan, para dois dias mais tarde dar o dito por não dito, noutro episódio caricato recente – muitos outros republicanos têm vindo a público demarcar-se do multimilionário e declarar que não votam nele.

Um congressista de Nova Iorque, Richard Hanna, e outro da Virgínia, Scott Rigell, romperam com Trump. Rigell abandonou mesmo o partido e vai votar no candidato libertário Gary Johnson. Hanna vota Hillary Clinton e o mesmo fará Meg Whitman, que foi candidata republicana a governadora da Califórnia e é financiadora do partido.

Mas além de membros eleitos ou candidatos pelo Partido Republicano, praticamente todos os dias surgem personalidades destacadas da vida política ou cívica americana a demarcarem-se de Trump. Antigos governadores, ou congressistas, ou senadores, ou membros de administrações anteriores, ou conselheiros de presidentes, têm desfilado pelos media a proclamar o seu repúdio pelo multimilionário.

O último exemplo é o de 50 personalidades especialistas em política externa ou segurança nacional que, nesta terça-feira, publicaram uma carta aberta a dizer que eleger Trump seria “perigoso” e “poria em causa a segurança nacional e o bem-estar” da América, como a Renascença noticiou. Numa crítica arrasadora ao candidato, estes 50 peritos chamam-lhe “ignorante” em questões internacionais, dizem que ele não mostrou qualquer interesse em informar-se sobre elas, não tem temperamento para ser presidente e minaria a liderança americana no mundo. Basicamente, usam os mesmos argumentos que Hillary Clinton tem usado – Trump não serve para presidente, não é apto para a função, nem intelectual nem temperamentalmente.

Os autores são todos republicanos, integraram na sua maioria a administração do presidente George W. Bush, com destaque para Michael Hayden, que era director da CIA no 11 de Setembro e foi também director da NSA, Tom Ridge e Michael Chertoff, que foram o equivalente a ministro da Administração Interna, John Negroponte, subsecretário de Estado e chefiou todas as agências de espionagem, Robert Zoellick, secretário de Estado-adjunto e responsável pelo comércio, e William Taft, subsecretário da Defesa.

Um grupo com o perfil adequado para Trump os classificar como pessoas ligadas ao “establishment” com receio de perderem empregos e influência com a eleição de um “outsider”. A “elite falhada” de Washington, responsável pela invasão do Iraque, pelas mortes em Benghazi e pelo crescimento do ISIS, acusou.

Esta reacção teve pelo menos o mérito de não utilizar a habitual linguagem insultuosa e optar mais por argumentos de carácter político. Talvez seja um sinal de que algo mudou na campanha, já que no pós-convenção democrática Trump entrou numa espiral discursiva que indicia algum desespero. Chamou “diabo” a Hillary Clinton – “só” costuma chamar-lhe “desonesta” – e disse que a eleição de Novembro poderia ser “roubada” e que estava a ser preparada uma “fraude” eleitoral.

Houve, contudo, um tópico que Trump evitou – as sondagens. Ele que tanto gostava de as invocar quando liderava durante as primárias republicanas deixou de as mencionar ultimamente, talvez porque todas elas dão uma vantagem confortável a Hillary Clinton. Em média, a candidata democrata lidera com cerca de sete pontos percentuais a nível nacional. Mas, mais significativo, nos estados mais disputados – os “swing states”, onde tudo se decide – surge também com vantagens entre 4 e 10 pontos. Nalguns deles, a campanha democrática suspendeu mesmo a emissão de “spots” de propaganda política por considerar que serão desnecessários.

Em suma, como diria Isabel II, estas foram as semanas “horribilis” de Donald Trump.

Comentários
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  • Rosinda
    10 ago, 2016 palmela 12:55
    Semanas horribililes de manuel serrao!
  • Silêncio!
    10 ago, 2016 Lisboa 11:17
    Silêncio ruidoso que por aqui vai! O candidato Trump, autêntico "cavalo de Tróia" dos interesses do Kremlin, afunda nas sondagens, não beneficia do apoio de importantes sectores dos republicanos, e mostra o negro ser humano que é. Eu confio no bom-senso dos Americanos, porque o perigo é grande. Para todos nós. Quem admira e se dispõe a aliar a um "produto" do KGB (Putin), só pode ser olhado com suspeição e preocupação. Os Russos nunca foram, não são, nem nunca serão inofensivos. Bem o sabia o General Patton!

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