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​Magistrada portuguesa esteve em campo de refugiados e viu a “indiferença do mundo”

05 mar, 2018 - 15:36 • Maria João Costa

É magistrada do Ministério Público, mas é também escritora. Julieta Monginho traduziu em literatura a experiência de quase um mês num campo de refugiados na Grécia.

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“Um Muro no Meio do Caminho” é o livro que não tinha pensado escrever. Julieta Monginho esteve quase um mês, em agosto de 2016, no campo de refugiados de Chios, na Grécia. Foi lá que encontrou os “náufragos de idênticas perdas” que descreve na obra de ficção agora editada pela Porto Editora.

Em entrevista à Renascença, a autora, que já venceu o Grande Prémio de Romance e Novela da APE em 2008, explica que quando partiu “não tinha qualquer intenção de transformar aquela experiência em matéria ficcional”, mas “um imperativo de consciência e de atitude perante o mundo e as coisas”, fê-la escrever.

Com o livro quis que “aquela vivência tão rica se prolongasse” e, através da sua escrita, quis que as vidas que conheceu chegassem a outros. Por isso, deu ao livro um “lado intimo”, para que quem lê perceba que “são pessoas como nós”.

Magistrada do Ministério Público na área da família e crianças, Julieta Monginho é uma mulher de causas a quem “o direito humanitário diz muito”. À boleia de amigos próximos que já tinham estado em campos de refugiados, a magistrada não virou as costas à primeira oportunidade para ver com os seus olhos o que acontece do outro lado do muro, na fronteira da Europa.

Interrompe o raciocínio em que nos relata o momento em que foi para a Grécia para afirmar categoricamente: “Penso que estive na Grécia naquele campo de refugiados porque não podia estar na Síria!” E não hesita em classificar como “terrível” o que chama de “massacre de Ghouta”.

Monginho lamenta “o uso de um povo para a digladiação de potências”. A autora que no livro “Um Muro no Meio do Caminho” dá voz a homens, mulheres e crianças que vivem às portas da Europa “à espera e em desesperança” fala dos sírios como “um povo indefeso” e denuncia a “indiferença do mundo”. Julieta Monginho recorre à frase com que abre o seu livro e que é da amiga que a acompanhou nesta experiência na Grécia, para dizer que “cada um de nós pode fazer tão pouco, ao menos que esse pouco seja feito”.

Sendo magistrada que colabora com o Centro de Estudos Judiciários, perguntamos-lhe sobre a injustiça das situações que encontrou. Julieta Monginho explica que “há toda uma injustiça do ponto de vista dos valores culturais europeus que não estão efetivamente a ser prosseguidos, porque não estão a traduzir na prática o que é o direito de asilo”.

Crianças refugiadas em Portugal “desaparecem sem darmos por isso”

No livro “Um Muro no Meio do Caminho”, Julieta Monginho fala do trabalho da Plataforma de Apoio aos Refugiados em Portugal.

Nesta entrevista à Renascença, diz que, para os que procuram entrar na Europa, o nosso país “não é atrativo” porque é “pouco conhecido e as pessoas nem sequer punham a hipótese de vir para Portugal”. Conta-nos que naquela época, em 2016, as notícias da crise económica também não ajudaram.

Quando lhe pedimos para falar com o conhecimento da sua experiência de magistrada, Julieta Monginho relata que “no caso de Portugal tudo tem de passar pelo Tribunal Administrativo” e declara que é uma jurisdição que lhe “escapa um pouco”. Acrescenta que não tem bem “a noção do ponto de vista burocrático como é que as coisas se processam no acolhimento definitivo”.

Especialista na área da família e crianças, Monginho conta: “Tenho tido experiências de crianças que vêm sozinhas e que chegam a Portugal completamente desacompanhadas e, felizmente, há uma boa resposta para isso. Existem instalações apropriadas”.

Contudo, Julieta Monginho alerta que perdem o rasto a alguns desses refugiados. “A única tristeza que temos é que muitas vezes eles desaparecem sem darmos por isso” e, acrescenta, “provavelmente porque as famílias vêm buscá-los” e desabafa: “esperamos que não seja pelas piores razões”. A magistrada diz: “existem redes de tráfico de seres humanos que nos escapam. Muitos desaparecem de um dia para o outro. Fogem”.

Questionada sobre o desconhecimento sobre o destino dessas crianças, Monginho diz que “não há felizmente instituições fechadas em Portugal” e, “apesar da má fama” da Justiça nacional, “nesta área acho que funciona muito bem e as crianças são muito bem acolhidas. O que pode acontecer, não sabemos muito bem, é que na melhor das hipóteses sejam levadas pela família que as vêm buscar ou, na pior das hipóteses, sejam levadas por traficantes”.

A autora mostra-se apreensiva e confessa: “ficamos sempre com o coração nas mãos por esses meninos” a quem a justiça perde o rasto.

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  • J
    05 mar, 2018 16:51
    Constatar que "desaparecem" crianças refugiadas e congratular-se com o "regime aberto ?!" (que parece ser o responsável pelo "desaparecimento") é o máximo... Se fossem filhos de multimilionarios poderiam estar em colégios ("devidamente fechados") mas como são refugiados tem que estar desprotegidos num "regime aberto"... Enfim é o país e o direito que temos....

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