09 out, 2020 - 08:02 • João Carlos Malta , Inês Rocha (vídeo e fotos)
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Quando acordou, Isabel sentia dores de cabeça, dores musculares, febre e calafrios. “Senti logo que não estava bem”, recorda. Na noite anterior, tinha saído de mais um turno no Hospital de S. João, no Porto, onde trabalha no serviço de infecciosas, em que os doentes Covid-19 começavam a dar entrada às dezenas. Estávamos a 19 de março.
Nessa manhã, a assistente operacional de 39 anos correu para o hospital. Ela, que nem é de ficar doente, teve a pior das notícias: um teste positivo ao novo coronavírus que se revelou muito negativo. Seguiram-se 69 dias de isolamento, e uma jornada que não vai esquecer. Mais do que as sequelas físicas, foi psicologicamente que quebrou.
“É muito complicado. É como se me tivessem tirado o tapete debaixo dos pés, e uma pessoa que está habituada a ser a locomotiva fica atrelada, dependente de alguém”, conta à Renascença.
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Se até agora a comunidade científica e médica se tem focado mais nas consequências físicas da infeção pelo novo coronavírus, a verdade é que já há vários estudos internacionais a revelar que um em cada três doentes Covid-19 acaba por ter algum tipo de manifestação do foro psicológico e mental. Numa investigação feita num hospital em Chicago, nos EUA, citada pelo "New York Times", esse valor sobe para os 80%.
Para Isabel Macedo, depois do choque veio o medo. Com três filhos menores e o marido em casa, o receio de “lhes fazer mal” começou a apoderar-se dela. Fechou-se no quarto por mais de três meses. Só abria a porta para ir à casa de banho − que depois desinfetava até ao mais recôndito canto− e para receber o prato de comida a cada refeição.
Ao início dormia 90% do tempo. Depois, passado algum tempo, passou a estar 90% do dia acordada. O isolamento que lhe fora imposto fez emergir muitas nuvens.
“O medo e a insegurança do que poderia vir, do que poderia acontecer, acabava por me roubar o sono. Isso afetava-me psicologicamente”, reconhece.
Isabel quis carregar tudo sozinha, mas a certa altura percebeu que não conseguia. Era demasiado. Teve de recorrer aos serviços de psicologia do hospital em que trabalha, e começar a ser medicada com ansiolíticos.
“Estava angustiada, deprimida, por toda a situação que estava a viver. Acabei por ser medicada para poder regularizar o sono.”
Era apenas com os médicos e poucas mais pessoas que falava sobre o tema. Aliás passava a maior do tempo nas redes sociais a “postar” coisas para dar a ideia de que estava tudo bem. Mas não estava. Revela que não quis contar a ninguém porque “tinha medo de represálias”. As imagens de profissionais de saúde com bens e carros vandalizados fê-la pensar que era o caminho certo.
Já à família e aos amigos quis poupá-los à angústia. “Não podiam fazer nada por mim”, reflete.
O momento que estava a viver passou a ser quase um segredo. Mas era daqueles bem pesados. “Isso foi uma carga muito superior que acabou por me afetar um bocadinho, estar fechada e escondida na minha própria casa e não poder contar com ninguém porque não os queria preocupar”, analisa.
Casos como o de Isabel passam pela consulta que a médica internista Sandra Braz criou no Hospital de Santa Maria. “Não há dia nenhum de consulta em que eu não tenha pelo menos um doente com manifestações neuropsiquiátricas” no contexto da pandemia, reconhece.
Há uma dimensão que tem surpreendido esta médica, sobretudo pela brutalidade dos relatos: a forma como a comunidade está a receber alguns destes doentes que passam pela já difícil provação de superar a Covid-19.
Uma das coordenadoras da Unidade de Internamento de Contingência da Infeção Viral Emergente do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, Sandra Braz diz não são invulgares relatos "perturbadores" feitos por doentes sobre o comportamento de vizinhos e de colegas de emprego.
Ouve-se de tudo um pouco. “Há vizinhos a tentar impedir doentes já curados de entrar no elevador”, começa por contar.
Os casos graves de isolamento de pessoas que já não tinham uma rede de amigos assim tão extensa também se avolumam. “Vi uma senhora, na semana passada, em que os amigos se afastaram, incluindo o companheiro, e já passaram cinco meses do internamento.”
São também referidos com frequência os casos de doentes que tinham negócios e que perderam clientes. “Alguns não perderam, mas foram obrigados a ter exposto o documento dos resultados dos testes que comprovam a cura”, afiança.
“São relatos muito fortes, acho que podemos dizer que são cruéis. Se no início disto tudo havia uma grande solidariedade na sociedade, e que se manifestava a diversos níveis, neste momento o que ouço dos meus doentes é que são frequentemente afastados.”
Esse ostracismo acontece ora de uma forma mais aberta, ora de uma forma subreptícia; em alguns casos, as pessoas que tiveram Covid-19 passam a não ser convidadas a participarem em determinadas reuniões familiares, por exemplo.
E isto não está a acontecer num meio rural, com pessoas de baixa escolaridade, destaca Sandra Braz. “É no centro de Lisboa com a classe média, e média alta”, identifica a médica. “Eu gostava de dizer que é só medo, mas temo que seja algo mais”, afirma, referindo ignorância e apelando aos meios de comunicação para informarem, educarem e desmistificarem.
A internista garante que é preciso que se perceba, de uma vez por todas, que apesar de o risco de reinfeção não ser zero para estes doentes, é mais baixo do que para quem ainda não foi infetado.
Inquérito
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Em relação aos doentes que se vão sentando à sua frente, Sandra Braz diz que nas primeiras consultas teve mais “queixas de défice de atenção, lentidão do raciocínio e capacidade de execução”.Contudo, "não os achava deprimidos e ansiosos”. Foi nas observações seguintes que os sintomas começaram a agravar-se.
“Por um lado, os que estiveram nos cuidados intensivos dão-se conta agora de que a recuperação não está a acontecer ao ritmo que eles esperavam, e temos um problema de gestão de expectativas. E são ainda confrontados com problemas lá fora, de diversas dimensões: alguns doentes perderam o emprego, os maridos e as mulheres também os perderam e estão a passar por graves dificuldades económicas.”
Para esta médica, a dimensão mental está a ser menosprezada no ataque à Covid-19, pelo que apela aos especialistas da área de saúde mental que comecem a falar com estes doentes. “Alguns destes casos configuram como stress pós-traumático, e isso tem implicações futuras”, alerta.
Foi esse exatamente o diagnóstico de Bruno Vale (nome fictício), que não quis falar à Renascença, mas que pediu à esposa, Patrícia (nome fictício), para contar por ele o sofrimento em que se viu mergulhado depois de uma semana internado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.
Tal como com Isabel, tudo aconteceu logo no início da epidemia em Portugal.
“Ele começou a ficar muito ansioso e a dormir mal quando se falou em contar-lhe a história para a reportagem”, reconhece a mulher. “Só a hipótese de reviver na cabeça dele esses acontecimentos o assusta.”
SITUAÇÃO DO PAÍS POR REGIÃO
Bruno, de 46 anos, tem um cargo de relevo num organismo público, e foi no início de março, numa reunião que juntava vários técnicos de diferentes regiões, que o vírus lhe ocupou o corpo. Os primeiros sintomas foram sendo mascarados em casa com medicação para a febre, mas passados cinco dias fechado no quarto, não dava mais para aguentar. Teve de ser visto num hospital.
Estávamos a meio de março, e na altura, em Lisboa, apenas o Hospital Santa Maria tinha os testes de diagnóstico, cujo uso se generalizou entretanto. Teve de ser transferido para lá, e aí não houve dúvidas: Covid-19 positivo.
Ficou internado, e o que se passou naqueles cinco dias de internamento, para todos que o rodeiam, é ainda um imenso nevoeiro. “O que lá tenha acontecido e ele tenha visto traumatizou-o, mas ele não fala sobre isso”, revela a esposa.
Passados 14 dias da infeção, Bruno deu negativo. Parecia que o pior tinha passado. Mas não foi isso que aconteceu. Estava apenas no início de uma longa jornada em que o sofrimento tem sido a constante.
“A Páscoa foi em abril e foi ótimo. Tudo parecia estar bem. Mas um mês depois, ele queixou-se de que estava com um aperto no peito. Dizia que se sentia esquisito. Ficou nervoso porque era no peito. Disse-lhe para ter calma, e que íamos ao hospital”, recorda. Bruno tinha uma exigência: não ir para o Santa Maria. “A aflição dele era não voltar para aquele sitio”, recorda.
O resultado das análises até era animador. Estava tudo bem, mas na cabeça de Bruno não. Para Patrícia era impossível não reparar no sofrimento do marido. Uma semana depois, nova manifestação, mais um aperto no peito. “Havia qualquer coisa que o estava a deixar ansioso”, diz Patrícia.
“Ele estava super-nervoso com o trabalho e com tudo. Ele tem uma responsabilidade grande, mas estava muito agressivo, e com muito stress.”
Patrícia tentava acalmá-lo e dizia-lhe que tinha de “descontrair”, de "acalmar”, porque se não o fizesse “não ia aguentar”. Mas nessa altura, foi também ela que começou a ceder. Sempre foi de se sentir no controlo, e agora o chão começava a fugir-lhe.
“Quando o vi ir abaixo, fui-me abaixo também. Foi como se eu tivesse sentido um curto-circuito, houve qualquer coisa que se desligou e eu pensei: ‘E agora? Eu perdi aqui o controlo, quero voltar ao que era para poder gerir o resto’.”
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A resposta foi procurar ajuda para os dois. As consultas de psiquiatria foram o caminho escolhido. Ela, que nunca tinha tido necessidade de tomar nada, teve de recorrer a fármacos para dormir. Ele também.
Ainda assim, meses volvidos, volta e meia a ansiedade apodera-se de Bruno. “Especialmente ao fim do dia”, reconhece a esposa. O sono está alterado há vários meses, e ele acorda muito durante a noite. O coração dispara quando menos espera. Aos 45 anos, este homem tem pavor da ideia de ficar de novo doente.
O stress pós-traumático que Bruno vive resulta de “uma situação muito intensa”, sendo que agora tudo lhe faz lembrar o que viveu nesse período. “É uma repetição. Ver as máscaras todos os dias. Ir para o trabalho de máscara, estar o dia inteiro de máscara”, enumera a mulher.
“Ele não consegue falar sobre o que se passou no internamento. Agora estamos a ver se fala com um especialista neste tipo de trauma. Para ele poder deitar cá para fora as coisas que o estão a afetar”, remata Patrícia salvaguardando, no entanto, que apesar das sequelas psicológicas, o tratamento que recebeu dos profissionais daquele hospital foi "excecional".
Histórias como a deste casal entram no perfil traçado pela presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, Maria João Heitor, que considera que a pandemia trouxe enormes desafios às famílias e às comunidades.
“Quando alguém próximo teve Covid, é normal que as pessoas próximas façam muitas perguntas", explica à Renascença. "Olham para essa pessoa como um sobrevivente, e a estigmatização com evitamento face aos recuperados de Covid-19 e aos profissionais de saúde é também uma realidade em alguns países e locais”, enquadra.
A especialista diz que há “dois tipos de impacto na saúde mental”.
“Por um lado, existem todas as consequências psicológicas da adaptação a uma situação que é indutora de stress. Por outro lado, o vírus tem um impacto direto ao invadir o sistema nervoso central, e também produz efeitos através da ativação de uma resposta imunológica e inflamatória particularmente intensa.”
A psiquiatra revela que, se nos focarmos nas consequências diretas do vírus no cérebro e na a ativação da resposta imunológica inflamatória, “podemos apontar cerca de 30 a 50% de doentes com estado mental alterado por encefalopatia ou encefalite”.
"Em metade destes doentes surgem sintomas compatíveis com diagnóstico psiquiátrico, psicose, depressão, ansiedade, ou mesmo demência”, enumera, acrescentando que, deste grupo, metade tem menos de 60 anos de idade.
Os sintomas de perturbações psicológicas dividem-se em três grupos:
No entanto, Maria João Heitor salienta que, com o pouco tempo de observação desta doença, quando olhamos para os efeitos da pandemia da Covid-19 na saúde mental, nem sempre é fácil distinguir o que resulta dos efeitos diretos do vírus do cérebro, e o que é o impacto psicológico da adaptação a uma situação de stress.
A especialista revela que um estudo em que a SPPSM está a participar, cujos dados são ainda preliminares, observa que metade das pessoas que estiveram em quarentena ou isolamento, mas que já estão recuperadas da doença, “apresentam sinais de stress pós-traumático”.
Nuno Oliveira, técnico de radiologia no Hospital de São João, no Porto, é um desses casos. Aos 32 anos, terá muito provavelmente sido infetado no trabalho, mas era em casa que residia a maior preocupação, por ter um filho "pequenino" de três anos. "O meu receio foi por ele. Ir para casa estar isolado, saber que não podia estar com eles, foi o mais complicado", conta à Renascença.
A mulher acabou por testar positivo e os dois depararam-se com a necessidade de cuidar de uma criança estando ambos infetados com Covid-19. Foram tempos exigentes.
“Fomos seguidos pela saúde ocupacional e pela infecciologia, e indicaram-nos que se estávamos os dois infetados podíamos estar na mesma casa, usando a máscara, com os devidos cuidados. Ficámos com o nosso filho”, recorda.
Lidar com o menino foi bastante complicado, mas Nuno diz que “ele mostrou bastante maturidade”. “Explicar-lhe que, de um momento para o outro, não podia dar beijos e abraços, o distanciamento, foi complicado,”
O dia-a-dia era passado num quarto separado da mulher, as refeições eram desfasadas. “Foi muito desgastante em termos psicológicos. Estar sempre com máscara, a lavar as mãos. Sempre com o medo de nos chegarmos muito a ele”, avalia o profissional hospitalar.
Passou a ser seguido por um psicólogo, até porque “nesta fase tinha um despertar noturno que resultava do medo e da ansiedade”, explica. “O médico ajudava-me com alguns conselhos a ficar mais calmo.”
Em retrospetiva, faz um balanço a uma experiência que deixou marcas. “A fase do isolamento foi complicada, e depois veio a ansiedade constante de quando é que ia negativar. Como a doença foi ligeira, a ansiedade foi o pior da vivência que tive com a infeção.”
O jovem foi seguido pelo diretor do serviço de Psicologia do Hospital de S. João, Eduardo Carqueja. O especialista diz que atualmente há muitas barreiras para os doentes acederem ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) se tiverem Covid-19 e problemas psicológicos associados.
“Esse é um problema grave. Mais do que estigma, é a acessibilidade”, define o médico.
E se não há acesso a uma consulta de psicologia, “o médico de família aquilo que faz é dar um medicamento, um antidepressivo”, o que “faz com que atenue aquele impacto todo, mas adie a resolução dos problemas”.
Esta dimensão da doença tem sido subavaliada, defende o psicólogo. “A saúde mental é sempre o parente pobre”, critica, ao mesmo tempo que lamenta a falta de meios humanos aos mais diversos níveis. Nos centros de saúde, por exemplo, só há 250 profissionais de psicologia a nível nacional.
Neste momento, o serviço que dirige segue 50 doentes que tiveram Covid-19, sendo que há histórias de sofrimento profundo que este médico não esquece, a começar por casos que envolvem pessoas infetadas que passam o vírus a familiares que acabam por morrer.
“Lembro-me de uma senhora que sigo e que o marido tinha várias doenças que o tornaram muito vulnerável. Ela saiu para ir à mercearia ou à farmácia e infetou este senhor e ele veio a falecer”, descreve.
A mulher esteve muito tempo até sair de casa de novo, porque sentia uma vergonha tremenda. Carqueja lembra as palavras da paciente: “Se vou sair, o que me vão dizer é: ‘Olha aquela que matou o marido’.”
Mas o sofrimento desta idosa não parou por aqui. Ela tem um filho que vive na Suíça. “Para esta senhora foi feita a cremação do marido e guardou as cinzas em casa, para quando o filho viesse pudesse fazer a cerimónia fúnebre”, lembra o médico.
A mulher queria muito que o filho viesse a Portugal, mas essa vontade era quase tão grande como o medo. Porquê? “Porque dizia que ele se ia zangar muito com ela, porque foi por causa dela que o pai morreu”, respondia ao psicólogo.
Um outro grupo mais vulnerável a ter sequelas psicológicas é o dos doentes psiquiátricos que contraem a doença. Há muitas pessoas, explica Carqueja, a quem é preciso devolver a perceção de controlarem a situação. Mais do que o controlo efetivo, o clínico diz que é a perceção que nestes casos mais conta.
O especialista assegura que, passados sete meses desde a chegada da pandemia a Portugal, se pode dizer que um dos temores mais intrincados nos doentes recuperados de Covid-19 é “o da reinfeção”.
“O medo de ficar isolado ainda continua. Naturalmente isso provoca insónias, ansiedade e quadros de maior instabilidade emocional, muitas das vezes”, explica.
Isabel Macedo, a assistente operacional do serviço de infecciosas do Hospital S. João, sabe bem do que é que Eduardo Carqueja está a falar. O local em que trabalha e para onde voltou a 24 de junho, depois de mais de três meses isolada em casa, fá-la reviver tudo outra vez.
Todos os dias lida com doentes Covid. “Por muito que tente que o medo não se apodere de mim, olho para o doente como pessoa e tento fazer o meu melhor, mas não deixo de ter medo.”