05 out, 2023 - 11:35 • Eduardo Soares da Silva
Um grupo de carpinteiros, eletricistas, estudantes e até um CEO vai juntar-se na tarde desta quinta-feira para um jogo de futebol. O cenário é comum em incontáveis jogos entre amigos em qualquer canto do mundo. Mas não é esse o caso.
A equipa que vai entrar em campo é o KI Klaksvik – a primeira na história das Ilhas Faroé a jogar a fase de grupos de uma prova europeia – e vai receber o Lille para a Liga Conferência.
Nenhuma modalidade é mais praticada do que o futebol nas Ilhas Faroé, um arquipélago no Atlântico que pertence ao reino da Dinamarca com clima pouco convidativo e cerca de 50 mil habitantes. Isso não significa que a modalidade seja desenvolvida, pelo contrário.
O KI - versão mais curta de Klaksvíkar Ítróttarfelag - foge à regra da tendência do futebol europeu: sério, profissional, detalhista e caro. Cada vez mais caro. Quem não segue este caminho está praticamente condenado a um futuro longe dos grandes palcos. Um clube de uma pequena cidade de cinco mil habitantes veio fugir à regra este verão.
O clube é praticamente amador, da direção ao plantel. Para além da equipa técnica - empregada a tempo inteiro - quase todos os jogadores têm outros trabalhos. O futebol é "part-time".
Árni Frederiksberg é o melhor marcador da equipa e o herói da caminhada até à Liga Conferência.
Tem 31 anos e fez toda a carreira nas Ilhas Faroé. Marcou os dois golos frente ao campeão sueco Hacken que confirmaram o apuramento inédito para uma fase de grupos europeia.
Mas nem a prestação histórica contra o Hacken - que ecoou especialmente na Escandinávia - o livrou das responsabilidades do emprego. Árni é proprietário de um negócio e o dia seguinte foi uma quinta-feira normal. Rotineira. Como se nada de extraordinário tivesse acontecido na noite anterior.
“Liguei-lhe pelas nove da manhã no dia seguinte porque recebi muitos pedidos de entrevista, mas ele estava a caminho de uma reunião do trabalho. Dez horas depois teve de se levantar da cama para ir trabalhar”, conta Solby Christiansdottir, diretora de comunicação do clube, à Renascença.
Árni foi protagonista de toda a caminhada com seis golos, mas o emprego a tempo inteiro não deu folga. Não foi o único: “Quase todos foram trabalhar na manhã seguinte.”
O plantel é composto de jogadores em diferentes fases da vida. Há quem esteja a tirar o curso de engenharia marinha e "passe umas oito horas por dia na faculdade”, há eletricistas, carpinteiros, vendedores, mecânicos e até educadores de infância. Todos estão integrados na comunidade.
Klaksvik é a segunda maior cidade das Ilhas Faroé, mas tem apenas cerca de cinco mil habitantes: “É uma cidade tão pequena e todos estão todos integrados. Ao fim de semana, lá estão eles a jogar pelo clube.”
O plantel é composto maioritariamente por faroenses. Apenas nove jogadores são estrangeiros e nem esses escapam à realidade do futebol semi-profissional. “Mesmo os que vêm de fora têm de ter outras funções como treinar as camadas jovens”, aponta.
A caminhada do KI até à Liga Conferência foi longa e passou por outras duas competições. O campeão faroense tem vaga assegurada na primeira pré-eliminatória da Liga dos Campeões e o clube surpreendeu ao eliminar o histórico Ferencváros nessa fase. A vitória alimentou esperanças. "Poderá ser este o ano?", questionou Solby na altura.
Seguiu-se o Hacken na segunda eliminatória. Uma nova surpresa e história alcançada. Ninguém esperava que o pequeno e desconhecido KI conseguisse vencer, em dois jogos, o campeão sueco.
“É um verão louco para nós. O jogo na Suécia foi histórico, o sonho tornou-se realidade”, reconhece a dirigente, que simultaneamente ocupa a função de jornalista na TV estatal faroense.
Ao chegar à terceira ronda, era garantido que o KI iria jogar a fase de grupos de uma prova europeia. Restava saber qual. Em caso de derrotas nas rondas que se seguiam, estaria sempre apurado para a Liga Conferência. E foi isso que aconteceu.
O KI ainda venceu a primeira mão, em casa, contra o campeão norueguês, mas acabou por cair da Champions na visita ao Molde. No “play-off” da Liga Europa, voltou a sucumbir. Desta vez contra o Sheriff Tiraspol, da Moldávia.
O que mudou no clube para finalmente alcançar o objetivo? "É uma pergunta que já me fizeram várias vezes, mas não sabemos bem", reconhece a dirigente, mas aponta para um método quase tão antigo quanto a humanidade: tentativa-erro.
"Já era um objetivo do clube há alguns anos. Quando se entra na Liga dos Campeões tens sempre algumas hipóteses. Vencemos a primeira ronda e as pessoas começaram a pensar que este poderia mesmo ser o ano", atira.
Chegar à fase de grupos vem com uma recompensa financeira associada. Para alguns clubes, falhar a Liga dos Campeões - onde se movem os milhões - representa um gigantesco rombo financeiro, mas quando o futebol é praticamente amador, são os milhares que fazem a diferença.
"Temos de fazer obras no estádio", reconhece Solby. A partir da terceira eliminatória, o KI foi obrigado pela UEFA a jogar no estádio nacional, a 40 quilómetros de Klaksvik.
O plano de investimento ainda não está decidido, mas há a certeza que "o dinheiro não vai ser despejado a contratar jogadores caros e a pagar ordenados exorbitantes". "O objetivo é assegurar o futuro do clube", reconhece.
"Acredito que vá ser dividido em partes e investido em diferentes setores do clube que precisam de melhorias", prevê Solby.
O sorteio da Liga Conferência ditou um grupo com o gigante Lille, treinado por Paulo Fonseca, os eslovacos do Slovan Bratislava, e os eslovenos do Olímpia Ljbuljana, orientado pelo português João Henriques.
A equipa soube as equipas que iria defrontar no avião a regressar de Tiraspol. Solby sentiu a felicidade num registo tipicamente nórdico. "Não houve gritos ou festejos. Olharam todos uns para os outros e a pensar: porreiro. Os faroenses não são muito bons a expressar as emoções."
A equipa das Ilhas Faroé perdeu a estreia em casa do Slovan. Hoje joga-se o primeiro jogo de sempre da fase de grupos de uma prova europeia em solo faroense. O treinador português Paulo Fonseca vai apadrinhar o momento.
O grande feito do KI foi chegar à fase de grupos. Esse já está concluído. A mentalidade de tentar surpreender mantém-se, mas "as expectativas já não são tão altas."
O KI sagrou-se tricampeão das Ilhas Faroé no último fim de semana e, por isso, já tem assegurada a presença na Liga dos Campeões do próximo ano. Solby sabe que o próximo grande desafio do clube não está em vencer o Lille. Está já no próximo ano.
"Há muitos fatores de incerteza, mas o objetivo vai ser sempre voltar à fase de grupos no próximo ano", conclui.