Entrevista a Álvaro Domingues

"Vamos com calma. O caminho de ferro não é uma panaceia para toda a gente"

05 mar, 2024 - 19:45 • José Pedro Frazão

O investigador da Universidade do Porto defende a regionalização ou, pelo menos, “uma unidade intermédia” com formas “mais plásticas de relação com a administração local. Em entrevista à Renascença sobre os desafios das cidades, em tempo de legislativas, o geógrafo Álvaro Domingues defende que a mobilidade e os transportes precisam de soluções intermunicipais e só a ação do Estado pode interferir nos preços da habitação, apesar da “burocracia interminável” no aparelho público do setor.

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Falta "flexibilidade" nas soluções de transportes e algo para tapar "um buraco" entre ideologia e mercado no setor da habitação. Álvaro Domingues, geógrafo da Universidade do Porto, lança um olhar na Renascença sobre o que as diversas dimensões que mexem com a malha urbana onde vive a maioria dos portugueses.

Quanto aos partidos na corrida às eleições legislativas, são “politicamente corretos” e até receitam respostas que se assemelham a “antibióticos de largo espectro”. A conversa começa pela definição da própria ideia de cidade.

Encontrou nesta campanha eleitoral respostas dos partidos políticos em relação a questões críticas para as pessoas que vivem nas cidades ou em zonas urbanas, onde encontramos a maior parte da população portuguesa?

Não se ouviu assim diretamente com um discurso dirigido à cidade ou às questões da urbanização. Creio também que não há muitas razões para isso, embora possa parecer paradoxal. Foi Cerdà que cunhou a palavra “urbanismo” em Barcelona, na segunda metade do século XIX, num tempo em que a cidade – assim dizemos porque a maior parte destes aglomerados na Europa estavam dentro de muralhas - sofria uma metamorfose imensa. O século XIX corresponde a um período em que a cidade passou para o urbano, ou seja, deixou de ser um lugar circunscrito claramente no mapa para tomar outra geografia e espacialidade. A urbanização, como nós a conhecemos por esse mundo todo, é um processo e, portanto, modifica-se, vai tomando forma e lugar nas mais diversas circunstâncias.

Estamos a comemorar os 50 anos do 25 de Abril. A democracia em Portugal trouxe, entre muitas outras coisas, o modelo do Estado social, a ideia de que o Estado é o grande regulador da economia, uma entidade política central através que tem recolhidos impostos, das taxas, do próprio setor empresarial do Estado. Esse dinheiro é traduzido no Orçamento geral do Estado e é investido em bens e serviços dirigidos ao cidadão e à equidade social. Foi assim que vimos aquilo que chamamos “cidade” passar por um processo de modernização radical num espaço muito curto e com apoio de fundos comunitários.

[Inclui] tudo o que tem que ver com o sistema de saúde - desde os centros de saúde locais até aos grandes hospitais - com o sistema de ensino - desde o infantário às universidades e politécnicos – um "sem número" de equipamentos e serviços na área do desporto, lazer, cultura, justiça, museologia, etc. E obviamente a habitação, que sempre teve uma pecha muito complicada em Portugal, porque é um assunto que, como muitos outros, está concentrado nas funções do Estado Central.

Em relação à habitação, aquilo que tem vindo a ser debatido não vai ao cerne da questão? Como vê as propostas nesse aspeto?

Vejo uma burocracia interminável. Pela experiência de trabalho com o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana sobre investimentos para habitação que estão na calha - e são imensos - o processo de candidatura dos municípios é complicadíssimo, tal como os procedimentos. Isto não se entende. Ou entende-se, porque no passado, no tempo da ditadura, as primeiras experiências de habitação diziam respeito à Área Metropolitana de Lisboa e depois replicava-se o modelo noutros municípios e também no Porto.

Atualmente, as "equações" da questão da habitação são muito distintas, consoante os municípios. No Porto, por exemplo, há um processo inflacionário imparável que "aqueceu", e de que maneira, com o turismo e já vinha "aquecendo", por causa da oferta de serviços, como as universidades, hospitais, tudo aquilo que proporciona o arrendamento de quartos. Mas se formos para outro município - e às vezes não é preciso ir muito longe - provavelmente o contexto é outro.

As soluções que possam ser preconizadas - desde o parque público, seja do Estado central ou local, às milhentas fórmulas com privados ou com o setor social e com as cooperativas, com a intervenção em edifícios já existentes mas vazios, com a política de solos, etc - se fossem geridos a nível local, tinham outra elasticidade e agilidade. Este e outros temas em geral dependem muito das combinações a nível municipal ou intermunicipal.

Está a dizer que deixem às cidades aquilo que é das cidades?

Não uso a palavra cidades porque acho que não tem conteúdo. Sou geógrafo. Estamos a falar de entidades espaciais. A geografia da urbanização em Portugal, apesar de um país pequeno, não podia ser mais variada. Desde manchas urbanas e quase contínuas, do Porto a Braga até pequenos aglomerados urbanos em Beja ou em Bragança, que nem sequer extravasam a área do município, temos aqui um desencontro muito grande entre a espacialidade do processo de urbanização e o número de entidades que, de alguma forma, têm competências sobre a governança destas questões. Se estivermos a falar de estradas e de autoestradas, é do Ministério das Obras Públicas. Se estivermos a falar de caminho de ferro, já são políticas próprias dentro das obras públicas. Se for a rede elétrica, já é privada. Se for água e saneamento, nuns casos é municipal, noutros casos são concessões a privados, etc.

"Respostas à crise na habitação? Vejo uma burocracia interminável"

Qual é o melhor modelo?

Não há. Se essa pergunta tivesse uma resposta assim direta, era muito boa. O melhor modelo não pode aparecer no abstrato, nem num mundo utópico. Tem que partir das circunstâncias que existem no momento. E tem que ser encontrado dessa maneira.

Pareceu-me que estava a "descer a malha" aos municípios.

Nuns casos, sim. Noutros casos devem ser soluções intermunicipais.

O que seria mais intermunicipal?

Pode ser, por exemplo, a mobilidade e transportes, envolvendo um passe único e um sistema de metropolitano e autocarros. E os desafios da mobilidade elétrica e dos postos de carregamento, etc... que mexem com várias instituições, públicas e privadas, e modalidades de acordo entre umas e outras. E mexem também com decisões do Governo. Por exemplo, como é que a rede de Metro liga ao aeroporto? Como é que um intermodal se relaciona com os transportes coletivos, públicos ou privados? E já não estamos apenas na escala concelhia. Provavelmente precisaríamos de planos que tivessem indicações e informação segura - temos muita falta de informação - em "traço grosso" sobre as grandes questões e desafios desses sistemas. E depois conseguir alguns acertos com a localização dos grandes polos de procura e de oferta de transportes.

O Ministério da Saúde, por exemplo, pode estar a decidir localizar um hospital. Ou o IHRU pode estar a decidir localizar um conjunto de habitação a preços ou rendas controladas. E isso está desfasado do sistema de transporte. O sistema em si não existe isoladamente, depende muito sobretudo de onde é que se localizam as atividades, uma vez que a residência está por todo o lado, mais ou menos espalhada de forma mais homogénea na urbanização.

Alguns partidos defendem novamente a regionalização. Isso faria a diferença?

Claro. Nunca percebi porque é que essa discussão em Portugal está sempre envenenada. Ou se calhar percebemos, porque desde D. Afonso Henriques que tudo está centralizado. Portanto, já são uns séculos, não é uma "doença" recente, já é genético. E tem-se vindo a concentrar cada vez mais. Temos assistido a coisas disfuncionais, como o excesso de burocracia. E sobre essa burocracia [surgem] os instrumentos eletrónicos . E depois, o cidadão fala com um instrumento eletrónico.

Faz sentido a proposta de alargamento do parque público de habitação em 5% no médio prazo como propõe o PS?

Claro. O problema é que o setor tem uma inércia enorme. Não se resolve assim de um ano para o outro. O último programa que tivemos de habitação pública foi há quase 20 anos. Tinha que haver uma atenção permanente sobre essa questão, porque o sistema é muito dinâmico. Na população alvo, por exemplo, o fenómeno do empobrecimento da classe média é uma coisa muito recente. Os desafios postos pelo envelhecimento ou pelas migrações são recentes. É um setor muito dinâmico e sensível a outras coisas, nomeadamente à questão financeira.

"Não é verdade que o caminho de ferro seja uma panaceia geral para toda a gente. Há outros sistemas"

A AD propõe "a flexibilização das limitações de ocupação do solo, densidade urbanística e requisitos de construção". E mais à frente, propõe também "a injeção no mercado praticamente automática de imóveis e solos devolutos ou subutilizados". Isto não é uma rutura com o paradigma que temos?

Não, é um enunciado genérico como todos os outros. Posso ler isso de muitas maneiras. Então posso urbanizar em qualquer lado, nem que seja completamente fora do sistema de transportes e mobilidade, desde que haja terreno? Ou então, num lugar onde o PDM só deixa construir 3 pisos, uma vez que o serviço de infraestruturas e sistemas de transporte de energia e telecomunicações responde, posso construir 6 pisos? Estas 2 possibilidades são completamente distintas uma da outra e cabem nessa afirmação. Não vamos lá com essas coisas genéricas que são quase consensuais pela forma vaga com que são ditas. Vamos lá com coisas muito concretas no terreno.

Por exemplo, na mobilidade, o que diz da forma como todos os partidos querem acelerar a ferrovia?

Lá está, este é um mapa nacional ou ibérico e já tem pouco a ver com isto de que estamos a falar. E nalguns casos, pode até dar um desastre parecido com o que aconteceu no final do século XIX, no tempo de Fontes Pereira de Melo, quando se achava que a rede de comboios tinha que unir as cidades todas quaisquer que fosse o tamanho da cidade, o que não tem lógica. Um investimento, seja qual for, tem que ser proporcional à intensidade do uso que se faz desse sistema.

A ideia de chegar com ferrovia a todo o lado não faz sentido?

A todo o lado, não, de forma nenhuma. O sistema ferroviário é pesado e caríssimo em termos de construção e de manutenção. O mapa do povoamento em Portugal é extremamente assimétrico, com vastíssimas áreas com uma densidade demográfica muito reduzida e dimensões de aglomerados urbanos que dificilmente chegam às 50 mil pessoas. E, portanto, vamos com calma. Há que perceber quais são as prioridades ao nível da ligação com o TGV, para os transportes das pessoas no quadro da Península Ibérica e a importância das mercadorias e a sua relação com os interfaces portuários.

O resto depende muito das circunstâncias no terreno - ou seja, linhas que já existam e que se possam recuperar - e depois de alternativas. Não há só comboios, cada vez há mais veículos de todos os tamanhos e feitios, modos de tração elétricos ou não. Não é verdade que o caminho de ferro seja uma panaceia geral para toda a gente. Há outros sistemas tecnológicos que, imediatamente e com custos baixos, têm graus de cobertura muito grandes, como, por exemplo, a rede elétrica ou telecomunicações. Ou até as próprias estradas.

No caso da ferrovia há casos mais particulares. Há a ideia, por exemplo, de replicar na zona do Cávado/ Ave um sistema de mobilidade que está a ser proposto.

Nessa zona, exatamente como estamos a falar de uma área de urbanização muito difusa, mas ao mesmo tempo, com uma distribuição de emprego que está por todo o lado, provavelmente não é um sistema rígido de transportes que é necessário, mas sim um sistema flexível, um transporte que possa sair dos eixos, que não tenha a rigidez que tem uma rede de caminho de ferro.

Um sistema de Metrobus ?

Agora fala-se muito nisso. Conheço soluções pesadas de Metrobus, como por exemplo, na Cidade do México. Estamos a falar de sistemas de massas. O Metrobus é um sistema bastante pesado. Eu acho que há em Portugal uma linha base que automaticamente aciona semáforos e, portanto, vai 'limpando o caminho' na sua frente. Se calhar era mais barato.

É proposto por alguns partidos para cidades como Guimarães, Leiria, Viseu, Faro ou Coimbra.

Agora encontra isso em todo o lado. Transformou-se numa espécie de antibiótico de largo espectro. Às vezes é uma perversão, significa que alguém algures tem um projeto-tipo, uma tecnologia e uma forma de construir tipo "chave na mão". E depois pensa-se pouco se aquela era de facto a solução ideal.

Referiu que há cada vez mais carros. Há de facto uma suposta transferência para o chamado “paradigma elétrico”, que levanta ainda dúvidas sobre a sua aplicação prática. Ou seja, os partidos querem todos apostar na ferrovia e desincentivar o carro. No entanto, há cada vez mais carros.

Os partidos fazem eco uns dos outros e tendem muito para o politicamente correto. Por exemplo, um sistema Uber – imaginando que se resolvia o problema da exploração de mão-de-obra tenebrosa – é um sistema "on demand" com preços, convenhamos, muito baixos. Creio que nestes sistemas de transporte público "a pedido", para indivíduos ou para grupos, a tecnologia das plataformas eletrónicas e do digital é a que melhor funciona e onde melhor se podem testar tipos de veículos completamente diferentes. No passado recente, a dicotomia entre transporte próprio – o automóvel - e transporte público – com o metropolitano e os autocarros - era muito clara. A bicicleta não entrava porque, em Portugal, nunca pegou muito e não se ouvia falar muito de motorizadas.

Hoje há uma diversidade de tecnologias e de sistemas de mobilidade de pessoas, com várias formas de organização desses sistemas. Existem por vezes sistemas dedicados, como o transporte escolar, ou o caso de fábricas e empresas gerem os seus próprios sistemas, com pequenos autocarros que passam por pontos num circuito. Através de SMS, a pessoa sabe que tem uma tolerância de alguns minutos para estar naquele lugar e vai gerindo a sua vida. Vejo que, no futuro, estas soluções flexíveis terão cada vez mais importância e partem de cenários completamente diferentes. Não há a ideia de ter a mesma solução para todos.

Regressando à habitação, alguns partidos propõe uma intervenção nos preços da habitação de alguma forma seja por incentivos ou de forma mais direta. Vemos atualmente uma expansão geográfica do aumento dos preços da habitação à venda ou de arrendamento. O que é que era preciso fazer neste domínio? Há algum lote de medidas que, na sua opinião, poderiam refletir sobre este impacto?

Só estou a ver um aumento da ação do Estado, não estou a ver outra maneira. A evolução, que já não é de agora, mas que se intensificou, é que a habitação é uma mercadoria como outra qualquer.

"Cada Ministério é uma capela. Tem o seu mapa de Portugal. Vê as prioridades de uma maneira ou de outra e está no terreno com as suas próprias tropas"

Mas a ação do Estado não é apenas a habitação pública.

Logo veremos. Eu falo em ações por iniciativa do Estado. Depois o Estado, como qualquer operador, pode optar por um sistema de rendas resolúveis ou para um sistema de arrendamento. Para ‘ter mão’ no preço, tem de ser o Estado a fazê-lo, pelo menos em parte, como em qualquer país da União Europeia.

Portugal é muito procurado para investimentos e os terrenos e a habitação eram muito baratos há alguns anos. Portanto, isto era uma espécie de 'mina', em que qualquer investimento tinha uma taxa de rentabilidade rapidíssima. Ainda o prédio não tinha saído do chão e já tinha havido três vendas sobre o edifício. Estamos a falar em poder de compra de alguém que vem de França ou de um fundo de pensões, ou do que quer que seja. Esse mercado não tem nada a ver com os salários miseráveis que há em Portugal.

Imagino que uma empresa de construção pensará que se pode trabalhar no mercado de luxo, sem aquelas complicações habituais dos créditos dos bancos, porque vai trabalhar num sistema "low cost". Por isso, o que se vê é construção de preço alto ou de luxo. E as pessoas às vezes ficam perplexas sobre quem é que compra casas de 3 milhões de euros como estou a ver em Vila Nova de Gaia. É um setor muito dinâmico e que tem cada vez menos a ver com a procura real que existe e com as questões da habitação tal como as vemos.

Há aqui um "buraco" enorme entre a questão ideológica – o direito à habitação está consignado na Constituição, tal como a saúde ou a educação, como cantava o Sérgio Godinho, que fazem parte da dignidade humana – e, ao lado disso, um negócio global onde aparece uma diversidade enorme de operadores, de dinheiro em jogo e de operações imobiliárias. Estas duas formulações do problema não têm nada a ver uma com a outra. A segunda "envenena" a primeira.

Do ponto de vista organizacional, faz algum sentido agregar todas estas preocupações num Ministério algo transversal?

Não, aquilo que nos diz o bom senso e a experiência de outros países é que, pelo célebre princípio da subsidiariedade, as soluções têm que que são muito variadas para uma sociedade muito contraditória num território também muito diverso. As combinações têm de ser encontradas a nível local. E depois, a nível central, tem de haver agilidade. Cada Ministério é uma capela. Há uma dificuldade enorme de dialogar com o Ministério do lado. Se uma estação de metro, um hospital decidido pelo Ministério da Saúde e uma universidade decidida pelo Ministério da Educação, calharem no mesmo sítio é uma sorte. É essa a tradição dos ministérios, cada um tem o seu financiamento, a sua forma de testar aquilo que foi legado do governo anterior, os seus fundos europeus, a capacidade de discutir isto e aquilo no orçamento. Cada um tem o seu mapa de Portugal. Vê as prioridades de uma maneira ou de outra e está no terreno com as suas próprias "tropas".

Podia haver um Ministro que coordenasse isso?

Podia haver no Governo alguém que fizesse uma mediação, mas não pode ser com centenas de municípios. Tem de haver uma unidade de decisão intermédia, com formas mais plásticas de relação entre municípios. Na área metropolitana que conheço melhor, o chamado grande Porto, temos ao mesmo tempo uma refinaria que fechou - e que será outra coisa - um Porto de mar, um aeroporto, uma rede de autoestradas, etc. Tudo isto são materiais urbanos, pesados, que exigem decisões concertadas, que têm muitas inter-relações e que mexem com a vida quotidiana, e não apenas com as empresas de logística e dos contentores.

Em França já se fizeram várias tentativas de ter planos estratégicos, que tentam traçar as grandes linhas sobre o que está mais funcional ou que podia melhorar o sistema, sabendo à partida que os níveis de decisão, as tutelas, ser público ou privado, ser um serviço concessionado, tudo isso é distinto. Tenta-se simular e depois encontrar sistemas de governação, fórmulas mais ou menos ajustadas a esse cenário. Em Portugal temos a falta das duas coisas. Não temos muito a tradição do planeamento estratégico e temos uma rigidez institucional muito grande. Os municípios gerem o que não chega a 10% do Orçamento do Estado. Ao mesmo tempo, há uma fragmentação, um abismo entre o que é local, municipal e nacional. E depois há cada vez mais coisas que eram tutela do Estado e se moviam por questões de interesse público e que hoje são negócios, porque foram privatizados ou concessionados.

A maior operação que concilia todos estes planos é o projetado novo aeroporto para Lisboa.

E está refém de uma empresa privada francesa.

Supostamente é um projeto que junta tudo isto: habitação, mobilidade, plano local, região e nacional.

Sim, e não é por acaso que andamos décadas à volta disto. Houve um tempo em que o Estado tinha na mão a maior parte da legislação e da capacidade de decisão. A tendência é que essa capacidade será cada vez mais partilhada e dependente de outros interesses. É isso que significa o liberalismo e a globalização. As coisas acontecem à nossa porta no nosso município, etc... mas quem são as instituições que estão no terreno e quais os interesses que as movem? Umas vezes somos cidadãos e temos direitos, outras vezes, ao contrário, somos clientes e só temos de pagar. E outras vezes ainda somos utentes, podemo-nos juntar para gritar muito. Este é o drama. É melhor não confiar em teses muito maximalistas da coerência do ordenamento, porque O tempo está para esta certa opacidade e complexidade. E, portanto, tem de haver formas ágeis de atuação, muito atentas, sempre em cima do acontecimento, a ver como as coisas estão a mudar, porque precisam de uma decisão rápida e adaptada às circunstâncias.

Ainda temos muito aquela ideia de que se faz um grande estudo que articula tudo - o adjetivo "articulado" é usado até ao cansaço - e depois há um período de discussão pública. Mas quando isso acontece, as coisas mudaram e entraram temas novos. As questões ditas ambientais não tinham a importância que têm hoje e o número de incógnitas da equação vai aumentando. Não há aqui uma entidade milagrosa que seja capaz de traçar uma diagonal e apanhar a parte melhor de todas as incógnitas, porque muitas vezes são mesmo incompatíveis umas com as outras. Portanto, será preciso sempre abdicar de qualquer uma delas.

E depois há problemas do financiamento, de como juridicamente se negoceia uma parceria capaz de dar maiores garantias ao Estado. Não é fácil. Quem está na gestão das coisas públicas sabe que não pode ter esta administração pública de uma rigidez incrível, subfinanciada há anos, envelhecida e com uma dificuldade muito grande para enquadrar novos quadros com outras competências. Vejo um esquema muito rígido e ao mesmo tempo observo que os desafios são cada vez mais diversos, mudam com maior rapidez e, sobretudo, não são ditados pela conjuntura portuguesa, mas pela conjuntura europeia e global.

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