A+ / A-

ENTREVISTA

Cerveja, biscoitos, pintura e um miradouro. Como a criatividade de um padre transforma igreja em Lisboa

24 mai, 2024 - 06:19 • Ângela Roque

São precisos 220 mil euros para restaurar altares e obras de arte da igreja de Santa Cruz do Castelo, em Lisboa. Em entrevista à Renascença o pároco, Edgar Clara, que antes já dinamizou a recuperação da igreja de São Cristóvão, fala do programa cultural com que espera angariar fundos e do desafio que é aproximar de Deus quem passa, num local da cidade que recebe “três milhões de turistas por ano”.

A+ / A-
Padre Edgar Clara
Foto: DR

O projeto de restauro da igreja de Santa Cruz do Castelo, em Lisboa, entra numa nova fase em junho. No início do mês terá início o arranjo dos altares, mas há todo um programa cultural planeado para os próximos dois anos, para conseguir reunir 220 mil euros para a preservação do património da igreja, que nasceu aquando da conquista de Lisboa, e teve de ser reconstruída depois do terramoto de 1755.

Entre as iniciativas previstas está o lançamento de uma cerveja artesanal de medronho e cardamomo, a ‘Santa Cruz’, e de um biscoito com o mesmo nome e aroma a alfazema. Mas, vai ser também possível assistir ao restauro, ao vivo, de várias pinturas, à semelhança do que aconteceu na igreja de São Cristóvão, uma das nove que Edgar Clara tem a seu cargo na zona histórica de Lisboa. Nesta, do Castelo, o sacerdote espera conseguir resultados idênticos. Os quadros, cerca de 50, vieram de conventos da Cartuxa, aquando da expulsão das Ordens Religiosas, e atualmente nem sequer estão expostos.

Uma das fontes de receita continua a ser o miradouro em que se tornou a Torre Sineira da Igreja, à qual é possível subir desde há seis anos. Num local da cidade turístico por excelência, acredita que muitos se aproximam de Deus quando ali entram.

Em entrevista à Renascença o padre Edgar fala do projeto com o qual espera recuperar mais este espaço de culto, convicto de que a arte ajuda a aprofundar a fé. Diz mesmo que “mais do que ajudar, a arte atrai, e a Igreja devia investir mais nisto, como fez no passado”.

O que é que vai acontecer na Igreja do Castelo de São Jorge?

Uma das coisas que procuramos fazer é que o programa de restauro não seja apenas atrair as pessoas para deixarem o dinheiro, mas que as próprias pessoas possam admirar e contemplar a beleza, não apenas daquilo que temos neste momento, mas de tudo aquilo que temos e que veio por trás. Por exemplo, há imensas telas que nos chegaram dos conventos extintos da Cartuxa de Évora e da Cartuxa de Caxias, em que as pessoas podem vir ver não apenas o que são essas telas, mas vir também ver restaurar as telas.

Isto é, haverá momentos em que faremos restauros ao vivo. Haverá momentos em que faremos exposições fotográficas e haverá momentos em que faremos também visitas guiadas. Tudo isto já está programado: em Julho visitas guiadas, em Setembro iniciaremos a exposição com a Relíquia da Santa Cruz, com um Relicário Antiquíssimo. Depois, em Outubro, faremos os restauros ao vivo. Agora em junho, uma das coisas que quisemos fazer foi uma cerveja artesanal e uns biscoitos que dá para metermos a Igreja da Santa Cruz na boca e na barriga de toda a gente, para que as pessoas saiam de cá marcadas não apenas com algo antigo, mas também algo que é da nossa cultura contemporânea. E parece me que este encontro entre a cultura que nos chega do nosso passado, do nosso património e a cultura contemporânea, é algo que poderá ajudar a um diálogo maior com os nossos fiéis e até todas as pessoas que passam à frente desta Igreja que não e que não participam do cristianismo.

Qual é o valor cultural, histórico e artístico desta Igreja? O que é que precisa de ser restaurado?

Esta Igreja, do ponto de vista histórico, tem uma importância enorme. Quando chegaram aqui os Cruzados, eles nem sequer sabiam que existia uma comunidade católica, dos moçárabes (cristãos ibéricos que viviam sob o governo muçulmano em Al-Andalus), cuja catedral ficava onde hoje é a Igreja de São Cristóvão - que também foi objeto de um programa cultural, há uns seis ou sete anos.

Um programa muito semelhante a este...

Muito semelhante, sim. E o que é que aconteceu? Eles chegaram e celebraram aqui a primeira Missa com os Cruzados, e fizeram aqui a primeira paróquia. Podemos dizer que aqui é o berço da própria cidade.

Os visitantes podem ver essa história num pequeno vídeo, de sete minutos, que criámos e que vai desde o princípio, quando chegaram os Cruzados aqui, até aos dias de hoje. Essa história foi recriada em desenhos animados, em três painéis imersivos, em que as pessoas estão num quarto escuro e podem entrar dentro de várias coisas, entre as quais, por exemplo, alguns quadros que estão no Museu Nacional de Arte Antiga e outros que estão no Museu do Azulejo, quadros sobre a cidade de Lisboa. Desde a entrega das chaves da cidade aos cristãos pelos muçulmanos, como é que era a cidade de Lisboa naquele tempo, todos esses quadros nos ajudaram a repor o imaginário daqueles tempos.

Esta Igreja sofreu dois terramotos, e a contemporânea foi reconstruída depois do último, de 1755, e três anos depois foi reposta.

Pensa-se que por baixo desta igreja estejam as estruturas da antiga mesquita. Essa parte foi a primeira que fizemos, com uma empresa de arqueologia. Vieram ajudar-nos e fizeram uma sondagem com um georadar, em que se pode estudar tudo o que está por baixo das pedras: isto é, os túmulos, as galerias. Tudo o que há por baixo do chão da igreja está neste momento a ser estudado e tratado do ponto de vista gráfico, bem como a realização de um 3D de tudo.

Esta é a importância das coisas que vamos fazendo: procuramos estudar o património para divulgar o próprio património, porque sabemos que essa é a melhor maneira de podermos divulgar e conservar o património. Aquilo que não é conhecido não é divulgado, nem objeto de restauro.

E em termos de peças artísticas que a Igreja tem, do acervo artístico?

Penso que a coisa mais bonita e mais importante que temos é realmente o relicário da Santa Cruz, que atrai muita gente para vir ver esse relicário. Ele tem pouco mais de um palmo e meio, mas depois tem todos os rendilhados próprios de há 500 anos, daquele período artístico.

Depois há um conjunto de telas dos cartuchos, que vieram da Cartuxa de Évora, que representam os mártires da Cartuxa de Londres, têm uma beleza incrível e são esses que vão ser objeto de restauro ao vivo, bem como os da Cartuxa de Caxias.

Já conseguimos identificar que o apostolário - série de apóstolos - veio da Cartuxa de Caxias. Porque depois da extinção das ordens religiosas, muitos dos quadros dos mosteiros dos conventos foram redistribuídos, não apenas para o Museu Nacional de Arte Antiga e para o depósito do Governo, mas também entre as igrejas da cidade de Lisboa, e por isso é que mandaram cerca de 12 quadros, só de cartuxos.

E isso tudo vai ser restaurado?

Exatamente. No próximo mês, logo no início, começa o restauro dos altares, que estão em muito mau estado, são em madeira, que está a cair, toda a parte pictórica está em risco de se perder. Esta intervenção é a mais urgente, para já. O restauro dos seis altares que temos, bem como uma pintura de Pedro Alexandrino que está na capela do Santíssimo Sacramento.

Tudo isto será objeto, este ano e no próximo, de se poder ver ao vivo depois de estar restaurado, porque depois de estarem limpas as peças ganham um brilho maior, avivam-se as cores. Se pensar na última experiência que tive, na Igreja de São Cristóvão, onde 12 das 35 telas já estão restauradas, podemos ver claramente a diferença entre o antes e o depois. É como se, de repente, tivessem ressuscitado as imagens que estavam dentro daqueles quadros.

O projeto já tem um valor estimado? Qual é?

No total deve ser à volta dos 220 mil euros, não apenas os altares que estão dentro da igreja, mas também todas estas telas que chegaram até nós, e são 50 telas. É meu desejo que, depois de restauradas, deixem de ficar em depósito e possam estar em exposição permanentes aqui na Igreja. Penso que algumas até poderão estar em exposições fora, itinerantes, pela beleza que têm.

Essas telas já tenham estado aí originalmente?

Estiveram sempre cá desde a extinção das ordens religiosas, quando vieram para cá e aqui ficaram. Nas fotografias que temos, de há 100 anos, vemo-las colocadas nas paredes. Depois, quando se restaurou o telhado e a parte pictórica na própria parede, há 20, 25 anos, tiraram-se os quadros e já não se voltaram a pôr, até porque não pertenciam à igreja original.

Esse restauro vai começar em junho?

Em junho faremos já duas coisas: o restauro do primeiro altar e o lançamento da cerveja e de um biscoito. O restauro do altar começa no início de junho, e no final desse mês lançamos a cerveja - que estive a fazer na semana passada, com alguns técnicos, e que será de cardamomo e de medronho.

Como é que chegaram a essa mistura, e onde é que está a ser feita a cerveja?

É uma cerveja artesanal. Mandei fazer 1000 litros, portanto, vou ter o desafio de vender pelo menos três mil garrafas, é a primeira encomenda que fiz. Está a ser feita em Leiria, numa empresa que se chama Xô, e é evidente que o pouco que fiz foi estar com a equipa a trabalhar nas coisas essenciais, porque depois quem tem a ciência são os próprios profissionais. Eu sou apenas um padre que celebra missas, e pouco mais...

E também provador, calculo?

Claro! Provei as outras todas que lá estavam e espero continuar a fazer, depois desta, muitas outras. Espero lançá-las todas!

Cerveja artesanal e um biscoito Santa Cruz...

A cerveja vai-se chamar Santa Cruz, e o biscoito também. Vai ser de alfazema. A nossa boleira, a Carina, deu-me a provar alguns para eu escolher, e eu disse 'isto é uma das coisas que nos entra pelo nariz e raramente pela boca'. Tem um sabor completamente diferente daquilo a que estamos habituados no nosso dia a dia, na nossa dieta.

Estas são formas de angariar fundos para este restauro, para esta empreitada que tem agora pela frente...

Exatamente. Este projeto já começou há seis anos, quando abrimos a igreja com a parceria da "Wonderful Day", que permite que os turistas estrangeiros, e os que são da nossa cidade e do nosso país, subam à torre da igreja do Castelo, que vejam o que é uma Torre de igreja, o que é que são os sinos, e que possam ver a cidade de Lisboa. Porque a partir daqui conseguimos ver desde a Ponte Vasco da Gama, toda a margem Sul, até ao Cristo-Rei. É uma vista única, não apenas porque conseguimos ver toda a parte voltada sobre Alfama, mas principalmente porque as pessoas podem fazer esta experiência de subir e de estar ali um pouco, desfrutar. Uma das coisas que fazemos é oferecer às pessoas uma bebida portuguesa, um sumo, uma cerveja portuguesa, ou um vinho português. Um vinho do Porto de missa, que habitualmente usamos. Cada pessoa é presenteada com uma destas coisas, para poder fazer esta experiência do que é viver em Portugal.

À frente desta igreja estão a passar 3 milhões de turistas por ano, neste momento! Dar-lhes alguma coisa, alguma experiência da nossa cultura, é uma coisa muito importante. Que venham cá e que não comam ou bebam uma coisa italiana - não que as coisas italianas não sejam boas, mas se vêm a Portugal, que comam o que é nosso.

Na loja, uma das coisas que temos juntado são bens comestíveis feitos nos mosteiros de Portugal, desde bolachas feitas nas Monjas da Visitação, até ao célebre licor feito no Mosteiro de Singeverga, dos beneditinos. Portanto, também a própria cultura católica está aqui espelhada.

Tem sido uma boa fonte de receitas, a subida à Torre?

Tem sido não apenas uma fonte de receita, mas principalmente aquela que me tem possibilitado fazer uma coisa que é o meu desejo para todas as nove igrejas que tenho a cargo, que é abrir a igreja.

Esta durante 30 anos esteve praticamente fechada, só abria para o culto. Este desejo que temos -- que eu tenho e que a paróquia tem - de abrir as igrejas, é o que nos tem permitido pagar aos guardiães desta igreja. Estão neste momento nove jovens a trabalhar, desde as 10h00 até às 21h00, estão permanentemente aqui a receber as pessoas, a acolhê-las.

Tudo o que não é templo, tudo o que não está dentro da Igreja é pago - a subida à Torre e tudo o mais. Eu desejo sempre que estes projetos sejam sustentáveis, por isso, entrar na igreja é gratuito, para que possamos contemplar a beleza. As outras atividades, essas são pagas, porque é aquilo que nos permite depois sustentar o culto.

Que outros apoios e parcerias é que já têm garantidos para este projeto de revitalização da Igreja?

Estamos neste momento a ver com a Renova como podemos fazer uma exposição de umas fotografias que foram tiradas há uns anos, sobre as bem aventuranças.

Às vezes o dinheiro não é tudo, as parcerias não valem apenas pelo dinheiro que nos possam dar, mas por aquilo que podemos proporcionar a que as pessoas sejam atraídas aqui.

É muito difícil eu pedir um milhão de euros a uma pessoa - posso pedir, mas não me vão dar. Mas, se eu pedir um euro a um milhão de pessoas, torna-se um sonho possível. Por isso esta é, digamos assim, a minha estratégia.

Depois, com a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, temos sempre mantido. A exposição fotográfica, por exemplo, onde as pessoas podem ver como é que era o bairro do Castelo há 40, 50 ou 60 anos, continua cá, e foi uma das parcerias que fizemos com a Junta.

O padre Edgar está muito empenhado no trabalho de revitalização destas igrejas nesta zona histórica de Lisboa, onde passam, como referiu há pouco, muitos turistas. Está a conseguir levar mais pessoas à Igreja? Isto também consegue dinamizar os cristãos?

Também. É muito curioso perceber isto: depois de ter restaurado algumas telas em São Cristóvão, já havia mais pessoas a sentarem-se, a contemplarem e a rezarem. A partir do momento em que meti uma iluminação um pouco melhor, então começámos a ver que o tempo em que as pessoas estão dentro da igreja a rezar ou a ver, a contemplar a beleza, é muito maior. Não é apenas um toque e foge, já é um olhar, um penetrar nos mistérios que estão ali dentro.

Assim como aqui no Castelo, é algo que percebemos: a quantidade de pessoas que vêm diante da Santa Cruz e que se ajoelham, acendem uma vela, estão e rezam. É algo absolutamente fantástico! Isso tem permitido perceber que há muitas pessoas que se aproximam da Eucaristia por causa da beleza. Isto é, entrar dentro de um templo, de uma celebração, ao pé de uma comunidade que reza e que tem as coisas cuidadas, é algo de espantoso.

Há depois uma outra coisa que me parece importante no trabalho que tenho desenvolvido... Eu poder-me-ia lamentar - e lamento muitas vezes - que aqui só vêm oito, 10, 15 pessoas. Quando estão 15 eu sinto-me o Papa na Praça de São Pedro, já é uma multidão! Mas, tenho de pensar que vivem aqui 50 ou 60 pessoas, que só tenho estas pessoas na Missa, mas tenho muito mais fiéis por cinco minutos.

O que eu estou a criar são experiências espirituais, católicas, religiosas, para que aqueles que aqui passam durante cinco minutos se possam encontrar com Deus. É uma oportunidade que temos de poder entrar em diálogo com os homens e as mulheres que aqui passam, porque no fundo, é isto que se passa em todo o lado. Podemos não ter uma comunidade permanente, mas temos uma comunidade de gente por cinco minutos, ao longo de todo o ano. Então, podemos lamentar-nos de uma coisa, mas não nos podemos lamentar da outra.

Claro que isto exige muito de nós, porque as pessoas que estão aqui lembram-se que há 40 anos havia duas mil pessoas aqui a viver, havia 300 pessoas que iam à missa e hoje estão mais velhas. Garantir, por exemplo, a limpeza disto tudo tem custos, porque já não são só as pessoas daqui que fazem a limpeza, já temos de ter gente que permanentemente limpe, porque três milhões de pessoas a passarem à frente da igreja, mesmo que sejam só 300 mil, 10 por cento, exige de nós uma logística muito maior.

A arte ajuda a essa aproximação?

A arte atrai. Mais do que ajudar, a arte atrai. Nós somos atraídos pela beleza e isto é algo que eu penso que a Igreja Católica devia de investir no futuro, tal como investiu no passado.

É claro que a arte é um parente pobre, digamos assim, porque exige muitos ricos. Manter património do passado e construir um património do futuro exige da nossa parte um investimento em arte, em dinheiro, coisa que muitas vezes não temos, e por isso temos de ser criativos e inventivos.

Tópicos
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+