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Entrevista

D. Rui Valério: “Levamos um grande desafio para apostar numa pastoral com os migrantes”

23 mai, 2024 - 23:21 • Ana Catarina André, enviada da Renascença a Roma

O Patriarca de Lisboa adianta que, ao longo da visita ad limina, os bispos portugueses foram incentivados a serem inovadores, a terem uma “linguagem de proximidade”, para que “se alcance a integração plena” daqueles que procuram Portugal para viver e para trabalhar.

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A visita ad limina dos bispos portugueses, que termina esta sexta-feira, dia 24, com a audiência com o Papa Francisco, centrou-se nos jovens, nos migrantes e “na crise de paz que o mundo atravessa”. Em entrevista à Renascença, o Patriarca de Lisboa, D. Rui Valério, adianta, a propósito da crescente polarização da sociedade, no contexto da campanha para as eleições europeias, que “falta paciência para escutar o que o cidadão quer, o que deseja, e também o que propõe”.

“Há um outro ponto que, de certa forma, está nas prioridades da Santa Igreja: as novas expressões que a sociedade está a encontrar para expressar as suas frustrações”, acrescenta o bispo.

Nestes contactos com a Santa Sé, no âmbito da visita ad limina, quais foram as áreas e os temas em que foram dadas mais sugestões para que a Igreja em Portugal reinvente a sua ação?

Foi uma visita ad limina que abordou praticamente a totalidade das dimensões, dos problemas e dos desafios que se colocam hoje, seja à Igreja Universal, seja à Igreja particular. No entanto, penso que há três áreas onde aquilo que nos foi transmitido nos responsabiliza mais enquanto Igreja local. Desde logo, uma acentuação para investir muito ao nível da pastoral juvenil. Foi transversal a todos os dicastérios – dicastérios são os diversos ministérios da administração da Santa Sé – a referência à Jornada Mundial da Juventude, o que é uma clara forma de nos dizer: Portugal representa para nós, Igreja universal, o desconfinamento espiritual da humanidade, nomeadamente com o protagonismo dos jovens, então continuai nessa senda.

Em segundo lugar, esteve muito presente, e foram também quase transversais, as novas realidades sociais, nomeadamente os migrantes. Poderíamos dizer que são os novos pobres que povoam a geografia humana, social e cultural do nosso país, e, portanto, também a esse nível, levamos um grande desafio, nomeadamente para apostar muito numa pastoral com os migrantes. O que significa isso? Significa, antes de mais, encontrar uma linguagem que nos permita chegar até eles, uma linguagem de proximidade. Em segundo lugar, para que mediante essa linguagem e essa proximidade, se alcance a integração plena, a fim de haver uma resposta cabal àquilo que procuram esses irmãos e essas irmãs nossas.

Usando as estruturas já existentes?

Quando for suficiente, sim. Nos casos em que não for, fomos profundamente tocados para sermos inovadores também nesse campo. A certo ponto estávamos a pensar, embora isso não tenha sido dito explicitamente, que porventura seria oportuno até ir para além [disso]. É já uma máxima e um lugar-comum do Papa Francisco e de todos os seus mais diretos colaboradores: quando o que sempre se fez se revelar insuficiente ou não [estiver] jamais à altura de responder àquilo que é necessário, [devemos] ir muito mais para além disso.

Referiu três áreas de atuação.

Em terceiro [lugar] é o contexto internacional. Poderíamos estar aqui a referir a situação dos dois conflitos que, neste momento, mais nos atormentam, mas quando se fala desta sensibilidade universal, planetária, está-se a falar, obviamente, da crise de paz que o mundo atualmente atravessa, mas [também] de todas as outras crises, nomeadamente a ecológica, [mas também] o crescente modo como a sociedade está a produzir seres humanos descartáveis. Depois, há um outro ponto que, de certa forma, está nas prioridades da Santa Igreja: as novas expressões que a sociedade está a encontrar para expressar as suas frustrações, as suas expectativas. Aqui, obviamente, estamos a falar seja numa vertente cultural, seja numa vertente de tendência política.

Refere-se a frustrações comportamentais, espirituais, ou da ordem dos valores?

Falamos das frustrações do ser humano sobretudo pela diminuição da capacidade de a humanidade acreditar na esperança. Isto resultou de tantas vicissitudes. Talvez a pandemia tenha acentuado demasiado a expectativa que se estava a criar. Ora, quando uma sociedade está ou se sente frustrada normalmente como é que expressa essa frustração? É em opções, em tendências, em estradas, que nem sempre, digo eu, são aquelas que mais respeitam os passos civilizacionais que a humanidade, entretanto, já tenha dado. Aliás, o conflito da Rússia-Ucrânia e o conflito do Médio Oriente vieram agravar e aprofundar ainda mais essa sensação. Se a humanidade no seu todo já não estava muito confiante – havia alguns rasgos de desespero –, então esses dois conflitos vieram agravar essa situação, a tal ponto que podemos falar de retrocesso civilizacional.

A campanha para as eleições europeias tem sido marcada pelo tema das migrações e por alguns episódios de racismo em Portugal. Em que é que estamos a falhar enquanto sociedade?

Antes de abordarmos a questão do conteúdo, se me permite, acho que seria importante abordarmos a questão do contexto. Estas europeias, tal como já tinha acontecido nas legislativas, estão a acontecer numa moldura, num contexto de muita polarização. Isso é mau, porque significa que qualquer proposta, é logo colocada num dos extremos, ou seja, eu cidadão eleitor, que estou a ser chamado, em vista até dos princípios de cidadania, a pronunciar-me sobre o destino deste maravilhoso continente, olho para as diversas propostas, as diversas perspetivas, e dificilmente, eu cidadão, consigo integrá-los numa lógica do equilíbrio, da ponderação. É um desafio. Depois, passemos, então, ao conteúdo. Acho que era fulcral insistir num ponto: o da participação dos cidadãos, que só se consegue gerar a partir da cultura e da sabedoria da escuta. Até que ponto é que os cidadãos estão, de facto, a ser escutados para lá do dia em que vão votar? Julgo que era importante que a sociedade produzisse meios e formas de os seus cidadãos se poderem pronunciar e de as instâncias os escutarem. Todos estamos convencidos que possuímos carradas de soluções. Portanto, estamos a ser capazes de oferecer essas soluções, mas falta paciência para escutar o que é que o cidadão quer, o que deseja, e também o que propõe.

A liberdade ela própria requer alguma fronteira, algum limite.

Temos assistido também em Portugal a uma discussão sobre os limites da liberdade de expressão. Estamos a cair numa espécie de censura encapotada?

Como a minha resposta direta a essa pergunta, fosse ela qual fosse, seria política, vou responder de um ponto de vista filosófico. É inerente à liberdade o estabelecimento de um limite. Aliás, é um lugar-comum dizer-se que a liberdade do outro termina onde começa a liberdade do eu; a liberdade do eu termina onde começa a liberdade do outro. A liberdade ela própria requer alguma fronteira, algum limite. Este aspeto foi muito desenvolvido sobretudo pela Antiguidade Grega. Na expressão máxima de liberdade enquanto autodeterminação pura, e esta é uma definição de São Tomás de Aquino, este mecanismo desta autodeterminação impõe limites de parte a parte.

Vou dar-lhe um exemplo histórico de quando nós, os portugueses, participámos muito ativamente na autodeterminação de Timor-Leste. A autodeterminação de Timor-Leste implicou que um país, no caso uma potência estrangeira, a Indonésia, tivesse conhecido limites às suas pretensões. O que eu quero dizer, e sem me pronunciar em concreto sobre o assunto que está atualmente em cima da mesa, é que as palavras liberdade e limite não têm que ser obrigatoriamente inimigas. [É] uma parceria que se estabelece, que se recria e que funciona num devido equilíbrio entre uma e outra. Só há verdadeira liberdade onde isso existe.

Voltando um pouco aos temas da visita ad limina. O acompanhamento e a presença da Igreja junto de outras periferias, para além dos migrantes, nomeadamente junto dos recasados, dos homossexuais, é um tema que preocupa a Igreja em Portugal?

Aquilo que preocupa a Igreja, e aquilo que me preocupa a mim, mais do que as questões, são as pessoas. É para as pessoas que nós existimos. E por isso esses epítetos e essas etiquetas são para mim, não secundárias, mas terciárias. Em primeiro lugar, está a pessoa no seu concreto, com a sua realidade de vida, com a sua história. Quando Jesus Cristo diz: "mulher, onde estão eles?" – eles eram os fariseus que se prontificaram a atirar-lhe a pedra (a ela, aquela mulher adultera) – e ela responde: "Foram embora", ou seja, "Ninguém permaneceu para te acusar", [Jesus] estava exatamente a referir esta centralidade do ser humano, da sua história, do seu processo, do seu percurso. Temos de fazer com que [haja] atenção à história de cada um, à vicissitude própria de cada pessoa. Que isso faça parte do nosso quotidiano, do nosso estilo. E é esse estilo que eu acho que o Papa Francisco tanto ama e quer para a Igreja Católica.

O tema dos abusos foi outros dos assuntos desta visita ad limina, no Vaticano. O que é que falta fazer em Portugal nesta matéria?

Não é ser um idealista, mas aquilo que falta fazer é pôr fim aos abusos. Essa é uma chaga, um crime, um tormento. Em segundo lugar, julgo que nos falta também fazer uma transição em termos de cultura, de sociedade, de mentalidade, para nos questionarmos como é que esses fenómenos são possíveis. Como? Porquê? Como é possível que uma sociedade altamente desenvolvida do ponto de vista civilizacional, cultural, científico, produza, ainda no seu seio, fenómenos que são destruidores do ser humano? Façamos uma reflexão sobre isto. Será que ainda prevalece, muito embora se possa atribuir ao inconsciente, aquela exploração do mais débil pelo mais forte? Será que é isto? Portanto, iria um bocadinho por aqui: terminar os abusos, eles próprios. Rezo todos os dias por isso, assim como rezo todos os dias pelas vítimas, e faço-o três vezes, para que o Senhor as acompanhe, para que o Senhor, que é o bom pastor, o bom samaritano, sare as suas feridas.

Estamos a fazer um caminho. Porventura, não à velocidade de cruzeiro como todos desejávamos, mas estamos a caminhar. A Igreja está a dar passos. Alguém poderá dizer que são lentos, mas são passos em que a nossa boa vontade, o nosso desejo de vir com uma resposta, de vir com um bálsamo, de vir com um remédio para as feridas, é autêntico, é real. Pedimos à sociedade para estar connosco. É um daqueles desafios, dramas e traumas que só tendo a participação de todos se resolve.

A Igreja está a conseguir renovar-se depois da JMJ na maneira de chegar aos jovens e de comunicar com eles?

Falo a partir da experiência. A última que tive, que me emocionou deveras, foi no sábado passado, à noite. Chovia, estava frio. Houve uma vigília de oração com jovens, em Miraflores, ao ar livre. Emocionou-me verdadeiramente a presença de largas centenas de jovens que revelaram para mim, fundamentalmente, três coisas: a força da espiritualidade, a força da santidade, a força do querer participar, a força do amor por Jesus Cristo. É maravilhoso quando constato e testemunho que o coração da juventude de Portugal, e concretamente da juventude de Lisboa, está conquistado por Cristo vivo.

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