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Abusos na Igreja. "Muitas pessoas estão a falar pela primeira vez"

23 ago, 2023 - 20:40 • Ângela Roque

Em entrevista à Renascença, a responsável do Grupo VITA, Rute Agulhas, fala da “missão” que une todos os que integram a nova estrutura que está a fazer o acompanhamento das situações de abuso sexual de crianças e adultos na Igreja, e que recebeu até agora 48 denúncias. Garante que não tem sentido entraves por parte da hierarquia católica, pelo contrário. Em setembro arranca um plano de formação, que se estenderá por 2024. Pelo meio contam publicar um Manual de Prevenção da violência sexual, e materiais pedagógicos para todas as escolas.

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No dia em que o Grupo VITA divulgou um balanço dos primeiros três meses de atividade, a Renascença conversou com Rute Agulhas. A psicóloga, que preside à estrutura criada no âmbito da Conferência Episcopal Portuguesa, confirma que as denúncias de abusos sexuais que receberam até agora correspondem a novos casos, e que foram mais procurados depois do Papa Francisco ter recebido, em Lisboa, um grupo de vítimas.

“Muitas pessoas estão a falar pela primeira vez”, conta esta responsável, que fala de um trabalho intenso. “São três meses, mas parecem três anos. Porque é um trabalho muito exigente”.

O Grupo VITA pode ser contactado através da linha de atendimento telefónico (91 509 0000) ou do formulário para sinalizações, disponível no site www.grupovita.pt.

O Grupo VITA confirmou hoje que em três meses recebeu quase 50 denúncias de abuso. São casos novos?

Recebemos um total de 48 denúncias, até ao momento. A maior parte destas situações não são conhecidas das comissões diocesanas e também não tinham sido reportadas à ex-Comissão Independente (CI). São pessoas que estão a falar pela primeira vez.

Entendemos isto como um sinal claro de confiança e há muitas pessoas que nos dizem que, ainda na altura da CI, ponderaram falar, mas acabaram por não ter coragem e ter receios. Depois, a CI cessou as suas funções e ficaram com a sensação de que tinham perdido a oportunidade para o fazer. Agora, com o Grupo VITA, sentem que esta oportunidade volta a surgir, e têm-nos procurado nesse sentido.

Confirma que o encontro do Papa com algumas vítimas de abuso, quando esteve em Lisboa, levou a um aumento das denúncias?

Sim, sentimos um aumento de pedidos de ajuda nessa semana, nesses dias em que o Papa Francisco esteve em Portugal, e aquilo que as pessoas nos referem é a sensação de empoderamento e de mais coragem, de incentivo que sentiram através das palavras do Papa, e o facto de ele também ter recebido, logo no seu primeiro dia em Lisboa, 13 pessoas que tinham sido vítimas de violência, também acabou por ser um fator facilitador para que muitas pessoas revelassem agora a sua situação.

Os casos estão a ser encaminhados em vários sentidos, alguns seguem para a justiça, outros para apoio psicológico. Como é que isso está a ser feito?

Sim, todas as situações, a partir do momento em que temos o consentimento das pessoas e podemos encaminhar, esse encaminhamento é feito para as estruturas da Igreja, não só as comissões diocesanas mas também alguns institutos religiosos. E em paralelo também para a Procuradoria Geral da República (PGR).

Neste momento, cerca de metade das pessoas que já nos procuraram precisam, claramente, de um apoio psicológico, algumas também de ser avaliadas, ou reavaliadas, em psiquiatria. E estamos neste momento a fazer estes encaminhamentos, em função também da zona de residência da pessoa, em função daqueles que são os psicólogos que integram a nossa bolsa, e que nós já vamos conhecendo, porque já tivemos um primeiro momento formativo em Julho. Portanto, estamos a fazer esse encaminhamento.

Essa bolsa tem quantos profissionais neste momento?

Cerca de 100 profissionais. Temos o país bem mapeado, apesar de haver algumas zonas muito concretas onde ainda pode ser difícil encontrar uma resposta. No entanto, também há vítimas que estão disponíveis, ou para se deslocar um pouco, ou para fazer online, isso acaba por ser facilitador. Mas, já temos uma bolsa bastante significativa e todas as zonas do país mais ou menos cobertas.

É responsável pelo Grupo Vita. Que balanço faz deste vosso trabalho, que é exigente e delicado?

É um trabalho muito exigente. Ainda ontem, em conversa com os outros elementos do Grupo, eu dizia, falando daquilo que sentimos, que são três meses, mas parecem três anos. Porque é um trabalho muito exigente, que não tem fins de semana e não tem férias. Trabalhamos todos nas respetivas férias, e sentimos que há aqui um espírito de missão que é transversal a todos os elementos do Grupo, e isso é muito importante. Estamos todos muito motivados, mas é muito exaustivo e muito exigente, do ponto de vista emocional, do desgaste do tempo que isto nos exige. Mas estamos todos muito motivados para continuar.

Quem foi vítima de abuso vê no Grupo VITA uma estrutura que está disposta a ouvir, a acolher as denúncias e a ajudar?

Sim, e mais do que isso, a acompanhar. A maior parte das pessoas que já nos contactaram, com alguma regularidade contactam-nos novamente quando têm uma dúvida, algum pedido mais específico. Estamos muito ao lado de todas as pessoas que nos procuram.

Há quem nos procure também apenas para desabafar, nesta perspetiva do alívio que sentem ao partilhar a sua vivência, em segredo durante décadas. E é muito importante que sintam, da nossa parte, esta total disponibilidade e a nossa isenção.

O facto de já termos quase 50 pedidos de ajuda até ao momento, em apenas três meses, é sinal disso, de que as pessoas, se calhar não numa primeira fase, mas à medida que o tempo vai passando, vão sentindo uma confiança gradual em nós. Que, de facto, somos independentes, isentos e tomamos as decisões que achamos que devemos tomar, sem qualquer influência da parte da Igreja.

Como é que avalia a atuação da Igreja? O Papa, no regresso a Roma, depois da JMJ, disse que a Igreja em Portugal está no bom caminho, relativamente ao combate aos abusos. É também essa a sua avaliação?

Sim. Nós até ao momento temos sentido total disponibilidade da parte da Igreja para fazermos aquilo que entendemos. Enquanto grupo de profissionais que somos, nunca nos foi colocada qualquer limitação, qualquer constrangimento, nada. Sentimos esta margem de manobra muito grande, e para nós é também um requisito para podermos continuar a trabalhar neste Grupo.

E sentimos que há uma disponibilidade genuína das várias instâncias da Igreja em colaborar connosco, não só em acolher os pedidos que fazemos, como também em receber formação, capacitação - que é uma fase que vamos iniciar agora em Setembro, de sensibilização, formação e capacitação de todas estas estruturas da Igreja, e sentimos uma enorme recetividade. Portanto, achamos que há um sinal claro de mudança e de abertura, uma nova abordagem, que este tipo de problemática necessariamente exige.

A formação a que fazem referência no comunicado desta quarta-feira é para psicólogos, mas não haverá para os diversos agentes da Igreja?

No comunicado fazemos referência à formação dos psicólogos e dos psiquiatras, que já tiveram uma formação inicial em Julho, vai repetir-se em Setembro, e depois vão ter formação mais aprofundada e supervisão.

Em paralelo, temos a formação das comissões diocesanas, a formação dos institutos religiosos, dos catequistas, dos professores de educação moral e religiosa católica, das instituições de solidariedade social, enfim, um conjunto muito diverso de públicos-alvo, de destinatários, cada um com as suas necessidades.

O que temos feito é mapear estas necessidades. Durante o Verão aplicámos alguns questionários online para avaliação das necessidades, as comissões diocesanas responderam, como os catequistas, os professores de educação moral e religiosa católica, os institutos religiosos, já analisámos esses dados, essas respostas, e já está definido um plano formativo, em função das necessidades que foram identificadas. Para as comissões diocesanas temos um plano de ação, para os institutos religiosos temos outro, para os catequistas vamos ter outro, portanto, são planos de ação definidos de forma muito específica e concreta, em resposta às necessidades que foram identificadas.

E com que calendário?

Definimos uma primeira fase até janeiro, fevereiro de 2024. É um plano de ação que pode ser divulgado agora em setembro, a partir do momento em que se comece a implementar. Isto será um primeiro nível, depois, durante o ano de 2024, vamos aprofundar essa mesma formação com alguns destinatários mais específicos que possam depois tornar-se também eles agentes formativos. Ou seja, haver aqui um modelo em cascata, para que profissionais já formados possam formar e possam sensibilizar outros, tendo em conta que o universo de pessoas é mesmo muito grande.

Estamos a fasear esta formação, a colocá-la com níveis diferentes, exatamente para podermos ter este modelo em cascata, que abrange o maior número de pessoas.

De facto, a prevenção é uma das apostas que tem de ser feita?

É. Esse é outro eixo em paralelo que estamos a desenvolver. O nosso objetivo é, até dezembro, apresentarmos um primeiro manual de prevenção da violência sexual neste contexto. E, em paralelo, estamos a começar também a pensar materiais pedagógicos para trabalhar especificamente com crianças e com jovens, e também num contexto de investigação, vamos iniciar quatro estudos de investigação em setembro, que vão decorrer durante este próximo ano letivo, para compreendermos melhor esta realidade em Portugal, para que as ações que vamos desenvolvendo sejam especificamente pensadas para a nossa realidade, e para as necessidades que vamos identificando.

E isso não apenas direcionado para a Igreja, será mais abrangente?

Sim, mais abrangente. Inclusivé, temos já pensada aqui uma articulação, por exemplo, com a Direção-Geral da Educação (DGE), de modo a chegarmos também aos professores que estão escolas, não necessariamente católicas.

Estamos também articulados com a APEC, a Associação Portuguesa de Escolas Católicas, mas em paralelo com a DGE, portanto, o objetivo é mais ambicioso: é chegar ao maior universo possível de crianças e jovens, e aos cuidadores e adultos que com elas convivem, porque a prevenção pensada de uma maneira universal, exige este olhar mais macro, mais amplo.

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